Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

CLARICE


Por Mario Sales



 

“De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo. Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe. Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. – Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo o ovo é óbvio. O ovo não existe mais. Como a luz de uma estrela já morta, o ovo propriamente dito não existe mais. – Você é perfeito, ovo. Você é branco. – A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez”.

Clarice Lispector, in “O Ovo e a Galinha”

 

Foi por esse texto, “O Ovo”, que conheci Clarice, lá se vão 45 anos.

Sua relação peculiar com a percepção, essa forma estranha de olhar as coisas, imediatamente me encantou.

E aí qual seria o próximo passo? Mergulhar em seus textos, Perto do Coração Selvagem (1943), O Lustre (1946), A Cidade Sitiada (1949), A Mação no Escuro (1961), A Paixão segundo G.H. (1964), Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969), Água Viva (1973), Um Sopro de Vida (1978).

Nestas quatro décadas, no entanto, tudo se resumiu aquele primeiro encontro, àquele primeiro impacto, e mais nada. Dialoguei com outros estudantes da percepção, principalmente da área psicológica e filosófica, Freud, Rogers, Alexander Lowen, Osho; Kant, Schopenhauer e Nietzsche.

Por algum motivo que so posso atribuir a minha habitual descontinuidade em projetos de médio e longo prazo, Clarice dormiu em uma prateleira por mais de 40 anos.

Mesmo na área poética outros ocuparam um lugar mais destacado, como Fernando Pessoa, Vinicius de Morais, Manoel de Barros, Cora Coralina e Adelia Prado. Clarice não.

E agora, como por acaso, a Rocco publica um volume denso com correspondências pessoais dessa ucraniana recifense, que até a sua morte carregou o sotaque típico pernambucano, como mostra em sua última entrevista gravada e disponível no YouTube. (https://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU)

Neste livro, “Todas as Cartas”, pode-se testemunhar o carinho e a relação afetiva entre ela e suas irmãs, seu namorado, depois marido, seus amigos.

Cartas assim eram documentos perigosos. Elas eram reveladoras porque escritas a mão.

 


Havia na época pré teclados um vagar na elaboração da idéia que os textos digitais hoje às vezes nos roubam. 

As cartas eram redigidas com prazer e relaxamento, já que não havia a necessidade do rigor dos textos racionais, principalmente aquelas dirigidas aos nossos entes queridos. 

O afeto e o carinho nos deixam desarmados, sem defesas. Escrevemos com uma sinceridade inocente, principalmente quando escrevemos a mão. E então, cartas são exercícios de associação livre de ideias, bem ao estilo da psicanálise primitiva.

Passamos de uma ideia a outra, eventualmente tocando, como que sem querer,  no coração de nossas questões mais importantes, no centro de nosso amago.

Foi assim com este livro.

As cartas de Clarice revelam, sem o desejar, o lado mais profundo de seu ser, sua alma e corpo, sua região abissal.

E uma única linha perturbou-me demasiado.

Está na carta a Tania Kaufmann, escrita na Fazenda Vila Rica, no Estado do Rio, em 1942.

Começa de modo prosaico, com o habitual “Alô queridíssima”, e algumas linhas abaixo explode em uma constatação que para mim foi como “um tapa na testa”, como diria um leitor de Masaharu Taniguchi, o fundador da Seicho No Iê. 

Diz ela: “…Cheguei mesmo à conclusão de que escrever é a coisa que mais desejo no mundo, mesmo mais que amor.”

Exato. É exatamente assim que sinto.

 

Estátua de Clarice no Recife

Tal identidade de intenções tem a característica dos pertencimentos, das especificidades que criam entre os seres humanos nichos em que grupos de pessoas que talvez nunca venham a se encontrar ou se conhecer, habitam, simultaneamente ou não.

É isso que chamamos Dharma no hinduísmo, a missão de nossa vida, aquilo que viemos fazer no mundo.

Não podemos trair o Dharma sem que isso nos traga dor, sofrimento. Existe outro nome para Dharma, desta vez na filosofia grega: physys. Diz, sobre este conceito, Miguel Spinelli: "tudo o que nasce está destinado a ser o que deve ser e não outra coisa.”

Isto é a natureza verdadeira da existência e de cada ser

Isto é Dharma. O caminho. Seu caminho. 

E existe um caminho determinado para cada indivíduo, cada espécie biológica, cada manifestação cósmica.

Para Clarice, o Dharma era escrever.

Eu entendo isso. 

Existem sim, coisas que dão sentido à existência e que, quando as fazemos, sentimos uma intima satisfação, certos de que estamos cumprindo nosso papel, explicitando aquilo que está em potencial dentro de nós.

Identifico-me com essa ideia. Meu Dharma é o mesmo. Parafraseando Elis Regina, a maravilhosa intérprete brasileira que desapareceu de modo tão precoce, “não vejo graça em mais nada na vida” senão em escrever.

É quando me sinto desarmado, calmo, sereno, produtivo, realizador, sem receios de críticas ou avaliações. 

Escrever, pra mim, seja sobre o que for, traz a atmosfera que descrevi no ato de redigir cartas a mão como Clarice em 1942, ou eu mesmo, até 30 anos atrás, antes destas modernidades informáticas, que me livraram do horror da minha caligrafia, mas, de forma sutil, tornaram, salvo equivoco, meus textos mais frios, menos emocionais.

Talvez seja coisa da idade essa falta que sinto do barulho dos tipos batendo no papel nas antigas máquinas de escrever, as mecânicas, claro, não as elétricas.

Teclados de computador são educados, polidos.

Não existem ruídos de impacto, não existe o som da campainha tão bem representado por Jerry Lewis em uma sátira famosa no cinema.

Escrever agora, é um ato silencioso, “clean”.

Clarice não viu essas contemporaneidades.

Morreu em 1977, quando eu estava no primeiro ano da faculdade de medicina, em Campos dos Goytacazes, no norte do Estado do Rio.

De repente, lendo suas cartas, e essa linha que destaquei, sinto sua falta, dessa companheira de Dharma e amiga querida que nunca conheci e cuja mão nunca apertei, mas que sabia, como eu sei, que “escrever é a coisa que mais desejo no mundo”.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

ANIVERSARIO DA LOJA ROSACRUZ RECIFE

Por Mario Sales

 



“Estudar tanto que se deixe de rezar, de se recolher, que não se leia mais a Palavra Sagrada nem as palavras dos santos, nem as das grandes almas; estudar tanto que se esqueça de si mesmo e que, de tão concentrado nos objetos de estudo, se negligencie o hóspede interior, é um abuso e uma trapaça. Supor que assim haverá maior progresso e que se produzirá mais é achar que o riacho fluirá melhor se lhe secarmos a fonte.”

A.D. Sertillanges in “A Vida Intelectual”, pág. 44, Ed.Kirion

 

O intelecto sem um compromisso com o sagrado coloca nossa alma em risco.

Parece uma declaração melodramática, mas na verdade trata-se de uma constatação banal já que sinaliza a força do personalismo e da vaidade na destruição da espiritualidade.

Humildade, como sempre repito, não é virtude, é técnica. Quanto menos atrapalharmos o fluxo livre das inspirações divinas, supondo-nos fonte daquilo que apenas captamos da Verdadeira Fonte, mais qualidade e profundidade terão nossas reflexões.

