Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

LEMBREMOS DE HERÁCLITO


Por Mario Sales




Heráclito de Éfeso

A Ordem Rosacruz AMORC tem como um de seus ensinamentos o axioma de que “o mundo é dual em essência e triplo em manifestação”, afirmação que estabelece a inevitabilidade das oscilações de todas as coisas entre dois polos, um que chamaríamos de bom, positivo, e outro mau, negativo.
Nesse ponto o esoterismo ocidental é extremamente mecânico, estático.
O símbolo taoista das Clavículas de Fu-Hi tem mais fidelidade aos fatos, tais como são. Essa oscilação, além de constante, como os batimentos do coração, é ininterrupta.





De qualquer forma, oscilação lenta ou rápida, a verdade é que os polos são ilusões temporárias. Tanto o polo positivo, (de alegria e felicidade), como o polo negativo, (de tristeza e dor), são temporários e passageiros.
Daí não fazer sentido a afirmação de outro nobre rosacruz, Renée Descartes, de que “tudo que o homem faz é em busca da felicidade”.
A felicidade como meta, é inalcançável, escorre pelas mãos como a água. Da mesma forma que a tristeza.
O que nos resta de verdade é desenvolver equanimidade, um estado de equilíbrio que resista a estas oscilações.
É o que eu tenho chamado de serenidade, uma meta alcançável com esforço e treino.
Não por outra razão, budistas, especialistas em equilíbrio mental, pregam como solução para a dor, o desapego.
Como o pêndulo de um velho relógio, dor e prazer alternam-se de maneira permanente, e se desenvolvemos o desapego, tanto ao bem, como ao mal, mais rapidamente um ou outro polo se desfaz, acaba, passa.
Eu não me enganei: apego ao mal. Existem pessoas que insistem em ficar agarrados à aspectos ruins da vida, focados na sombra e não na luz. É uma espécie de vício, tão ruim quanto a mentalidade de poliana de que tudo está bem e vai ficar bem.
A verdade é que não vai. Pelo menos por um tempo.
A disputa entre otimistas e pessimistas é vã.
A ação no mundo, verdadeiro diferencial de maturidade, não prescinde de condições adequadas ou favoráveis.
Barcos fortes e estáveis avançam mais devagar em meio as tempestades e mais rápidos em dias de sol e mar tranquilo.
De qualquer forma, avançam.
E é assim que as coisas são, “duais em essência”.
Parte do crescimento espiritual é compreender isso, e adaptar-se, já que a adaptação, como lembrava Charles Darwin, é a chave da sobrevivência.
A felicidade não pode ser um objetivo na vida já que ninguém deseja que o coração pare em diástole ou em sístole.
O coração precisa continuar a se expandir e a se contrair, assim como os pulmões, assim como o dia precisa alternar com a noite.
Querer a felicidade é querer o sol em nossas cabeças permanentemente, é um desejo descabido, se olhado de forma sensata.
Não, não estamos aqui para sermos felizes embora possamos sim nos divertir.
Como lembra o símbolo taoísta, existe um pequeno bem germinando dentro de todo mal, e um pequeno mal germinando dentro de todo bem.
Nada, absolutamente nada é isso ou aquilo.
Tudo está em fluxo e oscilação, sempre e sempre.
Não nos esqueçamos de Heráclito de Éfeso, (535 a.C. - 475 a.C.): nenhum homem pode banhar-se no mesmo rio, duas vezes.
O resto é silencio.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

O ATRIL DA DISCÓRDIA


Por Mario Sales

ATRIL

Quando há 8 anos atrás, coloquei na capa do blog que o mesmo seria “um exercício solitário, poético e filosófico, baseado no preceito rosacruz da mais completa liberdade (possível) dentro da mais perfeita tolerância (possível)”, muitos estranharam os parênteses com a palavra possível. Havia na época como ainda hoje existe, para alguns, a fantasia de que a Ordem era realmente isenta de restrições comportamentais. O tamanho e o enorme número de páginas do nosso Manual Administrativo, com o qual todo monitor regional, todo Grande Conselheiro, todo mestre de capítulo ou loja devem estar familiarizados vai contra essa acepção. A Ordem tem sim limites para o comportamento de seus membros e oficiais ritualísticos ou administrativos. Isso não teria um peso tão grande se não viesse acompanhado de suas consequências, ou seja, toda vez que temos uma regra escrita, por mais clara e detalhada que ela seja, sempre haverá necessidade de ser interpretada e adaptada a cada situação.
Eu dou um exemplo prático. Fui mestre da Heptada Martinista Guarulhos, no ano de 2010. Fui mestre do primeiro e segundo grau em 2008 e 2009. Na época já não estava tão jovem e a mesa com o texto da aula, sobre a mesa já estava demasiado distante dos meus olhos. Pensei em colocar um atril na mesa para facilitar a minha leitura e a leitura dos irmãos que davam aulas ali.
Como é de praxe consultei a autoridade responsável.
Seu comentário: não poderia ser colocado nada sobre a mesa já que o regulamento ritualístico era claro. Sobre a mesa nada a não ser o que estava protocolado. O atril que facilitaria minha leitura foi portanto vetado.
Em 2008 um frater visitou a Grande Loja Americana, na Califórnia, sob a orientação da maravilhosa soror Julie Scott, Grande Mestra da Língua Inglesa, espírito prático além de excelente administradora.


JULIE SCOTT, Grande Mestra de Língua Inglesa



Entre as visitas de reconhecimento da nossa antiga Suprema Grande Loja, foi levado com outros irmãos, a conhecer o templo da Heptada.
Para sua surpresa, sobre a mesa do mestre, estava um simples e discreto atril, para facilitar a leitura dos manuscritos.
Ora, a Ordem, em todo o mundo quer ser uma só.
Nossas leis internas e regulamentos valem teoricamente para todas as regiões do planeta.
Fica, pois, a questão: porque nos EUA em uma Heptada da Grande Loja da Língua Inglesa, podia haver um atril em cima da mesa, como manda o bom senso, e aqui não podia?
A lei é a lei mas sua interpretação muda de local para local, de pessoa para pessoa.
Flexibilidade administrativa deve ser um protocolo, de forma a que os rosacruzes não sejam prisioneiros de regras inadequadamente rígidas e mal interpretadas.
Esse foi apenas um exemplo. Tenho quarenta e quatro anos de AMORC e já frequentei vários corpos afiliados e testemunhei eventos os mais curiosos e pitorescos.
A vida dos oficiais administradores é espinhosa, reconheço, e em determinadas horas é preciso a espada, como em outros precisamos da rosa.
O problema é saber quando usar um ou outro.
E principalmente, não deixar que a espada corte o caule da rosa. Seria um golpe contra o nosso próprio jardim.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

