Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sexta-feira, 10 de abril de 2015

TEXTOS ESOTÉRICOS, FÉ E CIÊNCIA

por Mario Sales, FRC,SI,CRC 18°

Coronel Olcott ao centro

HPB

A Sociedade Teosófica (S.T.) foi fundada em Nova Iorque, E.U.A., em 17 de novembro de 1875, por um pequeno grupo de pessoas, dentre as quais se destacavam uma russa e um norte americano: a Sra. Helena Petrovna Blavatsky (HPB) e o cel. Henry Steel Olcott, seu primeiro presidente. Em 1878 o cel. Olcott e a Sra. Blavatsky partiram para a Índia. Em 3 de abril de 1905, foi estabelecida legalmente a sede internacional da S.T. no bairro de Adyar, na cidade de Chennai (antiga Madras), estado de Tamil Nadu, no sul da Índia, onde permanece até hoje.
A essência da ST são as obras literárias de HPB e, entre estas, a Doutrina Secreta(DS).
Na DS, HPB não apresenta nenhuma demonstração ou comprovação de suas afirmações. Nem precisaria. 
A DS é um texto de fé.
Como já comentei, é preciso ao menos crer na possibilidade de realidade daquilo que ela relata, antes de se envolver com seu estudo.
Sua chamadas "revelações" só o são para determinado tipo de pessoas, os chamados esoteristas e iniciados.
Estes, no entanto, como mostraremos, não necessitam de nenhuma prova, de nenhuma evidência. Se reconhecem, em seus corações, a veracidade do que lêem, para eles isto já é prova suficiente.
Mesmo assim HPB desejava segundo suas próprias palavras, que seu texto supremo rivalizasse com textos científicos da época. Só que este propósito, já disse, e correndo o risco de ser cansativo repito, era e é descabido.
Os que acreditavam e acreditam no que ela diz não necessitam de provas para crer; e os que não crêem, jamais acreditarão em afirmações não demonstradas e/ou comprovadas.
Esoteristas têm uma complacência infinita com textos esotéricos, mas é preciso observar que existem, do ponto de vista esotérico, textos e textos.
Existem por exemplo, aqueles textos de características declaradamente religiosas, descrevendo um mundo além deste mundo, sua natureza, suas características.
São dessa forma o Bardo Todol, o Livro dos Espíritos, as visões de Svendenborg e os livros de Jacob Boheme.
Tais relatos não se propõem fundamentados em fatos do cotidiano, mas querem dar conta exatamente de algo além do cotidiano, crenças provenientes de interpretações e visões pessoais de seus autores com apoio e origem em tradições locais. Nenhum texto religioso tem qualquer intenção de ser científico de modo ortodoxo, e assim se consideram verdadeiros, independente de quaisquer demonstrações.
Existem sempre aqueles, no entanto, que querem transformar crenças dogmáticas em axiomas lógicos ou em base para o conhecimento de certeza, mesmo passados 24 séculos desde que os gregos distinguiram, com brilhantismo, os conceitos de doxa e epistéme.
Os cristãos católicos romanos, praticamente até o século XIX, impuseram suas interpretações do mundo e do real à sociedade ocidental e aos próprios cientistas, perseguindo alguns, matando outros, de modo a fazer prevalecer sua noção de verdade.
Do século IV até o século XIX DC, crenças religiosas autonomearam-se certezas, produto de reflexões. Nesta linha de trabalho, Universidades inteiras baseavam seus trabalhos intelectuais nos textos bíblicos, não em informações originadas no empirismo ou na matemática. O objetivo de um religioso tradicional sempre foi adequar o real à sua crença, ao contrário do cientista que adéqua sua crença ao que o real lhe informa.

Ludwig Feuerbach

Mesmo assim, as "certezas religiosas" entraram pelo século XX enfrentando o desafio da cientificidade, que desde o século XIX, com Feuerbach[1], Marx, Nietzsche e Augusto Conte romperam filosófica e psicologicamente o elo entre conhecimento religioso e laico. Ao final do século XIX, qualquer movimento que quisesse reputação deveria ser capaz de realizar a reunião destes dois mundos que se afastavam, em alta velocidade.