Quando temos um compromisso com o Sagrado em nós mesmos tornamo-nos canal, instrumento nas mãos de Deus Todo Poderoso, que nos usará como lhe aprouver na realização de seus desígnios e na transmissão de sua vontade e orientação.

Ora, supõe-se que aquele que conviva com o sábio, de alguma forma receba parte de sua sabedoria.

Da mesma maneira aquele que convive intimamente com o Altíssimo, independente de sua fragilidade, e inseguranças, será com certeza bafejado pela Sua magnificente presença, e já estará abençoado apenas por esta convivência. O intelecto, como organizador da escrita ou da oratória estará em seu devido lugar, de servir de pincel com o qual o Grande Artista traça as linhas de Suas obras para expressar Suas cores e visão do mundo.

Essas considerações me vêm a mente por que, na minha opinião, não há local aonde esse casamento entre razão e devoção esteja mais presente do que em corpos afiliados de AMORC.

Pela própria natureza do trabalho rosacruz, nesses locais cultua-se o bom senso, as boas atitudes, os conselhos de sabedoria, os textos de autores místicos ou filosóficos que buscaram integrar em sua obra o homem e a divindade.

Os nossos corpos afiliados são escolas de espiritualidade, espalhadas pelo mundo, onde todas as formas de pensamento religioso e linhas de conduta tem espaço para se manifestar livremente, com respeito e seriedade.

O que desejamos, enquanto estudantes rosacruzes, é investigar, discutir e aprofundar nosso conhecimento das muitas maneiras que a humanidade elaborou de relacionar-se com a Tradição, aqui entendida como um conhecimento em princípio único de normas éticas e comportamentais, que assumiu em cada região do planeta características locais que disfarçaram, mas não ocultaram sua origem comum.

Entre os muitos locais aonde este nobre trabalho intelectual e espiritual se desenrola, cito dois pelos quais tenho particular apreço: a Loja Rosacruz Guarulhos e a Loja Rosacruz Recife.

A primeira porque foi lá que encontrei um lar espiritual que me proporcionou amizades fundamentais depois que me mudei para São Paulo, como também 11 iniciações rosacruzes de templo (o primeiro grau de templo fiz na loja Jacareí) além de três iniciações martinistas.

A segunda, a Loja Recife, porque, da mesma maneira, me presenteou com amizades das quais muito me orgulho, a começar por meu saudoso mestre e amigo Frater Reginaldo Leite, o qual me introduziu aos relacionamentos com outros queridos irmãos como Frater Antonio de la Maria, Paulo Dutra e José Marcelo Sobral.

A equipe atual que coordena brilhantemente os trabalhos virtuais durante a pandemia dinamizou as relações nordeste-sudeste de forma admirável e impensável, não fossem as atuais circunstâncias.

Refiro-me ao nobre frater Rodrigo Marinho, mestre da loja, ao querido frater Marcos de Andrade Filho e a gentilíssima soror Angelica Kazue Uejima, através dos quais saúdo a toda a confraria desta que é o mais diligente centro de cultura rosacruz do Nordeste.

Nesta oportunidade em que a loja comemora seus 61 anos de existência, venho trazer minha homenagem e gratidão a este grupo seleto de trabalhadores silenciosos que nas palavras em epígrafe souberam unir seus objetos de estudo ao “hóspede interior” com elegância, equilíbrio e competência.

Meus mais sinceros votos de parabéns a todos.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

A VIDA INTELECTUAL

 

Por Mario Sales

 

Sertillanges

 

Passado este furacão estético que é ler Bachelard, dedico-me agora a degustar um saboroso texto cujo título, estimulante, é “A Vida intelectual”.

Seu autor é “Antonin-Dalmace Sertillanges, conhecido também como Antonin-Gilbert Sertillanges ou Antonin Sertillanges (Clermont-Ferrand, 16 de novembro de 1863 – Sallanches, 26 de julho de 1948), (o qual) foi um filósofo e teólogo francês, considerado como um dos maiores expoentes do neotomismo da primeira metade do séc. XX.”[1]

Não há, sem ler, como descrever a beleza e a suavidade desse texto, por várias razões, mas talvez a mais significante seja a ponte que estabelece entre a atividade cerebral e a vida devocional.

Chega mesmo a classificar o intelectual, não aquele eventual, mas o que está comprometido com a aquisição prazerosa e continuada da cultura como um “vocacionado”, à semelhança daqueles que se sentem atraídos para a vida monástica.

Vejam, o adjetivo não está equivocado, esta adesão a vida intelectual deve e precisa ser prazerosa. Não se pode mentir para si mesmo, para as tendências internas que nos mobilizam, e a vida intelectual como tantas outras tendências vem de dentro de cada um, é um chamado, não uma escolha.



O autor cita a propósito São Tomás de Aquino: se este “pode dizer que o prazer qualifica as funções e pode servir para classificar os homens, ele poderia concluir disso que o prazer pode também revelar nossas vocações.”

O “precioso conselho” de Disraëli: “Faz o que te agrada, desde que realmente te agrade” se aplica aqui.

E num trecho que aproxima a bioquímica e o misticismo, bem ao meu gosto, Sertillanges, com muita sagacidade, dispara:

“Nossas disposições são como as propriedades químicas que determinam para cada corpo, as combinações que esse corpo pode realizar. Elas não podem ser criadas. Vêm do céu e da geração natural. Toda a questão se resume a ser dócil a Deus e a si mesmo, depois de ter ouvido essas duas vozes.” (o grifo é meu)

E em outra brilhante passagem, eivada de devoção cristã, lembrando a necessidade de que cada um de nós faça de sua vida a mais produtiva possível, Sertillanges afirma:

“A humanidade cristã é composta de personalidades diversas, e nenhuma delas abdica de si mesma sem empobrecer o todo e sem privar o Cristo eterno de uma parte do seu reino. O Cristo reina, desdobrando-se. A vida inteira de um de seus “membros” é um instante qualificado da sua duração; toda existência humana e cristã é uma existência incomunicável, única e por conseguinte necessária a expansão de seu “corpo espiritual”.

Talvez um único reparo possa ser feito a essa edição, responsabilidade da Kirion, em tradução de Roberto Mallet: o prefacio foi feito por ninguém mais do que o polemico Olavo de Carvalho, que já deu amplas demonstrações de instabilidade emocional, a despeito de sua bagagem intelectual, o que em si em nada afeta a qualidade do texto e não deve, por nenhum preconceito, afastar os interessados dessa leitura.

É um livro, em tudo e por tudo, cativante.

Recomendo entusiasticamente.


[1] https://ecclesiae.com.br/index.php?route=product/author&author_id=247


segunda-feira, 9 de novembro de 2020

A MAGIA DA PALAVRA

Por Mario Sales


Gaston Bachelard

 

Enquanto escrevo ainda estou sob o impacto das últimas reflexões deste monumento literário cujo título simples – A Poética do Espaço - esconde sua complexidade e perturbadora profundidade.

Gaston Bachelard me encanta. Principalmente porque faz de sua erudição pista de decolagem e não uma âncora.