OS MEUS, OS SEUS E OS NOSSOS PENSAMENTOS


Por Mario Sales





Olho para dentro de mim mesmo. 
Vasculho sentimentos desorganizados, caóticos, como elétrons que somem e depois reaparecem, como por pura magia quântica.
Meus pensamentos não seguem uma linha de raciocínio clara. O calor me faz perder a razão, o bom senso.
Desejos, imagens, secretas imagens, surgem e somem, para em seguida de novo surgirem diante de mim.
Penso: o que de tudo isso me pertence?
As idéias vêm de mim ou passam por mim? Meus pensamentos, os mais banais, são apenas meus, ou fazem parte de um compartilhamento ao qual tenho acesso?
Se assim for, quem faz parte dessa partilha?
Quem comunga comigo na mesma hóstia, quem bebe o mesmo vinho?
Se for assim, mas isto é apenas especulação.
O calor me faz ficar filosófico.
E se fosse assim e todos nós não passássemos de televisores em lares diferentes, às vezes muito distantes um do outro, captando a mesma programação da mesma emissora?
Sabemos que o que vemos não está dentro do televisor, que é apenas resultado da captação de um sinal originado em um local distante dali; mas com nossos pensamentos sempre concebemos que são produzidos dentro de nós, que todos vem de dentro, como se o televisor emitisse a imagem que mostra, de dentro do aparelho.
Jung chegou perto de afirmar que as mentes conversam de modo oculto, que é possível que crenças de uma tribo isolada na polinésia atinjam a mente de um esquizofrênico na Suíça. Ele chamava a esse fenômeno “inconsciente coletivo”.
As idéias captadas brotam livres na mente de quem já não reprime, ou pela ação de drogas alucinatórias, ou demência, que desorganiza a razão.
O que os psicanalistas supõem, que exista a repressão de pensamentos indesejáveis ou por demais caóticos é hoje sustentado pela neurofisiologia.
Só que o Id e o Ego não estão um embaixo do outro, mas, aparentemente, lado a lado.
É o que propõe a Dra. Jill Bolte Taylor, em uma palestra encantadora no TED Talks, disponível, legendada em português, no YouTube. (https://www.youtube.com/watch?v=m0O0Il8Vn_g )
Ao que parece, se perdêssemos o nosso hemisfério esquerdo, como aconteceu com ela após um grave acidente vascular hemorrágico, esta sensação de separação que nos limita desapareceria. Descreveu lindamente a experiência em My Stroke of Insight, ainda sem tradução em português.



Dra Jill Bolte Taylor


Ela diz que tocava nos azulejos, mas ela e os azulejos eram apenas um. A barreira da personalidade isolada, separada, foi derrubada com o dano causado pelo derrame ao senhor do Ego, o hemisfério esquerdo, nosso hemisfério matemático e lógico. O que ela descreve como uma anomalia temporária causada por um acontecimento patológico na verdade acabou por revelar a face do guardião de nossa aparente separação individual.
Ao que parece, tudo se modificaria se pudéssemos ter, ao menos por algum tempo, esta estranha percepção de não ser quem somos, mas de fazer parte de tudo e tudo fazer parte de nós. Uma situação impensável para qualquer um de nós, enquanto nossos hemisférios cerebrais esquerdos estiverem funcionando perfeitamente.



Se já não bastassem as nossas muitas limitações neurológicas, ainda existe esse pequeno detalhe: fomos construídos de forma a supor que estamos separados, não só em nossos corpos, mas também em nossas mentes.
Por isso dizemos: “Este pensamento é meu”, ou “Essa idéia é minha”.
Mergulhados na água, dois peixes ouvem um peixe mais velho perguntar: “Como está a água?” e eles perguntam, perplexos: “Água? O que é água?”
Mergulhados em um oceano de pensamentos, dizemos que não existe tal coisa, um oceano de idéias formado por todas as mentes do mundo.
Como garantir, no entanto, que não é assim?
Muitas coisas que não vemos estão lá. Muitos sons que não ouvimos estão lá. Falta-nos os olhos e os ouvidos para ouvir.
Será que na mente não é da mesma maneira? Que apenas nos falta a capacidade de captar o que quisermos, sobre o que quisermos?
Realmente, hoje está muito quente.

PS: mais informações sobre a neurocientista citada em https://www.youtube.com/watch?v=sMNwA4qbcGY

domingo, 27 de janeiro de 2019

O COMO E O PORQUÊ


Por Mario Sales



A evolução da epistemologia, também conhecida por Teoria da Ciência, avançou com botas de sete léguas ao longo do século XX.
Esta área, hoje, da Filosofia, tem como objetivo estabelecer os critérios necessários para se estabelecer a veracidade de uma afirmação teórica. Além disso essa disciplina estuda a natureza do contato entre o observador e o observado, de que forma eu conheço ou reconheço o que está fora de mim.
Longe de ser um debate acadêmico e vago, ela possibilitou a consolidação do método científico como primeira condição de confiabilidade quanto a uma hipótese científica.
Antes desse movimento as indagações científicas sofriam de uma grave doença, a compulsão especulativa.
Embora alguns cientistas e pensadores já estivessem montando pouco a pouco o quebra-cabeças da compreensão do Universo através de experimentos os mais simples, mas mesmo assim, extremamente rigorosos, grande parte do pensamento científico, principalmente no século XIX, se desgastava em debates absolutamente inúteis e infundados.
Talvez a maior conquista nessa marcha em busca do esclarecimento, primeiro, se um conhecimento científico realmente é possível, depois quais são os critérios que tornam uma experiência verdadeiramente confiável, tenha sido o próprio método científico.



Duas condições são fundamentais para que possamos concluir que uma determinada experiencia é científica: verificabilidade e reprodutibilidade.
Uma experiência é científica, primeiro, quando pode ser verificada. Toda afirmação é submetida ao crivo experimental, fora aquelas que são baseadas em cálculos matemáticos e conclusões retiradas de observações indiretas, como no caso do estudo de planetas distantes as custas da espectrometria, a área que nos dá, pela cor, pela área do espectro, a possibilidade de saber de qual substância ou gás estamos falando.
No caso da matemática, a linguagem da ciência, embora não estejamos livres de uma confirmação experimental ou pela observação de fenômenos detectáveis e mensuráveis, temos a possibilidade de fazer prognósticos muito confiáveis do comportamento da natureza, principalmente na física de partículas. Embora, por exemplo, conheça-se a física quântica, matematicamente, desde o inicio do século XX, com o trabalho de Einstein e Planck, só décadas mais tarde equipamento adequado ao trabalho experimental no campo quântico foi desenvolvido e continua a ser aperfeiçoado, até nossos dias.
Então, a verificabilidade é feita ou pela experimentação direta na natureza ou pela análise de cálculos matemáticos que se mostrem corretos e plausíveis.