Augusto Conte

Vemos assim algumas iniciativas que, sendo de fundo religioso, do mundo da crença, tentam travestir-se de empreendimentos científicos, do mundo da reflexão, quase como em uma tentativa de melhorar sua aceitação em um ambiente que pouco a pouco se tornava mais cético e materialista.
O lema da Escola Teosófica, "Não há Religião Superior à Verdade" , é um exemplo desta estratégia. [2]
O que a Escola de Adyar propõe é que suas informações são científicas, mas que serão refutadas pela ciência ortodoxa por puro preconceito.

Dr. Archibald Keightley

Na verdade,só um leigo acharia que a refutação científica é uma demonstração de preconceito. Não há maior demonstração de respeito por uma teoria científica do que a tentativa fundamentada e bem aparelhada de sua refutação pois tudo em ciência é refutado e refutável, todo o tempo, principalmente se for um postulado construído dentro de um modelo científico ortodoxo. É exatamente a refutabilidade de um postulado que o torna científico. O que não pode ser criticado e , eventualmente, refutado, não é um postulado científico, mas dogma. E os dogmas são assunto de religiões, não da ciência.
Na época que HPB publica a DS, 1888, esta abordagem epistemológica onde tudo é suspeito até prova em contrário ainda ganhava força e pelo que eu e Flavio vimos no chamado "Apêndice" do IIº Volume da DS,(que na verdade vem a ser maior em tamanho do que o texto principal do IIº Volume em si), a ciência era altamente especulativa e pouco calcada no experimentalismo.
Cética em relação a tudo que, mesmo de leve, lembrasse a religião, da qual agora, no século XIX, se afastava como o diabo da cruz, ainda era uma comunidade científica com poucas informações e muitas teorias e discursos.
Sendo isto o que havia na época, HPB achou que poderia entrar no debate científico da mesma maneira, com afirmações bombásticas e uma pena enfurecida e que, com isso, ocuparia um espaço no debate científico da época.
Não foi assim. Teosofia Blavatskyana não é, e nem nunca foi ciência, mas sim um saber fundamentado em crenças, em tradições culturais e em fé.
Sua mais importante contribuição ao esoterismo foi mostrar que existe sim uma cultura única por trás de todas as culturas, e que a aparente diversidade tem pontos de conexão que nos fazem ao menos suspeitar que sejam produto da mesma cultura, uma cultura planetária, que produziu pirâmides na América Central e nos desertos do Egito, bem com em regiões subaquáticas do Japão.
Ela tentou também pelo que lemos até agora, uma síntese de todos os símbolos de várias culturas, mas este esforço continua até hoje sem que se tenha chegado ainda a um consenso.


Carl Gustav Jung

Carl Gustav Jung também tinha a mesma ambição quanto aos símbolos humanos, e também não conseguiu seu intento. Eventualmente este tipo de síntese cultural será conseguida, mas falta-nos ainda tecnologia e informação para preencher os espaços em branco antropo-arqueológicos.

Dalai Lama

Isso não tira o mérito de HPB de ter tido a iniciativa.
Não havia à sua época uma visão planetária em relação à humanidade. Os povos eram heterogêneos e misteriosos uns para os outros. O tempo e o avanço das comunicações interplanetárias derrubaram muitos dos véus que existiam naquele século e como exemplo, o homem tibetano, (infelizmente graças a brutalidade e ao imperialismo chinês, que tornou o Dalai Lama um fugitivo e matou milhares de monges), foi trazido forçosamente ao convívio internacional.

Max Heindel

O trabalho e o esforço de HPB na DS, acredito, deve ser valorizado como a primeira tentativa de mostrar que o que chamamos esoterismo é na verdade o eco de outras culturas, de outras visões de mundo.
A DS, óbvio, não esgota o assunto, claro, já que é trabalho para muitas mentes, mas propõe uma linha de trabalho que está longe de ter sido adequadamente continuada pelos seus seguidores.