Voa, e em seu vôo, na ventania provocada pelo seu bater de asas, nos arrasta, nos desloca e desequilibra, fazendo-nos procurar em vão um apoio ou sustento no vazio. Seu olhar original e radical sobre as coisas aparentemente mais simples, uma casa, o canto de um cômodo, gavetas, cofres, ninhos de pássaros ou conchas, que são partes de nosso espaço ou no espaço das quais habitamos ou penetramos, são também capítulos deste pequeno tratado do estranhamento do que vemos, ouvimos, e costumamos classificar como expressão desses sentidos aparentemente objetivos, os quais ele perverte, descrevendo o ouvir da luz, ou a imagem do som.

“O ruído que a luz do sol faz ao bater nas paredes do quarto”. Que declaração embriagante, perturbadora, se me permitem a repetição.

A boa literatura deve nos perturbar.

“O ruído da luz do sol é como o zumbir de abelhas”.

A luz, pois, tem um som, um som característico que expande a sua manifestação e a diversifica, não mais apenas iluminação, mas também som, zumbido.

A imagem do ruído dos raios de sol, como zumbidos de abelhas é de Tristan Tzara[1] que ele extrai para fazer suas reduções fenomenológicas. Neste particular, Bachelard diferencia a abordagem fenomenológica daquela psicológica ou psicanalítica.

 



Tristan Tzara

Ao falar do som da luz do sol, ele tem o cuidado de frisar a importância de não se tentar uma análise, uma divisão em partes da imagem, no intuito de surpreender-lhe motivos ou razoes ocultas, internas. A imagem, lembra, deve ser vista como o poeta a produziu, íntegra, indivisível, como uma expressão completa em si, que não remete a questões do real ou do irreal, mas àquelas da imaginação, na qual estas classificações perdem inteiramente o sentido.

O poeta constrói uma nova realidade, talvez com alguns elementos da outra realidade que nos acostumamos de considerar a verdadeira, para dar vida a estados de manifestação paralelos e alterar o comportamento dos fenômenos, enriquecendo-os, enriquecendo-nos.

Por isso, nestas realidades, a luz pode ter som, emitir som, demonstrando uma densidade e uma solidez insuspeitas em nosso próprio mundo. E apenas porque a poesia lhe permite tal coisa por versos como

 

“E o mercado do sol entrou no quarto

E o quarto na cabeça, que zumbe”

 

E a realidade, instantaneamente, se transforma. Essa é a verdadeira magia.

A Magia da poesia.

A Magia da palavra.



[1] Tristan Tzara, nascido Samuel ou Samy Rosenstock (Moinesti, 16 de abril de 1896Paris, 25 de dezembro de 1963)[1] foi um poeta romeno, judeu e francês, um dos iniciadores do Dadaísmo. Em 1916, em plena Primeira Guerra Mundial (1914- 1918), um grupo de refugiados em Zurique, na Suíça, iniciou o movimento artístico e literário chamado Dadaísmo, com o intúito de chocar a burguesia.[2][3][4] Seu pseudônimo significaria numa tradução livre "triste terra", tendo sido escolhido para protestar o tratamento dos judeus na Roménia. Em 1917, após a partida de Hugo Ball, Tzara assumiu o controle do movimento dadaísta em Zurique. Proclamou a sua vontade de destruir a sociedade, os seus valores e a linguagem em obras como "Coração de gás" (1921), "A anticabeça" (1923) e "O homem aproximativo" (1931). Após o declínio do movimento dadá, Tzara envolveu-se no surrealismo, juntou-se ao Partido Comunista e à Resistência Francesa. Tudo isto fez com que em obras como "A fuga" (1947), "O fruto permitido" (1958), "A Rosa e o Cão" (1958), esteja patente uma consciência lírica, na qual traduziu as suas preocupações sociais e testemunhou a sua ânsia de defender o homem contra todas as formas de servidão.


sábado, 24 de outubro de 2020

A CRIAÇÃO NO FLUXO

 Por Mario Sales

 




Costumamos ter alguns vícios de representação imagística difíceis de evitar, mas passíveis de serem modificados pelo esclarecimento.

Um deles é a visualização estática, em vários aspectos.

Um desses aspectos, cuja natureza me veio num insight recente, é aquele de supor que nossa visualização será o produto da imagem que desejamos e não da imagem que desejaríamos realizar.

Explico: quando pensamos em uma casa, quando visualizamos uma nova casa, pensamos que a materialização dessa casa trará em si a concretização de todos os atributos importantes em nossa visualização mental, que a casa já virá pronta, acabada, e apenas deveremos entrar e sentar em seus sofás macios e confortáveis.

Não olhamos a materialização de um desejo mental como o produto do fluxo de oportunidades, o fluxo inerente a todo tecido vivo, que é como o místico vê a realidade.

A imagem que me veio à mente, de caráter didático, é do observador a beira do rio, que visualiza uma navegação tranquila nos momentos seguintes, quando colocará seu barco no fluxo do rio.


Na verdade, para que a navegação seja tranquila rio abaixo, devemos compreender que condições aleatórias deverão somar-se de tal forma que ocorrências desagradáveis não nos atinjam, e para isso o imponderável nos prepara um caminho cuja dinâmica só ele conhece.

O rio flui todo o tempo, atravessando áreas mais largas e mais estreitas, galhos de árvores nas margens caem dentro do rio e se transformam certas vezes em obstáculos a nossa navegação. Além disso, existem as pedras, que sempre estarão no curso de qualquer rio e que só poderão ser evitadas se passarmos ao lado delas ou sobre elas, desde que a vazão do rio permita que nosso casco se eleve acima das rochas.

Os movimentos de elevação e diminuição de nível no rio dependem da vazão dos afluentes e das chuvas.

São todos estes fatores coisas além de nosso controle, mas não do controle do Altíssimo, que sabe e pode todas as coisas, e em última análise é o responsável pelo sucesso ou fracasso de nossa jornada.

Portanto, o momento de colocar nosso barco na água não tem a ver necessariamente com a situação do rio naquele ponto em que entramos, mas sim com todas as outras condições que encontraremos rio abaixo de acordo com o somatório de acontecimentos que acontecerão nas horas seguintes ao início de nossa aventura.

Vida é fluxo.

Entramos no fluxo como quando entramos em uma auto estrada com nosso carro, tentando nos adaptar a velocidade dos outros carros, nunca devagar demais, nem rápido demais, mas em uma velocidade que se adapte ao fluxo de automóveis no qual estamos entrando.

Todos somos “nós e nossa circunstância”, dizia Ortega e Gasset. E nossa circunstância é todo o resto além de nós, sobre o qual só o Alto tem comando e conhecimento exato.

Quando visualizamos, por exemplo, uma casa, não receberemos necessariamente a casa que visualizamos, mas a casa que se transformará em alguns meses ou anos na casa que sonhamos em nossa imaginação criativa. Ela será aquilo que tiver potencial para ser.

Realizaremos algo em potencial, não o já manifesto, mas o que poderá tornar-se o que sonhamos e mesmo ultrapassar nossas expectativas iniciais, pois nossa visão na imaginação é limitada, mas o fluxo é ininterrupto, eterno, inexorável.

Recebemos em nossas materializações de visualizações aquilo que produzirá os melhores resultados, não aquilo que já está pronto e acabado.

Aquilo que já está pronto só tende a se desgastar e desaparecer, mas aquilo que é promessa tornar-se-á, dia após dia, melhor e melhor.

Portanto, rezemos para recebermos sementes e não árvores. Porque além de a semente ser a certeza da árvore, também nos permite o prazer da semeadura, do acompanhar o crescimento da planta e de desfrutar da sensação de termos, como temos, participação ativa na materialização de nossos sonhos.