Um outro critério, importante na avaliação da confiabilidade de uma experiência, é a sua reprodutibilidade. Fatos científicos sempre se comportarão da mesma forma, se as condições para sua ocorrência se repetirem, independente do país ou da pessoa que faça o experimento.
O mais simples exemplo é o experimento da gravidade. A maneira mais simples de determinar que a força gravitacional age sobre todos os corpos no planeta é deixar um objeto cair ao chão.
Em qualquer lugar do planeta, qualquer objeto solto no espaço deverá mergulhar em queda livre até o solo, atraído pela força gravitacional do nosso planeta.
Não se trata de uma crença, mas de um fato, demonstrável, se necessário, centenas de vezes por dia.
Aliás, em ciência, existe um lugar para a crença. Muitas vezes, o cientista imagina certos comportamentos os quais deverão ser testados pelo método científico. Muitas vezes, a experimentação desmente a hipótese inicial, mostrando que a idéia não se sustenta nos fatos. Tal fato não caracteriza um fracasso científico, pois o método vale tanto para confirmar uma idéia como para refutá-la. Nenhuma experiência é vã, portanto.
Assim a ciência tem caminhado, principalmente no século passado, experimentando, verificando e reproduzindo resultados, provando desta maneira a natureza confiável dos fenômenos.
Coisas que não possam ser verificadas, ou por não poderem ser nem afirmadas, nem refutadas, não são científicas.
Na maioria das vezes ficam no âmbito da fé e das crenças pessoais. Em ciência no entanto, crenças pessoais são o que menos importa. Se eu tenho algum tipo de crença, e se a experiência me demonstra que estou errado, como cientista deixo imediatamente para trás aquela crença, descartando-a como falsa ou imprecisa.
Essa longa introdução tem uma única finalidade: mostrar que cientistas não podem, se querem construir um conhecimento sólido, basear-se apenas em opiniões. Nada impede que as tenham, mas estas, para serem consideradas opiniões sérias devem estar fundamentadas ou matematicamente ou pela experimentação.
Pode-se discutir sobre muitas coisas, a natureza da beleza, o papel da música no aumento de nossa sensibilidade, a importância da ética no comportamento social, mas estas discussões não são discussões de natureza científica.
O século XX consagrou uma visão de mundo que visa principalmente compreender como o universo e seus fenômenos funcionam. Mesmo a filosofia contemporânea, quando associada a ciência, tem um foco no estudo dos mecanismos por trás de determinados fenômenos, e nas nossas conclusões a partir de nossas observações, usando para suas reflexões informações oriundas do trabalho experimental.
O tempo da disputa meramente retórica terminou, faz já algum tempo. Resgatamos da história da ciência personalidades que, em todas as épocas, foram científicos e usaram o método científico e matemático para os seus trabalhos e investigações. Arquimedes, Eratóstenes, Pitágoras, são alguns desses nomes. Da mesma forma lembremos das ervilhas do padre Mendel, de Newton tanto por seus experimentos óticos, como por seus cálculos precisos da gravitação universal; Tico Brahe, Kepler, Galileu; os muitos experimentos na aviação de Santos Dumont, do magnifico trabalho de elaboração da Tabela Periódica de Mendeleiev, de Edson, de Tesla, de Pasteur e Fleming.
Esses homens produziram, cada um, uma parte do legado do qual hoje desfrutamos.
Novamente: cientistas não podem, se querem construir um conhecimento sólido, basear-se apenas em suas opiniões. Será necessário testar e demonstrar para a comunidade científica, seus resultados, de forma a que sejam analisados, criticados e verificados, e assim, transformados em conhecimento consolidado.
Não somos, enquanto cientistas, filhos de Platão ou de Aristóteles mas sim de Arquimedes e de Eratóstenes. Esta é nossa verdadeira ascendência.
Por isso a leitura de Isis sem Véu é tão difícil, mesmo sendo um clássico do esoterismo. Ler página após página, suas críticas à ciência por duvidar do que não foi demonstrado, por não reconhecer aquilo que não pode ser testado, é no mínimo cansativo.
Não se trata de duvidar ou crer em suas afirmações. O que qualquer leitor cientificamente treinado sente falta é aquela simples compreensão de que suas afirmações não têm caráter científico. Muito menos podem ser classificadas como a expressão da verdade, já que não há, em qualquer parte da obra, nada além de relatos sobre relatos, de histórias colhidas em diversas tradições, que segundo esta importante autora, representariam uma prova do porquê de certos fenômenos.
Não sabia a nobre teósofa que a preocupação mais importante da ciência não é mais o porquê, mas o como.
Se os relatos de Isis sem Véu pudessem ser confirmados, demonstrados, tudo poderia ser esclarecido, pacificamente, sem muito debate, mas não é assim. Sem a demonstração, folha após folha o que se discute são crenças, sobre as quais não importam se são ou não aceitas pelo leitor, porque em ciência o que menos importa, como disse, é a nossa opinião. A ciência é construída a partir de verificações que se não puderem ser feitas, excluem o fenômeno do interesse científico.
Essa talvez seja a maior falha nos textos esotéricos.
Os mecanismos pelos quais certos fenômenos que ali são afirmados como possíveis, não são compartilhados.
Ninguém discute comos, apenas porquês.
Aguardemos que algum dia, os esoteristas se decidam a compartilhar seu conhecimento com o resto da humanidade, de maneira a mais didática possível.
Talvez aí possamos, finalmente, conversar de forma civilizada.

A AMIZADE


Por Mario Sales



O que significa amizade? O que faz duas pessoas procurarem a convivência uma da outra, de forma constante e prazerosa?
Das respostas filosóficas a essas questões, a mais famosa é a que está no livro VIII e IX da obra Ética a Nicômano, de Aristóteles, (384 AC a 322 AC) aproximadamente há 2040 anos atrás, mas que ainda permanece atual.
Nicômano era o filho de Aristóteles com a escrava Herpilia. Aristóteles comenta que não possuindo riquezas, deixaria como herança a seu filho um guia para a vida em sociedade e para a interação humana.
A felicidade, (eudaimonia, “o estado de ser habitado por um bom daemon,[demônio, do ponto de vista grego] um bom gênio) não se fundamentaria em satisfações físicas e sociais como honra, prazer e riquezas mas na virtude (areté), palavra que na cultura grega, tem um sentido diferente do significado cristão, representando a idéia de excelência de desempenho em alguma atividade.
Para auxiliar o filho a desenvolver esta areté (lê-se aretê), Aristóteles esmiúça vários aspectos das relações humanas, entre eles a amizade (philia), palavra que em grego tanto representa o afeto cordial como o amor entre duas pessoas.
Sempre atento aos aspectos práticos da Ética, Aristóteles classifica a amizade em três tipos: as amizades motivadas pelo prazer, pela utilidade, ou pela amizade em si mesma.
Nos dois primeiros tipos, existe uma intenção na associação com o outro, ou na busca da satisfação dos desejos, ou na utilidade que este relacionamento traz para nós na forma de benefícios pessoais.
No terceiro tipo, no entanto, que Aristóteles classifica como o mais importante, a amizade existe apenas por ela mesma, sem qualquer interesse de parte a parte. Ama-se o amigo por razões de afinidade espiritual e não por motivos sociais ou físicos. É um relacionamento baseado na admiração mútua, e isto é suficiente.
“A amizade segundo a virtude só pode se estabelecer entre os homens que são “bons e semelhantes na virtude, pois tais pessoas desejam o bem um ao outro de modo idêntico, e são bons em si mesmos.”. Como estes (seres humanos) são raros, amizades assim também são raras.”[1]
Dizem que devemos ser gratos por nossas bênçãos. Uma das bênçãos pela qual devo agradecer é por desfrutar do privilégio de amizades virtuosas, as tais que são raras.
E embora as amizades assim não sejam baseadas em interesses pessoais, como disse, existe um benefício imediato deste tipo de associação, o compartilhar.
Fui membro da Ordem Maçônica por muito tempo. Lá observei que os costumes que estavam presentes na fundação da ordem, 1000 anos atrás, ainda permanecem vivos e ativos. O mais prosaico deles é o de dividir e compartilhar a mesma refeição, e o mesmo vinho.
Desde épocas imemoriais, a raça humana faz dos momentos a mesa um instante de consolidação dos relacionamentos e aprofundamento dos vínculos afetivos.
Provavelmente, em uma época em que a comida fosse escassa e difícil de conseguir, compartilhar alimento tornou-se a mais forte manifestação de uma vida social, onde as disputas e as competições são temporariamente suspensas e substituídas por um momento de carinho e saciedade mútua.
Se saciar nossa fome é bom, melhor seria saciar a fome em grupo. Com isso, ao mesmo tempo, combatemos a fome e a solidão.
Chamamos isto em filosofia de sensação de pertencimento. Pelo convívio em torno da refeição, consolidam-se os laços que fortalecem o grupo.
Assim foi com a Ordem Maçonica. Após um dia de estafante e perigoso trabalho, construindo catedrais góticas, no alto de andaimes precários, sujeitos aos perigos de acidentes mortais, os homens reuniam-se a noite para celebrar o fato de estarem vivos e dividir com seus companheiros de oficio esta alegria.