Henrique José de Souza e sua esposa Helena Jeferson de Souza, a "parelha manúsica"


As rupturas dentro do movimento após sua morte, com Besant e Leadbeater em Adyar, Rudolph Steiner na Alemanha, com a Antroposofia, ou Max Heindel, teosofista americano de origem dinamarquesa, criador da Fraternidade Rosacruz, (uma escola que, apesar de seu nome grandiloqüente, na verdade tinha os dois pés fincados na tradição blavatskyana), ou a Eubiose em solo brasileiro, de Henrique José de Souza, nenhuma delas  produziu uma continuação do esforço real de HPB, que era catalogar o conhecimento esotérico em uma única obra e doá-la ao mundo.

Rudolph Steiner

Este esforço, ambicioso, já de per si mereceria aplausos e realmente não entendo a obsessão, a meu ver desnecessária, de HPB, em conseguir um status científico para este trabalho, o qual nunca foi produto da ciência, mas segundo ela mesma relatava, consequência de narrativas de três grandes mestres invisíveis a maioria dos mortais, da Fraternidade Branca, conceito e entidade apresentados ao mundo não iniciático também por ela.
Seu texto era e sempre será um texto esotérico notável, como outros que a precederam.
E o que é um texto esotérico? Vejamos.
Podemos a meu ver dividir os textos esotéricos em essenciais ou compostos. Os esotéricos compostos, por sua vez, podem ser de três tipos: magistas, místicos e, como já comentamos, os religiosos.
Os esotéricos essenciais são aqueles que não tem intenções outras a não ser reportar informações de outras eras e povos. Ele não ensina técnicas, ele não faz longas discussões sobre a natureza da divindade.
A DS é um texto esotérico essencial, sua função é revelar ao mundo a existência de um outro plano de existência, aonde energias desconhecidas atuam e desenvolvem transformações e evoluções paralelas a esta do mundo hodierno. A DS não oferece meios para se atingir este mundo. Apenas o aponta e diz: "-Está Lá", e ponto.

Agora vejamos os compostos, magistas, misticos e religiosos. Como exemplo de livros esotéricos Magistas eu cito Dogma e Ritual da Alta Magia de Eliphas Levi, o Tratado Elementar de Magia Prática de Papus, as narrativas sobre cabala prática, que infelizmente estão dispersas estrategicamente em monografias que ainda não foram reunidas em um tomo organizado. Ali são dados meios e fórmulas pelas quais conseguir certos efeitos que transcendem as leis deste Universo, na realidade ao nosso redor.
Os esotéricos místicos são aqueles que buscam a integração com Deus, seja qual for o nome que ele receba na tradição em questão, e visam ministrar ensinamentos que afastem a ilusão da distância entre o Todo Poderoso e o indivíduo que lê este texto. São exemplos o Bhagavad Gita, os Quatro Evangelhos Cristãos, e mesmo as Sutras Budistas se bem que em Budismo esta categoria, a de uma entidade superior, é desnecessária ao processo de Iluminação do praticante, mas as consequências são semelhantes. Neste tipo de livros esotéricos existe um forte componente didático. A intenção primordial é mostrar o caminho, ou melhor, um caminho que leve a fusão com a plenitude.
Já como textos esotéricos religiosos podemos relacionar o Corão, a Bíblia Judaica, no caso a Torah, ou os registros escritos do Kojiki e Nihon Shoki, nos séculos VII e VIII, que mais tarde transformar-se-ão na base da religião Xintoísta.
Talvez sobre estes textos possa se dizer que são as tábuas de cada nação, de que Nietzsche fala em Genealogia da Moral. Nestes escritos encontramos, via de regra, normas de comportamento e conduta que constituirão a ética de uma religião.