Não sabemos fazer sementes, só o altíssimo sabe. Somos semelhantes aos agricultores, instrumentos de plantio e supervisão do jardim que criamos com nossa semeadura.

Nossa vida será melhor se formos apenas bons jardineiros, mas a terra já está dada; as sementes já estão dadas.

E o tempo, ah o tempo, este flui sem cessar, tornando real aquilo que, um dia, foi apenas promessa.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

ÉLITROS

 

Por Mario Sales


Coleóptero iniciando o voo: as asas internas se desdobram, enquanto os élitros se erguem.

Para quem milita na arte de escrever, palavras às vezes, como armadilhas, nos prendem inesperadamente. Fascinam-nos, de modo indiscutível, obrigando-nos a orbitá-las como satélites, presos a sua gravidade, tão mais forte quanto mais peculiar e desconhecido for o termo.

Se existe um autor onde podemos garimpar palavras inusuais, curiosas e eruditas, a um só tempo, este autor é Bachelard.

Ele escreveu entre 1932 e 1961 obras que ocupam lugar certo entre as mais belas da literatura francesa. Entrei em contato com este ilustre professor da Sorbone quando li “O direito de Sonhar”, traduzido para o português pelo meu professor, José Américo Motta Pessanha, em 1985, o mesmo que me chamou a atenção para a beleza deste autor.

Era um autor dialético, já que possuía toda uma obra dedicada ao pensamento científico, positivista, com raciocínios cartesianos, claros e distintos, ao mesmo tempo que construiu, quase como compensação, outro conjunto de textos dedicados a contemplação artística do mundo, à poesia, à imaginação.

Àquele, objetivo, científico, costuma-se chamar o “Bachelard Diurno”; este, sutil, fenomenológico, inspirado, classifica-se geralmente de “Bachelard Noturno”. Entre as obras do período noturno estão, em ordem cronológica de tradução, pela Editora Bertrand Brasil: “A chama de uma de uma Vela”, (1989); pela Editora Martins Fontes: “A Poética do Espaço”, (1989); “A Terra e Os Devaneios da Vontade”, (1991); “A Poética do Devaneio”, (1998); “A Água e os sonhos”, (1998); “Psicanálise do Fogo”, (2008); “O Ar e os Sonhos”, (2009). 

Não vou citar as obras do Bachelard Diurno porque dizem mais respeito ao pesquisador epistemológico, uma área específica do campo filosófico.  

A nós neste espaço interessa mais as suas linhas dedicadas a sensibilidade artística e poética do mundo ,pois nada está mais próximo do misticismo no mundo não iniciático, do que a arte.

Recorrendo a uma profunda sensibilidade no olhar e à valorização do sonho e da imaginação, Bachelard modifica nossa visão do comum, do hodierno e banal, dando-lhe novas significações, novas perspectivas.

No momento releio “A poética do espaço”.



É encantador um simples ninho, uma concha ou os cantos de uma casa ganharem importância nos capítulos de seu texto. 

E talvez dada a sua erudição, como também a de seu tradutor, meu antigo mestre, (além de estarmos falando de um autor da primeira metade do século XX), deparamo-nos com um sem número de termos inusitados, de uso pouco comum ou já raro, o que embeleza a narrativa e valoriza nossa língua.

É o caso dos verbos bramir (gritar) e fremir, que tem sentido igual. Ou do adjetivo “álacre” (alegre, vivo, animado). Ou mesmo do verbo “ressumar” (gotejar).

Este ensaio começou, entretanto, por causa do termo Élitros. A palavra, por alguma razão, me hipnotizou.

Sua etimologia é grega, pesquisei.

Deve ser de uso corrente no jargão de biólogos, entre estes, particularmente os entomologistas.

Élitro vem do grego Élytron, que significa estojo, envoltório. Refere-se, no texto bachelardiano, as asas externas de um besouro, de uma joaninha, aquelas que guardam, como em um estojo, as asas internas do animal.

No momento em que ela surge no texto, Bachelard está fazendo considerações sobre os cantos de uma casa. Na sua analise de regiões ou espaços de habitação, depois de contemplar "A casa e o Universo", "a gaveta, os cofres e os armários", "os ninhos" e "a concha", entra agora na topologia dos cantos de uma casa, que ele considera dignos também de uma avaliação. 

Diz: “…todo canto de uma casa, todo ângulo de um quarto, todo espaço reduzido onde gostamos de encolher-nos, de recolher-nos a nós mesmos, é, para a imaginação, uma solidão, ou seja, o germe de um quarto, o germe de uma casa.”

Jamais teria considerado tal coisa, se não lesse a descrição acima. Para todos nós, observadores descuidados e desatentos, cantos são apenas acidentes geométricos sem maior importância em um ambiente, sem significados mais profundos em si.

Curioso que eu mesmo me sinta mais confortável quando durmo encostado à parede, no canto do quarto, em uma manifestação simbólica, talvez, de proteção e apoio. Mesmo assim, nunca me ocorreu escrever sobre os cantos de minha própria casa da mesma maneira que Bachelard consegue construir todo um capítulo apenas trabalhando esta parte habitualmente desprezada de nossas habitações.

Ele cita um livro de Sartre sobre Baudelaire, aonde um trecho de um romance de Hughes é estudado. Lemos lá que: “…Emily brincava de fazer uma casa para si mesma num recanto na proa do navio…fatigada desse brinquedo, ela caminhava sem rumo em direção a popa, quando de repente, lhe veio o pensamento fulgurante de que ela era ela…”. Bachelard conclui que, “saindo de sua casa (no recanto do navio) a criança encontra o pensamento fulgurante de ser ela mesma”. Segundo sua perspicaz observação, identifica na narrativa a expressão da dualidade interior-exterior, do introvertido-extrovertido, conceitos tão caros ao psicanalista. 

É a saída do canto, a exteriorização, o ato que antecede a auto percepção, a consciência de si. Uma “explosão” na “direção do exterior, talvez como uma reação contra concentrações num canto do ser”, pensa ele.

Poucos poderiam somar erudição e discernimento para trabalhar trechos aparentemente banais com tamanha riqueza de interpretações o que só pode ser explicado por uma imaginação ativa e vigorosa, um devaneio dirigido e orientado por um poderoso intelecto, em uma potencialização de efeitos literários e práticos belíssimos.

Bachelard serve como modelo ao místico que indaga como usar a imaginação na consecução de seus objetivos. 

Ele demonstra como dirigir nossos sonhos de forma voluntaria, atribuindo ao real significado, sentido, moldando nosso presente e, se assim o desejarmos, nosso futuro.

Bachelard não é o sonhador descompromissado, se bem que dê liberdade às suas imagens e associações que, embora fluam rápido, não estão inteiramente livres, tal como um falcão treinado para a caça, que voa com suas próprias asas ao mesmo tempo que tem um objetivo definido (capturar sua presa) e um condicionamento intimo de voltar ao punho de quem o liberou para agir.

A imaginação, é esta a elaboração que faço, deve sim ser intensa em sua manifestação, mas todo o tempo deve ser controlada para não se transformar em mera fantasia.