Ainda hoje é parte do ritual maçônico jurar proteger órfãos e viúvas. Os mesmos órfãos e viúvas resultantes dos acidentes citados.
A solidariedade se fortaleceu na divisão do ônus e do bônus envolvido na arriscada empreitada a que se dedicavam aqueles homens.


E então, à noite, vinha o banquete. Por muitos séculos, pelo menos cinco deles, não havia um ritual de iniciação à Ordem Maçônica, mas sim um banquete de recepção ao novo companheiro.
Comendo juntos, tornavam-se um só grupo, fortalecidos por pertencer a algo maior do que eles mesmo, o tal senso de pertencimento.
Compartilhar, assim, era também a forma de expandir nossos horizontes e possibilidades para além de nossas próprias limitações físicas e intelectuais.
Pelo dividir de alegrias e decepções, diminuía-se o fardo da existência e ampliava-se a capacidade de comemorar o que era gratificante. Muitas pessoas unidas pela mesma “philia”, garantiam que o conhecimento fosse uniformemente repartido entre todos os membros do grupo. A difusão da informação tornava mais hábeis e preparados os que dela compartilhavam, melhorando cada um deles e o grupo inteiro, por extensão.
Assim, talvez o maior lucro da amizade virtuosa não seja tão abstrato, mas eminentemente prático além de fundamental ao desenvolvimento da sociedade: o compartilhar.
É verdade que a afinidade entre duas pessoas antecede o compartilhar de alimento e de informação, mas é nessas atividades que o encontro se fortalece, se solidifica.
Por isso conversamos com os amigos enquanto comemos. E com a ajuda do vinho, conversamos alegremente, sem os pudores necessários a relacionamentos mais superficiais.
A humanidade é um conjunto de homens e mulheres, e não um único e isolado indivíduo.
Precisamos, por inúmeras razões, uns dos outros, para a nossa autopreservação e para garantia de uma vida de qualidade e enriquecedora.
A solidão física jamais foi a base de um espírito refinado e elaborado. Em determinada época, alegou-se que era necessário passar algum tempo isolado para desenvolver a espiritualidade, a sensibilidade espiritual.
No entanto, uma vez tendo desenvolvido esta habilidade, estes seres iluminados não fogem do convívio, mas ao contrário, procuram as comunidades para trazer seu conhecimento e sua sabedoria, compartilhando com elas aquilo que possam ter alcançado.
A base, pois da amizade, principalmente da amizade virtuosa, mas também daquela baseada no prazer e na utilidade, é o compartilhamento, o dividir dos ônus e bônus de viver.
Esta talvez seja a essência de todos os relacionamentos realmente bons e justos.


[1] http://glauberataide.blogspot.com/2008/09/as-trs-espcies-de-amizade-em-aristteles.html?n=1

domingo, 20 de janeiro de 2019

PARA QUE SERVEM OS ESCRITORES


Por Mario Sales


"Senhor, a obra fica e o homem passa.
Mas a obra é o homem. Só estas canções
no fundo incerto e oceânico da raça..."

Fernando Pessoa, "Ao infante", poema de 1921 
in Poesia 1918-1930, 2007, Companhia das Letras 