Friederich Nietzsche

O certo é que, seja qual for o tipo de texto esotérico, nenhum deles tem qualquer pudor científico, ou seja, afirmam-se como expressões da verdade independente de quaisquer demonstrações. Repetindo: o curioso é que principalmente textos esotéricos religiosos gostem de se apresentar como produto de reflexão e não da fé ou crença. As crenças são certezas, do tipo que só religiosos possuem. Cientistas ao contrário, vivem mergulhados na dúvida e por mais elegante que seja seu postulado ele estará sujeito a ser destronado se fatos novos surgirem no horizonte dos acontecimentos.
Esta é a verdadeira humildade científica, jamais supor que saiba tudo sobre todas as coisas pois esta onisciência seria o próprio fim da ciência em si.
A DS, equivocadamente, quer ser um livro de ciência desde suas primeiras páginas, quando na verdade poderia encaixar-se no modelo de livro esotérico essencial.
Suas narrativas são indemonstráveis, inverossímeis, e dependem, como eu disse , da crença de quem as lê; não há nem o conforto de um suporte matemático em suas afirmações.
Sim , por que a ciência ortodoxa também tem teorias e postulados indemonstráveis na prática, como por exemplo aquelas teorias referentes à natureza e dinâmica dos buracos negros. Ninguém, que se saiba, chegou perto de um o suficiente para confirmar as projeções teóricas sobre ele, mas estas projeções nascem e se sustentam em cálculos matemáticos complexos e rigorosos e da análise crítica criteriosa dos dados observacionais disponíveis. Não se trata de uma informação que surge de modo gracioso.
Antes de se tornar pública, foi objeto de análises e ataques sistemáticos e se for uma informação séria e bem fundamentada, passará por estes ataques incólume. Nada há de agressivo nisso, não é uma questão pessoal contra o cientista que propõe a tese. Isto é o método científico em funcionamento. Todo postulado científico, toda teoria é atacada de todos os modos possíveis , permanentemente, de forma a que, enquanto resistir a estes ataques teóricos, se mantenha como paradigma.
Portanto, como já disse, a DS em momento algum tem qualquer característica de proposta científica, antes de tudo porque lhe falta o cuidado demonstrativo que qualquer trabalho científico tem que ter. Ao ler a DS seja qual for nossa motivação para isso, estamos às voltas com uma narrativa que, (ao contrário das Estâncias deste desconhecido livro de Dizyan, que tem um forte caráter metafórico, poético e simbólico), compõe-se de um conjunto de afirmações de sua autora baseadas em textos que, de maneira ortodoxa, nem ela mesmo consultou. Indagada certa vez sobre o sem número de referências que cita, em como as teria consultado, relatou que apenas fechava os olhos e os textos vinham a sua mente e ela os redigia a partir desta visão.
Foi assim que HPB redigiu a DS.
É bom lembrar que eu e Flavio somos esoteristas rosacruzes. Por muitas vezes, por sermos esoteristas, dedicamo-nos a leitura de textos que descrevem o indescritível, mundos e visões improváveis, como a visão de Ezequiel, o trecho mais hermético da Bíblia Judaica e base do Misticismo Merkavah, a proto-cabala.
Bíblia ou a Torah, com certeza, não querem ser livros científicos, mas, isto sim, esotérico-religiosos segundo minha  própria classificação, os quais sustentam a fé judaica e outros tipos de fé, há séculos.
Suas afirmações são afirmações no contexto da fé, onde provas , se elas forem necessárias, como já disse, estarão no coração de quem a lê.
Na verdade, nenhum leitor de um texto esotérico religioso vai ao livro em busca de provas, mas sim de inspiração. Não lhe interessa se o que está ali é ou não demonstrável, mas sim se ao ler aquelas linhas seu ser se regozija e se rejubila e ele reconhece valores harmônicos com suas crenças. O que não quer dizer que não existam aqueles que por insegurança ou por ignorância do que signifiquem critérios científicos, queiram dourar a pílula da fé com o ouro da cientificidade, sem sucesso, já que um é óleo e o outro é água. Ou aceitamos a priori, como plausíveis e interessantes os fatos descritos na DS ou nem começaríamos a lê-la, quanto mais continuar neste esforço de leitura de um texto tão obscuro, e, no caso desta edição em particular, pessimamente traduzido por Raymundo Mendes Sobral. Portanto, a DS não é, e nem deveria tentar ser um texto de características científicas, mas sim, antes de qualquer coisa, um texto que demanda fé de quem o lê, nas coisas que ele afirma.


[1] Ludwig Andreas Feuerbach (Landshut, 28 de julho de 1804 — Rechenberg, Nuremberg,13 de setembro de 1872)

[2]
Este é o lema da Sociedade Teosofica, o qual foi traduzido do sânscrito –  Satyam nasti para Dharma. A palavra Dharma foi traduzida como religião, mas também significa, entre outras coisas, doutrina, lei, dever, direito, justiça, virtude. Portanto, em sentido amplo, o lema da S.T. afirma que não há dever ou doutrina superior a verdade.