O Bachelard Noturno procurou em seus textos compensar a frieza e objetividade epistemológica do Bachelard Diurno, mas foi graças ao seu aspecto Diurno que ele conseguiu criar uma obra reflexiva e poética com um comportamento orientado e objetivos claros, definidos.

Mesmo o sonho deve ter um sentido claro e distinto. 

Sonhos demasiadamente esotéricos são inúteis e improdutivos como uma imaginação descontrolada.

Sonhar e devanear com intenção, direção e sentido definidos tornam o sonho um instrumento para o místico, para o poeta e para o filosofo, que a partir daí, produzem uma realidade bela e artística.

Todas estas reflexões estavam guardadas neste estojo, neste Élitro de idéias que é este pequeno e fecundo livro, “A Poética do Espaço”.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

A SINDROME DE DOM QUIXOTE

 Por Mario Sales


 



“O protagonista da obra é Dom Quixote, um pequeno fidalgo castelhano que perdeu a razão por muita leitura de romances de cavalaria e pretende imitar seus heróis preferidos. O romance narra as suas aventuras em companhia de Sancho Pança, seu fiel amigo e companheiro, que tem uma visão mais realista. A ação gira em torno das três incursões da dupla por terras da Mancha, de Aração e da atalunha. Nessas incursões, ele se envolve em uma série de aventuras, mas suas fantasias são sempre desmentidas pela dura realidade. … O encanto da obra nasce do descompasso entre o idealismo do protagonista e a realidade na qual ele atua. Cem anos antes, Quixote teria sido um herói a mais nas crônicas ou romances de cavalaria, mas ele havia se enganado de século.” 
Enredo de Dom Quixote de La Mancha, da Wikipédia

“A história prefere lendas, ao invés dos homens; prefere a brutalidade à nobreza; discursos inflamados ao invés de boas ações silenciosas. A história se lembra da batalha, mas esquece do sangue.”
Citação do personagem Abraham Lincoln no filme "A. Lincoln, o caçador de vampiros"

Cervantes era um gênio literário e provou isso discutindo a dicotomia entre fantasia e realidade com humor e elegância. Curiosamente, usou os contos de cavalaria para falar deste assunto delicado, pois como dizer a alguém que ele vive de sonhos e não ser rude ou deselegante, senão através do riso?

O riso nos liberta das tensões. Quem ri não tem espaço afetivo para o ódio ou a desconfiança. Provocar o riso desarma os espíritos de forma mais eficiente que a ameaça ou através do confronto.

Penso em Cervantes quando vejo o culto contemporâneo entre esoteristas aos costumes de cavalaria, principalmente quando relacionam essas Ordens de Cavalaria às Ordens Esotéricas.

Entre os maçons é conhecido o desejo de pertencer uma tradição desse gênero, simplesmente pela vaidade que isto traz como bagagem. Veja-se o caso do Cavaleiro de Ramsay[1], um individuo sem provas de sua alegada descendência nobre, mas que incendiou as mentes impressionáveis de burgueses e políticos que estavam na Ordem Maçonica em uma época onde o ócio e a falta de motivação social tornava já inviável uma vida de aventuras viris ou mesmo segurar e conseguir levantar os espadagões usados pelos verdadeiros cavaleiros, aqueles que foram dizimados por Felipe IV , o Belo , que mandou queimar Jaques de Molay, o ultimo cruzado, em 1314.

Quatrocentos anos depois Ransay, e como eu disse sem apresentar documentos históricos que o sustentassem, afirma a Origem Maçônica nas Ordens de cavalaria, e não nas guildas de pedreiros de Londres.

Uma proposta tão sedutora foi imediatamente aclamada como verdadeira, como é comum os maçons aclamarem tudo que é vago e obscuro com palavras pomposas e elogios.

Cervantes, se estivesse presente, cairia no chão às gargalhadas. Sua obra é de 1605, pelo menos a primeira parte. O discurso de Ramsay alegando a origem maçônica nas Ordens de Cavalaria é de 1738. Mais de um século antes, Cervantes havia alertado que a cabeça vai sempre mais rápido do que o corpo e mesmo assim, Ramsay foi aplaudido e suas teses, as mais descabidas, aceitas como legitima expressão da verdade histórica. Ninguém quer ser pedreiro e construir catedrais se, sem ter que levantar, não uma espada, mas um simples punhal, puder ser cavaleiro.

A idéia de uma armadura reluzente, de um belo e imponente cavalo, mesmo que presentes apenas na imaginação, seduziram milhares de maçons pelo mundo naquela época e séculos depois.

Agora, a doença já descrita no Eclesiastes atinge a rosacruz. Vemos nos materiais de propaganda da Ordem cada vez mais imagens de cavaleiros ajoelhados, com o símbolo da AMORC ao lado, como se nossa história não fosse exatamente oposta ao confronto físico e voltada para a pesquisa silenciosa e solitária em laboratórios de alquimia e bibliotecas.

Existem fantasias absolutamente seguras, incapazes de trazer danos ao sonhador, e que alimentam os momentos de ócio, ou aproveitam tais momentos para imergir do subconsciente e esfumaçar-se frente aos nossos olhos.

Existem outras, porém, que se tornam obsessivas e perigosas por sua intensidade e pelos outros aspectos que propagam com sua presença.

Entende-se que hoje, vistas de nossa época dita civilizada, as Ordens de Cavalaria possam parecer redutos de nobreza e dignidade. Na verdade, ordens como os Cruzados ou a Ordem de Malta, sua rival, eram como se sabe, grupos para militares, formados com a intenção de proteger os peregrinos que iam para Jerusalém, ou para proteger a própria Jerusalém, quando no período de domínio cristão.

E esta “proteção” implicava o combate sanguinário e violento, com chacinas de parte a parte, os quais, segundo relatos, eram mais comuns serem protagonizados por cavaleiros cristãos contra civis muçulmanos do que cavaleiros muçulmanos contra civis cristãos. A crueldade Ocidental sempre foi notória.

As Ordens de Cavalaria não são como a fantasia atual supõe, defensoras do que era nobre e justo, e embora sua bandeira carregasse a cruz do Cristo, sua finalidade operacional era proteger bens e valores dos comerciantes que se arriscavam a fazer a trilha Europa-Oriente. Não é por outra razão que os inventores do conhecido “cheque” tenham sido os próprios templários. A fim de proteger tesouros de ladrões, em vez de carregarem ouro e jóias, os peregrinos recebiam um papel que os autorizava a sacar quando chegasse a Jerusalém, mediante sua apresentação, um valor equivalente ao que era depositado no seu país europeu de origem, antes da viagem. Aqueles hoje aclamados como defensores da Cruz foram os inventores do sistema bancário, sistema este construído e mantido mediante o emprego de uma força militar fortemente armada.

E são esses personagens que hoje, estranhamente, são cultuados como símbolos da espiritualidade.

Violentos, as vezes cruéis, ambiciosos, acumularam grande fortuna, e serviram a reis e à Igreja. Não eram defensores dos valores da fé, mas sim dos interesses financeiros e territoriais europeus.

Mesmo assim, incendeiam a imaginação dos nossos contemporâneos, que acham por bem vê-los como símbolos de um ideal de cortesia e nobreza.

Como sempre, neste mundo medíocre, são heróis os que sabem matar com espadas, não os que sabem pensar ou amar.

Cientistas sempre serão os vilões das historias em quadrinhos e os heróis serão musculosos, ou , como no caso do Hulk, cientistas só passam a ser heróis quando se transformam em bestas gigantes esverdeadas que falam com dificuldade.