Que objetivo temos para nossos próximos dez anos?
Quais são nossas expectativas de mudança e de transformação pessoal?
Não me refiro ao corpo. Este, caminha célere e resoluto para a decrepitude e depois de alguns anos, para a cessação definitiva de atividades.
Refiro-me ao nosso espírito imortal, a verdadeira razão de estarmos neste corpo.
Digo isso porque não percebo mudanças entusiasmantes em minha própria personalidade; não noto que as inseguranças da adolescência tenham todas se dissipado com o passar dos anos.
Olhando para mim mesmo vejo ainda transformações inexpressivas.
Ouço dos que estão fora de mim críticas positivas e negativas. Meus defeitos, confesso, são mais fáceis de constatar.
Quanto às qualidades, considerando as experiências que atravessei e o tempo que duraram, poderiam ter deixado em mim traços de sabedoria mais significativos na minha modesta opinião, um pouco mais de serenidade em minha personalidade que, com sinceridade não percebo.
Só o tédio e a fadiga me fizeram errar menos, não a consciência. Ainda me vejo tomado de desejos e insatisfações que possuía na juventude.
É bem verdade que algumas coisas, poucas, se modificaram, mas reputo como irrisórias estas mudanças, mesmo que significativas.
Talvez a transformação mais importante tenha sido a diminuição do meu orgulho, diante das limitações que esta encarnação e suas peculiaridades determinaram. Minhas limitações intelectuais e físicas me fizeram muito mais humilde, menos vaidoso.
Isso, em si, já foi um progresso.
Repito: mudanças ocorreram, mas não sou capaz de classifica-las como importantes.
O que é uma pena porque, se o tempo é como diz Mario Quintana (pisca-se os olhos e passaram 50 anos) mesmo assim tive tempo suficiente para me aprimorar mais, espiritualmente ou em alguma habilidade que me trouxesse gratificação.
No fim das contas, por óbvia e evidente, esqueci de uma capacidade que se aperfeiçoou, sim, ao longo destas décadas. Falo da própria capacidade de escrever, com mais leveza, clareza, conforto.
Lembro alguns anos atrás a luta com os textos, o conflito de imagens e conceitos. Hoje, meu texto flui mais fácil, já que não procuro mais descrever objetos demasiado metafísicos e acho que, por isso mesmo, minha escrita é mais fácil e gratificante.
O ensinamento de tantos grandes escritores, entre eles o saudoso Jorge Amado, de que para ser universal, devemos escrever sobre nosso próprio quintal, foi, por mim, finalmente absorvido.
Hoje sei que falar dessa sala em que estou, do jeito como a luz do sol entra pela janela, dos objetos diante de mim, os papéis, o ventilador e seu som monótono, característico, tocam mais a alma e a imaginação de quem lê do que se eu discutisse o sexo dos anjos. Talvez por isso, textos de caráter naturalista, eróticos e violentos prendam tanto a atenção dos leitores e sejam sucessos de vendas.
Reflexões sobre coisas sutis não são nem podem ser consideradas apaixonantes.
A sensibilidade humana é, de certa forma, rude e primitiva, e responde mais intensamente a imagens mais concretas e mundanas. A descrição de seduções românticas e lutas corporais são absorvidas com rapidez e facilidade.
Isso, de modo geral.
É bem verdade que existem alguns sucessos literários que falam da busca pela perfeição espiritual ou pelo menos, por um equilíbrio psicológico mais sólido.
Nesse quesito podemos incluir a trilogia de Herman Hesse (Sidarta, Demian e o Lobo da Estepe); os livros de Kalil Gibran, principalmente “O Profeta”; e mais recentemente os dois primeiros livros de Richard Bach, duas indiscutíveis obras primas, “Fernão Capelo Gaivota” e “Ilusões”.
Recentemente, um brasileiro entrou no grupo de livros de caráter mais reflexivo muito bem-sucedidos comercialmente, um trabalho criticado mais por inveja e despeito do que por ter reais defeitos. É a história simples de um buscador no ambiente do deserto do oriente médio, que sai a procura de um tesouro, metáfora para sabedoria, passando por várias situações e locais.
O autor, pasmem, foi acusado de ter feito um texto demasiado simples, e alguns mesmo, mais agressivos, chegaram a falar de “literatura medíocre”.
Só que este livrinho despretensioso foi traduzido para dezenas de línguas e vendeu milhões de cópias.
Claro, refiro-me, já devem ter percebido, ao livro de Paulo Coelho, “O Alquimista”.
Escrito em 1988, tornou-se o livro brasileiro mais traduzido do mundo, com 70 traduções, vendendo em torno de 150 milhões de cópias.
Pelo Livro Guiness de Recordes, é o livro mais vendido da história por um autor ainda vivo.
O texto narra a saga de Santiago, um pastor que tem um sonhe recorrente, o que o leva a procurar uma vidente.
Esta interpreta o sonho como uma profecia de um tesouro no Egito, que deverá ser descoberto por ele, por causa do qual ele deverá realizar uma longa viagem de busca.
Santiago parte, e logo no inicio de sua jornada encontra outro personagem, com o sugestivo nome de Melquisedeque, que o introduz ao conceito de “Lenda Pessoal” expressão que representa a descoberta daquilo que sempre quisemos realizar e que é na verdade a realização de nosso verdadeiro objetivo na vida.
Santiago vai agora, não só em busca do “tesouro” profetizado pela vidente, mas também de sua própria “Lenda”, marcado pela afirmação de Melquisedeque de que “quando você quer algo, todo o Universo conspira para ajudá-lo a alcançar seu objetivo”.
Com este enredo simples, Paulo Coelho produziu um magnífico sucesso literário, lido por donas de casa e presidentes (é famosa a foto de Bill Clinton, com seu livro nas mãos ao descer do avião presidencial), e tornou-se ele mesmo seu próprio personagem, já que, a partir da publicação do “Alquimista”, ele Paulo achou a sua própria Lenda Pessoal e viu todos os seus sonhos mais banais se realizarem. Ou melhor, o que ele descreveu no texto, na sua imaginação, tornou-se sua própria realidade o que configura, apenas isso, um feito impressionante.
Existem outros sucessos literários que não recorrem ao tripé sexo-violência-morte, e que focam nas modificações íntimas psicológicas que todo ser humano deve atravessar.
Destaco a obra de J.K.Rollings, Hary Potter, que narra, de modo extremamente feliz, através das peripécias de três bons amigos, a aventura da adolescência, esse período mágico em que nos tornamos indivíduos.
Não é apenas o corpo, portanto, que incendeia nossa imaginação. Existem outras abordagens possíveis, bem-sucedidas, o que nos mostra que o narrador é mais importante do que a narrativa em si.
É quem conta a história que torna a história mais atraente e interessante.
Em função disto, concluo que eu mesmo não encontrei ainda minha Lenda Pessoal, e talvez seja isso que tem me incomodado, nos últimos anos.
Aliás, como lembrava Maquiavel, fenômenos literários como os descritos são uma combinação de “virtú e fortuna”, habilidade profissional, técnica, e sorte.
Até o fenômeno de Paulo Coelho costumava-se dizer que Machado de Assis não tinha sido reconhecido mundialmente porque não escrevia em inglês. Esse argumento, embora tenha lá sua pertinência, não se sustenta mais.
Talvez, isso sim, o que falte aos escritores brasileiros e de qualquer outro país, sejam temas realmente universais, que falem de problemas atávicos da humanidade. Realização pessoal é o mais importante deles.
Nada é mais universal e comum a todas as pessoas do planeta, estejam aonde estiverem, do que primeiro descobrir qual é seu verdadeiro talento, seja ele qual for, e depois levá-lo a um alto grau de excelência.
Textos que discutam, de modo simbólico, este importante drama humano sempre atrairão as mentes de todas as pessoas que vivem e respiram, que dia após dia, às vezes, arrastam-se da manhã até a noite, em funções profissionais para elas não gratificantes.
Não há maior tortura e sofrimento.
Todos nós, sem exceção, temos um papel relevante a desempenhar no teatro da vida.
Descobrir que papel é esse e expressá-lo com plenitude é nossa principal missão na existência.
E é dentro de nós mesmos que se escondem as chaves para estas descobertas, essas respostas a verdadeiras questões fundamentais, que são quem somos realmente e o que viemos fazer aqui.
A satisfação de se fazer o que se gosta é enorme, e aí, chego à uma conclusão evidente: escrever é a minha vida. Escrever, escrever e escrever.
Não sinto que sou importante em mais nada, mesmo redigindo ensaios inexpressivos ou demasiadamente pessoais. É nesse exercício diário que minha vida ganha sentido.
Procurar a palavra correta, juntá-la à outras, dar uma correta descrição dos meus sentimentos mais particulares é a minha verdadeira alquimia.
Ao escrever produzo mais um pedaço de minha pedra filosofal, meu Elixir, que me cura do cansaço e me diverte. Além disso, escrevendo, sirvo a sociedade, já que cabe ao escritor explicitar emoções e impressões subjetivas, o que auxilia a quem lê organizar suas próprias emoções.
Esclarecer o mais íntimo e oculto, esse é o papel de todo escritor, seja na prosa ou na poesia.
É exatamente para isso que servem os escritores.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

AINDA SOBRE O LIVRE ARBÍTRIO


Por Mario Sales





“...porque os costumes são tão coercitivos quanto as leis...”