Nobre, heroico, portanto, é a besta, não o pensador, não o esoterista.

Cervantes com certeza daria gargalhadas de nossos rosacruzes contemporâneos, que tendo em sua linhagem histórica nomes como Bacon, Leibnitz, Paracelso, Newton, Erick Satie e Debussy, tornam símbolos de nossa amada e pacífica Ordem membros de um grupo para militar de banqueiros internacionais.

Estes são, no entanto, os sintomas da “Síndrome de Dom Quixote”, aquela que faz leitores de romances começarem a acreditar que eles mesmos sejam os personagens sobre os quais lêem.

Por isso é tão difícil ver místicos equilibrados, já que ao contrário da imaginação ativa, que exige organização e treino, a maioria prefere a fantasia desordenada e caótica que não tem compromissos com o bom senso e que aceita qualquer papel ou enredo.

Talvez esse seja o nosso calcanhar de Aquiles.

Oremos e Vigiemos.



[1] “André Michel de Ramsay, escocês de Ayr, plebeu com fumaças de aristocracia, aportou na França depois de alijado da Maçonaria de sua pátria, por insistir em criar graus cavalheirescos. Na França, satisfez a sua ânsia de nobreza, ao ser recebido como cavaleiro da Ordem de São Lázaro (Chévalier de Saint Lazare). E tão agradecido ficou que produziu em 1737, um discurso onde pretendia aristocratizar a Maçonaria, ligando-a aos nobres das Cruzadas, o que é pura lenda.” (https://opontodentrocirculo.com/2015/09/02/o-discurso-de-ramsay/)


quarta-feira, 2 de setembro de 2020

CLAREZA

 Por Mario Sales


CARL SAGAN



Nos convites que recebo no ambiente da Pandemia, para fazer comentários para lojas Rosacruzes ao longo do país, existe sempre um toque de ansiedade e receio.Parece que no blog me sinto amparado pelas letras, sua estabilidade, o fato de poderem ser consultadas e reinterpretadas mais de uma vez, a proteção de uma pontuação com vírgulas e aspas que me auxiliam a enfatizar e destacar aquilo que seja necessário para a melhor transmissão da idéia, mas que também guie a leitura de quem vai ao texto, dizendo quando respirar, quando hesitar, antes de continuar a leitura.

Na fala via internet, na apresentação ao vivo, nem sempre temos este tipo de controle.

Existe sempre a sombra do equívoco por trás do que se diz, o perigo de ser mal interpretado ou, ainda, de ser corretamente interpretado e ter um feedback não muito agradável com o qual tem que se lidar em tempo real.

Na fase em que estou ando avesso a discussões e debates. Aliás faz anos que tais coisas me causam profundo tedio.

Aprendi que o debate pressupõe que eu posso convencer alguém de algo que ele não quer ouvir falar.

Lembro-me nessas reflexões da frase de Lacan sobre relações romântico amorosas em que afirma que amar é procurar “dar o que não se tem a alguém que não quer receber”, o que transforma o exercício do relacionamento romântico em um caos previsível e inevitável de sentimentos.

Os debates filosóficos são da mesma natureza. As pessoas amam suas posições pessoais acerca dos vários assuntos que possam considerar, sentem-se seguras em relação as suas conclusões e contrariá-las é causar desconforto na maioria das vezes, é mostrar-se aparentemente hostil ao seu modo de ser e por isso o antagonista filosófico deixa de ser um mero adversário de ideias para se tornar um inimigo mortal, ou algo perto disso na vida social.

Isso é muito cansativo. Existem muito poucas pessoas que anseiam por novas perspectivas da realidade, que concedem todo o tempo a outros a possibilidade de mudar suas posições, desde que lhe apresentem argumentos plausíveis acompanhados de preferência de demonstrações empíricas que os sustentem.

Estão de cabeça aberta ao todo, claro que não tão abertas, como advertia Sagan, com humor, que o cérebro caia, mas dispostas e ansiosas para conhecer novos e enriquecedores pontos de vista.

A maioria dos seres humanos não é assim, infelizmente.

Abrigam em seus corações a pior de todas as crenças: de que o mundo é estável e de que aquilo que é verdade hoje deverá continuar a ser verdade amanhã.

Essa rigidez mental causa muito sofrimento para o próprio indivíduo e para terceiros e é algo inadministrável, ela impede o fluxo dos fatos e da história, o fluxo das ideias e das interpretações, e ausência de fluxo, como todos sabem, é morte.

Indivíduos com posturas rígidas são sempre como zumbis espirituais, mortos que caminham.

Viver é respirar, e respirar é desfazer-se do ar usado para poder respirar um ar novo e fresco.

Ninguém inspira sem antes expirar, com desapego ao ar que se vai, sem tristeza por sua partida.

Sem essa troca constante do velho pelo novo as coisas não continuam a ser como sempre foram.

A eternidade, para ser eterna, se alterna.

Nenhuma propagação de onda viva é linear já que como lembrava Mario Quintana, “a linha reta é um traço sem imaginação”.

Tudo pulsa, tudo vibra, tudo oscila.

E pessoas rígidas de pensamento tendem a desaparecer na poeira, como troncos de árvore queimadas, mortas e escuras se desfazem com o vento.

Conhecedor desses fatos, não tenho nenhuma atração pelo chamado “debate de convencimento do outro”, embora esteja sempre ansioso por descobrir posturas diferentes da minha.

Mas nesse caso as pessoas não precisam estar presentes. Seus textos falam por elas.

Livros são bons interlocutores pois explicam calma e detalhadamente seus pontos de vista sem que possamos interrompê-los em sua exposição.

Os livros nos disciplinam, nos ensinam o silencio e atenção, nos mostram como ouvir, quietos, outros pensamentos que não os nossos.

E assim podemos discutir com pessoas vivas ou não, sobre suas posições e ideias de mundo, sem que haja qualquer risco de confronto neste conflito.

Exposições presenciais não são assim.

E por isso acho que interromperei minhas contribuições nesse sentido.

Minhas posições, eu as exponho aqui, no blog, desde 2010.

Alguns as considerarão relevantes, concordando ou não com elas; outros, como é natural, rechaçarão meus argumentos, como descabidos, mas tudo dentro do espírito elegante do debate das idéias, sem momentos de tensão, sem constrangimentos.

Esses ensaios, aliás, me permitem realizar algo como uma correspondência com centenas de pessoas simultaneamente. É triste que o hábito de escrever tenha cessado entre as pessoas e que escrever pouco e superficialmente tenha se tornado uma virtude.

Ler uma carta implicava um ritual semelhante ao do livro, em que éramos obrigados a ouvir o outro, sem interrompê-lo, até que ele encerrasse sua linha de raciocínio. Agora, as conversas são telegráficas e banais, muitas vezes sem respeito as regras da gramatica, sem pontuação que nos ajude a acompanhar o ritmo da pessoa que nos escreveu aquele bilhete. Aliás, escrever tornou-se algo cansativo, irritante, e a opção preferencial pela fala gravada, os famosos áudios, mostra esta disposição.

Paciência. A linguagem é, antes de um monumento estático, um ambiente vivo de relacionamento.

Como tal se modifica de tempos em tempos, tanto na forma como no conteúdo.