Roberto da Mata, antropólogo,
na sua coluna do
Estado de São Paulo,
16 de janeiro de 2019


Eu tenho dificuldade de convencer as pessoas de que não existe tal coisa como o chamado “livre-arbítrio”.
Embora seja um conceito teórico proposto pela primeira vez por Santo Agostinho em um livro do mesmo nome, a idéia está tão entranhada na formação humana que para alguns é como a lei da gravidade. Na verdade, parte de seu sucesso ao longo dos séculos vem do fato de ser um axioma agradável ao narcisismo humano, que precisava afirmar-se diante de outras forças, divinas e metafísicas, que por muito tempo trouxe dúvidas e receios aos homens comuns. Por isso uma tese que propõe que temos a capacidade de decidir, livres de qualquer influência, nosso destino, foi aceita de imediato e elevada à condição de lei.
De tal forma que hoje, para muitos, é difícil e às vezes impossível aceitar que em nossos arbítrios, nossas escolhas, não existe e nunca existiu qualquer tipo de liberdade. Nesse mesmo espaço já falei dos três filtros das ações humanas, as três forças determinantes do nosso comportamento, porém não custa repetir.
Primeiro: em uma fase mais primitiva da humanidade, os instintos determinavam nossas ações. Guiados pelo primeiro deles, a autopreservação, os homens individualmente, e depois nas maltas, os primeiros grupos humanos que se reuniam apenas para caçar, centravam sua existência em cinco condições primárias, contra as quais não podiam se rebelar já que delas dependia suas próprias vidas. Eram os cinco As que até hoje carregamos conosco: ar, água, alimento, abrigo, afeto (inicialmente como desejo sexual).
Não importa em que região do planeta estivessem, seus atos eram guiados por estes parâmetros irrecusáveis, ditatoriais. Quantos conflitos ou mesmo batalhas foram travadas apenas para conseguir realizar estes cinco comandos biológicos.
Depois, muito depois, a estes instintos que até hoje comandam nosso comportamento, veio somar-se a lei, um conjunto de regras de comportamentos e costumes que organizava a vida na sociedade.
A lei substituiu a vontade individual e o conflito entre as partes passou a ser limitado por ela.
Quem julga, limita a ação dos que estão em julgamento, como no célebre caso de Salomão, descrito no livro de Reis 1, no capítulo 3, versículos 16 a 28, aonde ele julga a disputa de duas mulheres por um bebê que ambas alegavam ser seu filho legitimo. Salomão, como se sabe, sugere para resolver a questão, dividir com uma espada a criança em duas partes e dar metade dele a cada uma.
Uma delas aceitou. A outra absolutamente não concordou e para salvar a vida da criança, abdicou de sua reinvindicação. Assim Salomão descobriu que esta era a verdadeira mãe e a ela deu a criança.
A lei funcionou, estabeleceu justiça na solução do conflito e limitou a ação da impostora, tirando-lhe a liberdade de enganar. Até hoje é isso que a lei faz, criando regras que limitam as ações de homens e mulheres na sociedade.
Não há liberdade para matar outro homem impunemente ou para um homem forçar uma mulher a relacionar-se sexualmente contra a sua vontade, como nos tempos das cavernas. Não há liberdade nem para atravessar um cruzamento sem respeitar o internacional sinal vermelho.
E então,  estas duas restrições e determinantes do comportamento humano vem se juntar uma terceira e decisiva força, a consciência, a formação educacional ética, que nos obriga a seguir um código de conduta, a fazer somente aquilo que nossos valores morais permitam, valores estes que determinarão nossas escolhas, nossas opções diante de dois caminhos. Usa-se mesmo a expressão “fazer o certo e não o fácil” para evidenciar que este código de conduta pessoal dirige nossas ações, mesmo considerando o alerta de Nietzsche quanto a relatividade dos valores morais, que mudam de época para época, de país para país, mas que determinam nossa atitude sempre que há um conflito entre nossos interesses pessoais e os interesses de outros ou da sociedade.
Não bastassem esses poderosos inibidores da chamada liberdade do homem ao fazer suas escolhas, esses fatores às vezes competem entre eles mesmos.
A consciência moral impede que as todas as vontades do instinto sejam satisfeitas sem controle, restrição fundamental a vida em comunidade.
E a Lei às vezes vai contra nossa consciência como no caso da escravidão aceita pela lei e combatida por alguns que viam o absurdo dessa prática, mesmo em uma época em que era uma prática social comum.
Ser legal não significa ser correto, da mesma maneira que por vezes a atitude mais correta não é uma atitude legal.
E mesmo o instinto de busca de afeto, que garante a sobrevivência de nossa espécie e seu crescimento pela reprodução, mesmo este desejo legítimo do corpo precisa ser reprimido de acordo com o contexto social mais adequado.
Podemos desejar e desejamos pessoas com as quais jamais consumaremos qualquer relacionamento, porque as coisas não se resumem mais a um ato de violência sobre outro ser humano contra a sua vontade para satisfazermos nossos próprios desejos.
O instinto insiste em um desejo que a cabeça negocia e julga se é viável ou não. E como o desejo é instintivo, não desejamos quem queremos desejar, mas sim aqueles que somos levados a desejar por características as mais variadas que incluem o cheiro, o tom de voz, o modo de caminhar, e claro, sua beleza física.
Nem nosso desejo sexual é livre pois obedece ao corpo e não a mente.
Hoje em dia, isto não quer dizer que este desejo será satisfeito e muitas vezes será relegado a área da imaginação, à fantasia, que dará vida na mente àquilo que não pode ser vivenciado no corpo. Assim nascem os problemas, segundo a psicanálise.
Fantasias não realizadas transformam-se em sonhos para alguns e pesadelos para outros, fantasmas que nos assombram dia e noite, em momentos de ócio mental.
A fantasia, esta sim é livre.
E mais uma vez não temos como evita-la.
Ela invade nossa mente em pedir permissão, sem pedir licença, e nos traz, via de regra, imagens não compartilháveis, secretas, pessoais, seja para nosso deleite ou sofrimento.
Contemplemos essa disputa das forças que nos determinam com humildade e compreensão.
Fazemos o que queremos quando podemos e não quando queremos. Não temos nenhuma liberdade para escolher aquilo que realmente desejamos.
Essa sim é a verdadeira lei das escolhas.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

DAS PERCEPÇÕES


por Mario Sales



Daqui a pouco irei para casa. O expediente aqui no posto se encerrará em 20 minutos.
Parado na porta, observo a rua à minha frente.
O casario, lado a lado, à perder de vista, à direita e à esquerda.
Casas sem acabamento, dois, às vezes três andares, construídos, percebe-se, sem nenhum rigor arquitetônico.
Apenas tijolos, um ao lado do outro, um em cima do outro, sem reboco.
Uma construção assim, tosca, mal-acabada, intensifica a sensação de materialidade das coisas, de solidez, de densidade.
Aqui parado, sem ter mais o que fazer senão esperar a hora de ir embora, contemplo esta solidez e reflito sobre meus ensinamentos de iniciado.
Somos doutrinados desde os graus mais iniciais, a não acreditar nesta aparente concretude.
O iniciado não pode crer, dizem nossos orientadores, nossos autores, no que enxerga a sua frente. A realidade, eles dizem, é plástica e tanto a mente se adapta ao que vê, como o que é visto se adapta ao observador.
Todas, absolutamente todas as escolas esotéricas afirmam esta instabilidade oculta naquilo que nos parece mais denso, mais estável: a realidade a nossa frente.
É difícil entender, ou melhor aceitar, que essas construções toscas, mal-acabadas, mas de aspecto por isso mesmo extremamente sólidos, sejam apenas projeções tridimensionais de nossa mente, e que além disso esta mesma mente participe destas projeções, fornecendo aspectos ao que vemos e não apenas vendo o que é visto.
Captamos e irradiamos, dizem os esoteristas, ao mesmo tempo, o que nos cerca, até nosso próprio corpo. É como se fossemos construindo com nosso olhar, no momento mesmo que olhamos, aquilo que contemplamos.
Algo difícil de aceitar. Muito difícil. Principalmente por que o iniciado é apenas um iniciado, não um iluminado, e o fato de saber que as coisas são assim não significa que ele consiga experienciar esta instabilidade perceptiva. 
Não. 
Para mim estas casas, essa rua, tudo que vejo a minha frente parece sim, extremamente sólido. 
O iniciado é apenas uma pessoa comum com crenças no mínimo exóticas acerca das coisas e do real. A diferença é que aquilo que ele crê, para ele, é um fato a ser percebido desde que sua mente se modifique, desde que sua percepção se aperfeiçoe. Neste momento, deixarão de ser crenças e passarão a ser fatos. O mundo inteiro a sua volta será apenas aquilo que sua imaginação decidir.
Eu não sou um iluminado, só um iniciado. 
Olho para as casas e digo para mim mesmo: “Estas casas não são sólidas, apenas parecem sólidas.”, mas isto não é suficiente para que o que está a minha frente se modifique, se metamorfoseie em outras paisagens, em realidades absolutamente diferentes, novas. 
Vejo a minha frente coisas que me parecem sólidas, embora saiba que não são.
Não falo estas coisas em voz alta. São assuntos delicados, que não podem ser discutidos com qualquer pessoa, em qualquer lugar. Assuntos de iniciados. 
Para que a magia da transformação se realize, entretanto, mais do que uma crença é necessária. Precisa-se de uma alteração neurológica, e de preparo psiquiátrico para lidar com realidades incomumente instáveis, em ebulição permanente.



E mesmo sussurrando da nossa boca para nosso ouvido, ainda resta a dúvida. Os fatos realmente parecem desmentir tudo que o ensinamento iniciático nos diz.
“Bata a cabeça em uma dessas paredes e sua cabeça sangrará!” diz o cético.
Fato. Quem pode desmenti-lo?
Porque cremos, nós iniciados nestas afirmações estranhas, esdrúxulas, que a realidade como percebida, desmente?
Eu mesmo não sei. Só me lembro de um argumento de Rousseau, que dizia que embora eu não tivesse provas de alguma coisa, se todo o seu ser gritasse que esta coisa era real, deveríamos prestar atenção a este grito.
Ah o Humanismo, esse hábito de pensar que o subjetivo prova o objetivo. Essa postura não se sustenta. 
Os fatos são os fatos, dizem de maneira coerente os homens que não estão doentes da metafisica, como lembrava o poeta português.[1]
Mas o que faz um iniciado? Olha para as coisas com um olhar educado para duvidar da aparente solidez de tudo. Embora todos os argumentos sejam contra esta compreensão, algo dentro dele grita que são apenas aparências, imagens, nada mais.
Ele, iniciado, não tem provas do que sente, mas sente. 
Como uma cólica de rim, que é real, perceptível, mas não demonstrável.
Aceita-se que eu tenho dor por que se crê na minha máscara facial de dor. Ninguém sente a dor que sinto.
É algo pessoal e intransferível. A dor é nossa e de mais ninguém.
Da mesma maneira a sensação de estranheza ao aparentemente estável, ao aparentemente sólido, é uma sensação pessoal, improvável a terceiros, mas não importa. 
Como a cólica renal, não posso simplesmente negar-me a sentir o que sinto. Minha dor e minhas crenças são impossíveis de desprezar, elas me mobilizam, impõem suas presenças. Embora eu as esconda, elas estão lá.
E então como Magritte, olho para o Ovo e vejo o Pássaro.



Mas se a realidade é a realidade de cada um, se ela é como dizem os esoteristas tão plástica, porque todos temos uma impressão de ambiente comum? Por que vemos, ao mesmo tempo, pelo menos aparentemente, a mesma realidade?
Talvez o que vejamos não seja uma realidade, mas a resultante de várias realidades, a síntese possível de várias maneiras de imaginar o mundo.
Como os aros de uma bicicleta que convergem todos para o centro da roda e são cada um, de uma posição diferente.
Todos vemos um único centro de roda, mas a roda não é apenas seu centro. Na verdade, na roda, aros, centro e o círculo que sustentam são uma única experiência, um único instrumento, cujas peculiaridades e particularidades desaparecem com o rodar da roda.
A roda não é homogênea. Muitas são suas partes e divisões. 
Apenas o movimento, o seu fluir no tempo, lhe dá um aspecto de unicidade. É, da mesma forma, o nosso tempo que nos une e nos dá a sensação abstrata do mesmo.
O tempo nos une. E impregna nossa percepção. 
Pensamos em passado e futuro, mas só existe o presente eterno.
Sempre é presente, e mesmo o passado é vivenciado no presente. É o passado possível no presente que temos.
Vemos, da mesma forma, o que podemos ver. 
Vemos o que é possível ver, dentro de nossas capacidades de percepção.
Não existe um mundo lá fora. Existe aquilo que podemos enxergar.
Se vemos tristeza e conflitos, eles estão lá.
Se vemos serenidade, calma, elas estão lá.
Uma percepção não é menos “real” que a outra.
São vivências intimas. Nossas percepções são reflexos de nossas concepções. Nada mais.
A estabilidade é uma falácia.
Nada é o que parece e essas casas a minha frente também não são.
Este bairro é apenas uma imagem, uma concepção, que desaparecerá da minha frente quando sair de dentro da minha mente. Não sou o que vejo; vejo aquilo que sou, aquilo que creio.
Nada disso posso demonstrar, como não posso demonstrar uma cólica renal. As pessoas crêem nas minhas informações sobre a minha dor porque tudo indica que estou sendo absolutamente honesto, e meu sofrimento é indiscutível.
Sinto o mesmo em relação a esta estranha forma de descrever o “real”. É uma sensação extremamente forte e real, mas sou incapaz de fazer com que outro sinta o que eu sinto, que creia no que creio.
É uma experiência intransferível. Como a dor.
As casas deste bairro para mim parecem sólidas. O bairro todo parece bem sólido. E tudo em mim diz que não é.
Só uma de muitas ilusões que nos acompanham ao longo de muitas encarnações.
Afinal o que é “real”?