Nosso papel é acompanhá-la, com humildade, embora na minha opinião não devemos abrir mão do esforço de explanar nossos sentimentos e ideias com clareza e isso, só o texto, organizado e gramaticalmente correto, permite.

É melhor escrever que falar. E se falar, falemos com o auxílio do texto, lendo-o, falando com a tranquilidade de quem pensou antes o que deveria e como deveria dizer.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

PARA QUE SE ILUMINAR?

 Por Mario Sales



Para que queremos a iluminação?

Por que a buscamos como se fosse um objetivo de felicidade?

Talvez alguém tenha nos dito que a iluminação é o momento mais importante da senda mística, que ela é uma meta, mas também um marco de sucesso nesta caminhada.

Talvez da mesma forma tenham esquecido de nos dizer que a iluminação, se for como parece ser, é a ruptura com valores que hoje nos são caros, como amor por filhos, netos, cônjuges, etc

Na iluminação, mãe e pai deixam de ser referencias como hoje os conhecemos.

A arte que admiramos, as músicas que nos emocionam, tudo perde cor e viço e passam a fazer parte de um todo ilusório, visto realmente como ilusório e não mais como algo pelo qual se emocionar.

A iluminação traz a perfeita equanimidade, o perfeito equilíbrio.

Dessa forma não mais nos entristeceremos, mas também não mais nos alegraremos, pois a beatitude será permanente e por isso, sem a oscilação da vida comum.

Sem lágrimas, sem risos, sem apegos; sem dor, mas também sem prazer; sem sofrimento, mas também sem bem estar físico. Só o êxtase. Só a luz.

Experimente viver, mal comparando, por alguns meses no polo norte do planeta.

Tudo é branco, sempre branco, permanentemente branco. Dizem mesmo que os esquimós têm dezenas de nomes diferentes para o branco, nuances que só eles percebem.

Passe alguns meses nesse ambiente sem cor, sem contraste.

Será que sua primeira sensação será conforto, bem estar? Você que nasceu em um mundo de cor e árvores, de grama e terra molhada, suportará com conforto essa transição para o branco permanente, para o frio, muito frio, constante?

Iluminar-se é perder as ilusões, e com elas perder referenciais de existência.

Estamos prontos para isso?

Este questionamento foi feito alguns anos atrás por um monge zen contemporâneo, oportunamente trazendo a discussão para um nível mais realista, e pasmem, menos ilusório.

Nascemos em Maya, crescemos e reproduzimos em Maya, morreremos por causa de Maya, já que é em Maya que temos a sensação de estarmos vivos por um tempo e depois, não. Se a Morte é mais uma ilusão, a Vida, como a concebemos, também é.

Creio que a Iluminação não é uma experiência única, mas sim uma sucessão de estágios, cada vez mais elevados, de percepção e consciência.

Mesmo assim, ainda no primeiro estágio de iluminação, modificaremos nossas percepções da assim chamada realidade, e a vida calcada nos opostos, nos contrastes, desaparecerá.

Antecipo uma certa dose de embaraço que deve ser ocultado pelo êxtase do acontecimento.

Para recorrer a uma metáfora, a sessão de cinema se encerrará, as luzes da sala de projeção serão acesas e, subitamente, voltaremos ao que chamamos de mundo real.

As vezes o filme nem era tão bom assim, e será bom mesmo que termine; mas, e se for um filme entusiasmante, inspirador, emocionante, ficaremos felizes que acabe? Queremos mesmo que se encerre?

Da mesma maneira, juntamente com o monge zen, indago: por que queremos tanto a iluminação?

Para que a queremos?

domingo, 30 de agosto de 2020

O SANCTUM

 

Por Mario Sales








Domingo pela manhã.

Estou saindo do sanctum, ainda encharcado de emoções e vivências que só com o tempo poderei elaborar.

Não há o que descrever pois as imagens são as mesmas de todas as vezes que medito com o auxílio do exercício guiado de ascensão pela escada de Rá ao Sanctum Celestial. O que muda são os sentimentos, o grau de enlevo, traduzido no corpo por arrepios constantes que percorrem todo o corpo e acredito representam a percepção da intensificação do Nous que circula em nós, nestes momentos de êxtase.

Praticar o sanctum semanal é como quebrar a rigidez de nossa aura, refinando-a, tornando-nos mais flexíveis e psicologicamente mais equilibrados.

Em uma palavra, a prática do sanctum tem um papel terapêutico, trata nossas angústias físicas e espirituais e nos mobiliza positivamente em direção a um estado de bem estar, que os rosacruzes chamam de paz profunda.

Como a ginástica fortalece os músculos, a prática do sanctum gradualmente fortalece nosso ser psíquico, fortalecendo nossas ligações com o Eterno, refinando esta conexão.

Pensei em descrever esse estado neste texto, mas não consigo.

Qualquer palavra que use, qualquer imagem, é demasiadamente rude e grosseira para poder transmitir o que acabei de sentir.

Trata-se de vivências tão pessoais, tão profundas que não podem ser compartilhadas, não porque não desejemos, mas porque não conseguimos meios para isso, ou mesmo metáforas que nos ajudem.

Resta agradecer ao Deus de meu coração pela graça dessas experiências e voltar ao mundo objetivo atento a forma como o que acabei de receber manifestar-se-á, seja como inspiração para mim mesmo, seja como inspiração para terceiros.

Nada mais pode ser dito.


quarta-feira, 26 de agosto de 2020

O PAPEL DO LEITOR

 Por Mario Sales

 

“Por si só, um texto não é nada, como uma viagem não é nada em si mesma. É preciso uma alma que reúna os valores desta e as frases daquele, fazendo-os brilhar ao contato dessa luz misteriosa que se chama verdade ou que leva o nome de beleza.”

Padre Antonin-Dalmace Sertilanges, prefácio de “A Vida Intelectual”, editora Kírion, 2019







Toda criação artística ou intelectual tem pelo menos dois polos humanos: aquele que a produz e aquele que a consome como alimento do espírito.
O primeiro é estímulo; o segundo é reação, reação que se transforma em novo estímulo que contagia outros além dele.
Todo ato de criação é coletivo, não pertence ao pintor, ao escultor ou ao escritor, mas molda-se ao longo de eras, pela contribuição ativa dos que serão inspirados por suas cores, formas ou palavras, e que repercutindo suas emoções contemplativas espalharão a boa nova da beleza em milhares de almas, por centenas de anos.
Como uma corda que só emite som quando tangida pelo músico, para que ouçamos anos a fio o som de uma obra prima é preciso que não só o autor, mas outros que tenham sido encantados por sua beleza continuem a ferir a mesma corda ou cordas, no mesmo tom, para preservar a sua propagação, a sua existência.
Como a música não é possível apenas com um instrumento, sem um musico que o toque, um quadro ou um texto dependem não só de suas cores e conceitos, mas de quem se maravilhe e emocione com o que vê ou com o que lê.
Esse é o papel do contemplador, do leitor, que com suas experiencias no contato com a obra, e suas reações aos afetos que extrai desta vivência, multiplica-a muitas e muitas vezes e amplia o significado antes simples e único em interpretações complexas e múltiplas.
Como os quadros precisam de quem os contemple, os textos dependem daqueles que os lêem e com eles se encantam. O escritor, por mais isolado que pareça em seu ofício, busca o contato com todos os seres, denuncia sua ânsia de compartilhar apenas pelo simples gesto de escrever e descrever sentimentos, imagens, ideias.
Você que me lê, não me lê apenas, mas com minha permissão, entra no meu mundo intelectual e participa por algumas horas, das minhas visões de mundo e dos meus anseios os mais íntimos, mesmo que eu os expresse de forma velada e metafórica.
Existe em todo autor uma expectativa muda, intensa, acerca de cada encontro de seus textos com um novo par de olhos, um novo coração. Talvez entre todos, os poetas sejam os mais explicitamente engajados em provocar respostas afetivas aos seus jogos de letras e expressões; entretanto, independente do estilo, quem escreve sempre espera ser lido e mais que isso, compreendido, aceito, amado por quem o lê, dada sua imensa necessidade de carinho e atenção.
Cada texto é um convite para uma dança espiritual que, espera-se, seja aceito com alegria, para que mais alguém reconheça tanto a existência do dançarino como a beleza de dançar.
Escrever ou ler é como dançar, em um ritmo específico, onde um guia e o outro acompanha.
Nesta dança compartilhamos instantes, carinho e arte.
E a essência da arte é compartilhar beleza e inspiração.
Oxalá meus textos dancem com alegria por anos, independente de minha presença.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O LEGADO DE CARL SAGAN