[1] “Há metafísica bastante em não pensar em nada. O que penso eu do mundo? Sei lá o que penso do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso. Que ideia tenho eu das cousas? Que opinião tenho sobre Deus e a alma E sobre a criação do mundo? Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos E não pensar. É correr as cortinas Da minha janela (mas ela não tem cortinas)” Fonte: https://www.mundovestibular.com.br/articles/617/2/POEMAS-COMPLETOS---Alberto-Caeiro-Heteronimo-de-Fernando-Pessoa-Resumo/Paacutegina2.html

domingo, 13 de janeiro de 2019

ELOGIO DA COVARDIA


Por Mario Sales


A coragem é cantada em prosa e verso como uma virtude fundamental. No entanto, se pensarmos essencialmente na sobrevivência do indivíduo, ser corajoso atrai muito mais riscos e perigos.
Esconder-se, esgueirar-se, manter-se discreto e, se possível, invisível, sempre foi uma estratégia mais útil para manter-se incólume em meio a tantas ameaças à nossa integridade.
Sem uma saudável consciência dos perigos que nos cercam, portanto sem o medo, temos muito mais possibilidades de caminhar para nossa própria destruição.
A covardia, portanto, nos protege.
Isto não significa que a covardia seja melhor que a coragem. Trata-se apenas de uma estratégia alternativa que deve sim ser considerada dependendo do contexto.
Usar um ou outra maneira para enfrentar os perigos, provavelmente, não é opcional. Trata-se de um traço de comportamento, na minha opinião, mais biológico que cultural.
Como este ensaio é sobre a Covardia, e como ao longo dos séculos esta forma de comportamento tem recebido críticas e ataques, resta-me, para fazer a diferença, elogiar as virtudes de ser covarde.
Primeiro: como é óbvio, o covarde é um mestre da Dissimulação. Ou por estar desiludido consigo, ou por ser realista acerca de suas reais capacidades e habilidades pessoais, o covarde sempre evitará o combate, a disputa, o confronto. Tudo que aprendeu ao longo de uma vida inteira foi ocultar, da melhor maneira possível, seus inegáveis e indubitáveis defeitos.
E aí surge o primeiro equívoco positivo que a covardia verdadeira provoca. Todo covarde, por ser covarde, é um pacifista nato, já que em função de seu medo permanente pensará seis vezes antes de reagir a uma agressão. Paralisado pelo terror, poderia ser facilmente confundido, enganosamente, como alguém acima de reações beligerantes, um ser superior, quando na verdade sua principal preocupação é a autopreservação.
Segundo: o covarde aparentará ser um indivíduo altamente racional, um ser que não cede aos impulsos ou aos desejos, da ganância, quando na verdade o que o impede de ceder é o medo das consequências de seus atos ou de um desempenho pífio. Sua autocrítica é extremamente severa e o imobiliza, impedindo gestos demasiadamente intensos.
Terceiro: ao contrário dos infelizes, existe uma certa serenidade na covardia. Os infelizes lamentam-se de sua condição. Covardes SABEM de suas limitações, que não tem qualidades das quais se orgulhar e parecem conformados com isto, desde muito cedo na vida.
Esta situação gera o segundo equívoco positivo na vida dos covardes. Por ser consciente de sua incapacidade, o covarde sempre parecerá humilde, quando na verdade, o seu comportamento reservado é uma forma de evitar que outros percebam os muitos defeitos que julga possuir.
Não se trata de alguém negativo. O covarde sabe que não é o único a ter defeitos; no entanto, por ser covarde, evitará a todo custo expor esses defeitos a outros, a não ser como uma técnica de sedução. Afinal, todo psicólogo sabe que uma aparência frágil induz em outras pessoas um instinto de proteção. O covarde usará sua aparente fragilidade para inspirar compaixão no seu objeto de desejo, que não for suficientemente sagaz será facilmente vitima desta antiga armadilha emocional.
A compaixão é o primeiro passo para a empatia, que gera ternura e depois afeto. Ser covarde não significa ser estúpido.
Todos nós participamos do jogo da vida com as cartas que recebemos, tentando usá-las da forma mais lucrativa possível. Alguns compensam sua pouca força física com a inteligência; outros compensam a falta de beleza com a eloquência ou o talento artístico. Existem mesmo aqueles que, para superar a maldade que têm dentro de si dedicam-se intensamente a atos generosos.
O covarde, por ser covarde, jamais o fará, não por uma virtude ética, mas pelo medo das consequências. Assim é com o covarde, pois até para ser realmente mal é preciso coragem. O mal é destrutivo, ativo, avassalador. O indivíduo realmente mal impõe seus desejos, tripudia sobre os outros, despreza os fracos e os limites da ética.
E para romper as barreiras morais, uma de duas coisas é necessária: supor-se acima do Bem e do Mal, ou ser um indivíduo sem escrúpulos de ultrapassar os limites do bom convívio social.
Um ser verdadeiramente superior abre as portas que parecem restringir a maioria; o indivíduo maldoso apenas derruba as mesmas portas a pontapés.
Já o covarde, exatamente por ser covarde, jamais teria atitudes intempestivas que revelassem seus verdadeiros sentimentos. Só um indivíduo maldoso corajoso o suficiente para isso manifesta publicamente sua maldade.
De qualquer forma, por não manifestar o mal que traz dentro de si, o covarde será erroneamente considerado um virtuoso, da mesma forma que atribuímos sabedoria a quem se mantém em silêncio, até que ao abrir sua boca percebamos sua enorme estupidez.
Por último, é preciso fazer uma distinção entre dois tipos de pessoas: os impulsivos e os corajosos. Na verdade, a impulsividade é resultado do descontrole dos instintos, com a perda parcial ou total do senso de autopreservação.
Como dissemos, o medo de ferir-se, de ser destruído, física ou moralmente, tem um caráter biológico saudável.
Ausência de medo não é igual, portanto, à coragem. Pode ser apenas um problema de natureza neurológica ou psiquiátrica.
Um indivíduo corajoso, ao contrário, tem plena consciência dos riscos envolvidos em suas opções de ação e, mesmo assim, tem a determinação de enfrentar esses riscos e superá-los, na busca de um objetivo.
Já o covarde, por ser covarde, jamais corre riscos, aparentando assim ser uma pessoa extremamente sensata, quando na verdade tem apenas medo do fracasso.
Não fazer o mal, portanto, não é o mesmo que ser bom. Pode ser apenas medo de revelar-se em toda a sua natureza animal e instintiva. Da mesma maneira não correr riscos pode parecer prudência e moderação, quando na verdade, às vezes é uma estratégia covarde por medo do sofrimento e da dor.