 Por Mario Sales



Certo dia, nas minhas andanças de internauta, encontrei um dos mais maravilhosos vídeos de Carl Sagan que assisti em toda a minha vida.

Sempre o admirei e tive como modelo de educador, de homem de ciência, preocupado que era em universalizar os conhecimentos da física e retirar a pecha de esoterismo que ainda recobre a prática cientifica como um todo.

As nuances matemáticas e os meandros de raciocínios de pesquisadores em campos de alta complexidade são de fato, inalcançáveis a não ser para profissionais da área. Só que os conceitos, as ideias chave de determinado campo, além de suas questões fundamentais investigadas através deste mecanismos e raciocínios experimentais e matemáticos, estas podem sim ser explicadas e compartilhadas com uma enorme população de seres humanos leigos aos quais estas descobertas interessam sobremaneira, já que alterarão para sempre seu modo de ver o universo e a existência.

E era isso que Sagan fazia: explicava conceitos, traduzia de maneira compreensível ideias e procedimentos que trouxeram a ciência e a humanidade até o ponto em que chegou.

No caso do vídeo em questão, (disponível em https://www.youtube.com/watch?v=OQAMTt1LbYE)

Sagan explica didaticamente o conceito de dimensões e a relação entre as três conhecidas e uma quarta possível.

Em alguns minutos, ele desfez equívocos, fantasias e ilusões que se espalham como erva daninha e prejudicam a linguagem e a comunicação.

Sua didática foi uma homenagem ao pensamento de Comenius[1], educador da Moravia, rosacruz e pai da chamada moderna arte da educação.

Aliás, em um de seus livros publicados após a morte de Sagan, o professor brasileiro Marcelo Gleiser escreve na introdução que “quanto a Sagan, a falta que fará é indiscutível”.

Estamos cercados de eruditos.

Estamos cercados de sábios e especialistas, que insistem em querer dizer a nós, pobres leigos, como o mundo deve ser compreendido. O problema é que antes de nos dizer como o mundo deve ser, deveriam deixar claro como ele é. Falar em linguagem acessível sobre os postulados do conhecimento, traduzindo conceitos, fora do jargão acadêmico, jargão esse criado para facilitar a vida de quem trabalha naquele campo e ao mesmo tempo afastar dali quem não trabalha.

Precisamos de mais pontes, não de mais ilhas, passagens de um ponto a outro que possam estabelecer uma troca mais rica entre todas as áreas e enriqueçam-nas, mutuamente.

Só existirá interdisciplinariedade, termo tão usado hoje em dia quanto vago, quando houver uma linguagem comum e ampla compreensão das partes envolvidas dos pressupostos da outra parte. Para isso precisamos de pessoas que façam a tradução dos diversos dialetos da ciência em uma linguagem única e compartilhada, sem a qual esta conversa será sempre impossível.

Sagan tinha essa capacidade. Não tratava seus interlocutores como idiotas, não usava de diminutivos em relação aos conceitos que explicava, uma maneira disfarçada de chamar os outros de infantis, apresentava as ideias sem trair sua essência, sem abusar de metáforas que pudessem antes de auxiliar, obliterar ainda mais a visão clara do conceito.

Era direto na apresentação dos fatos, como diretos e objetivos devem ser as pessoas honestas.

Aquele erudito que recorre a linguagem demasiado rebuscada mostra que não tem interesse em ser compreendido, mas sim em ser elogiado por todos aqueles que confundem erudição com falta de clareza.

Existe um ditado falso e preconceituoso entre os médicos de que “quem sabe, faz, e quem não sabe explica”.

O fato é quem sabe realmente explicar, faz melhor. E quem faz bem o que faz, sabe descrever com precisão e arte, cada passo que dá na direção do objetivo.

Todos os conceitos e técnicas, creio eu, podem e devem ser traduzidos em linguagem acessível, desde que exista competência em quem o faz, além de um interesse genuíno em compartilhar aquele conhecimento.

São essas as duas colunas do compartilhamento: vontade e competência.

Competência sem vontade é uma condescendência esnobe com os menos favorecidos intelectualmente; Vontade sem competência didática, é inútil, mas já é melhor do que a hipótese anterior.

Sagan tinha o melhor das duas qualidades.

E usava-as sem medo, alheio as críticas de puristas vaidosos que achavam sua cruzada de esclarecimento da ciência inadequada e desnecessária.

Dominar informações que outros não dominam é poder. Poucos querem renunciar a isso.

Afinal, um linguajar rebuscado serve também para esconder a mediocridade do espírito, e antes de tudo ocultar a atitude covarde de não expor sua própria falta de talento. Por isso muitas pessoas usam a seguinte frase para fugir a perguntas que não sabem responder: “Mais pra frente você entenderá”, aliás uma frase comum entre maçons, tanto quanto entre intelectuais medíocres.

Quem compartilha sem medo está seguro do que sabe e do que não sabe, não tem medo de ensinar como não tem medo de ignorar ou de dizer: não sei.

Aliás, a meu ver, não existe nenhum problema em tornar real um saber interdisciplinar, a não ser o medo dos envolvidos de perder seu poder na relação inversa do crescimento do conhecimento de todos.

O ocultar sempre foi uma forma de esconder, não de revelar.

Este período acabou.

Mãos a obra.


[1] Comenius nasceu em 28 de março de 1592, na cidade de Uhersky Brod (ou Nivnitz), na Morávia, região da Europa Central que pertencia ao antigo  Reino da Boêmia e que hoje corresponde à parte oriental da República Checa. Viveu e estudou na Alemanha e na Polonia. Foi o último bispo da Igreja Hussita e tornou-se um refugiado religioso. Foi um inovador e um dos primeiros defensores da universalidade da educação, conceito que defende em seu livro “Didactica Magna”. Considerado o pai da educação moderna, aplicou um método de ensino mais efetivo, a partir dos conceitos mais simples para chegar aos mais abrangentes. Aconselhava o aprendizado contínuo, por toda a vida, e o desenvolvimento do pensamento lógico, em vez da simples memorização.