Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

ANIVERSARIO DA LOJA ROSACRUZ RECIFE

Por Mario Sales

 



“Estudar tanto que se deixe de rezar, de se recolher, que não se leia mais a Palavra Sagrada nem as palavras dos santos, nem as das grandes almas; estudar tanto que se esqueça de si mesmo e que, de tão concentrado nos objetos de estudo, se negligencie o hóspede interior, é um abuso e uma trapaça. Supor que assim haverá maior progresso e que se produzirá mais é achar que o riacho fluirá melhor se lhe secarmos a fonte.”

A.D. Sertillanges in “A Vida Intelectual”, pág. 44, Ed.Kirion

 

O intelecto sem um compromisso com o sagrado coloca nossa alma em risco.

Parece uma declaração melodramática, mas na verdade trata-se de uma constatação banal já que sinaliza a força do personalismo e da vaidade na destruição da espiritualidade.

Humildade, como sempre repito, não é virtude, é técnica. Quanto menos atrapalharmos o fluxo livre das inspirações divinas, supondo-nos fonte daquilo que apenas captamos da Verdadeira Fonte, mais qualidade e profundidade terão nossas reflexões.

Quando temos um compromisso com o Sagrado em nós mesmos tornamo-nos canal, instrumento nas mãos de Deus Todo Poderoso, que nos usará como lhe aprouver na realização de seus desígnios e na transmissão de sua vontade e orientação.

Ora, supõe-se que aquele que conviva com o sábio, de alguma forma receba parte de sua sabedoria.

Da mesma maneira aquele que convive intimamente com o Altíssimo, independente de sua fragilidade, e inseguranças, será com certeza bafejado pela Sua magnificente presença, e já estará abençoado apenas por esta convivência. O intelecto, como organizador da escrita ou da oratória estará em seu devido lugar, de servir de pincel com o qual o Grande Artista traça as linhas de Suas obras para expressar Suas cores e visão do mundo.

Essas considerações me vêm a mente por que, na minha opinião, não há local aonde esse casamento entre razão e devoção esteja mais presente do que em corpos afiliados de AMORC.

Pela própria natureza do trabalho rosacruz, nesses locais cultua-se o bom senso, as boas atitudes, os conselhos de sabedoria, os textos de autores místicos ou filosóficos que buscaram integrar em sua obra o homem e a divindade.

Os nossos corpos afiliados são escolas de espiritualidade, espalhadas pelo mundo, onde todas as formas de pensamento religioso e linhas de conduta tem espaço para se manifestar livremente, com respeito e seriedade.

O que desejamos, enquanto estudantes rosacruzes, é investigar, discutir e aprofundar nosso conhecimento das muitas maneiras que a humanidade elaborou de relacionar-se com a Tradição, aqui entendida como um conhecimento em princípio único de normas éticas e comportamentais, que assumiu em cada região do planeta características locais que disfarçaram, mas não ocultaram sua origem comum.

Entre os muitos locais aonde este nobre trabalho intelectual e espiritual se desenrola, cito dois pelos quais tenho particular apreço: a Loja Rosacruz Guarulhos e a Loja Rosacruz Recife.

A primeira porque foi lá que encontrei um lar espiritual que me proporcionou amizades fundamentais depois que me mudei para São Paulo, como também 11 iniciações rosacruzes de templo (o primeiro grau de templo fiz na loja Jacareí) além de três iniciações martinistas.

A segunda, a Loja Recife, porque, da mesma maneira, me presenteou com amizades das quais muito me orgulho, a começar por meu saudoso mestre e amigo Frater Reginaldo Leite, o qual me introduziu aos relacionamentos com outros queridos irmãos como Frater Antonio de la Maria, Paulo Dutra e José Marcelo Sobral.

A equipe atual que coordena brilhantemente os trabalhos virtuais durante a pandemia dinamizou as relações nordeste-sudeste de forma admirável e impensável, não fossem as atuais circunstâncias.

Refiro-me ao nobre frater Rodrigo Marinho, mestre da loja, ao querido frater Marcos de Andrade Filho e a gentilíssima soror Angelica Kazue Uejima, através dos quais saúdo a toda a confraria desta que é o mais diligente centro de cultura rosacruz do Nordeste.

Nesta oportunidade em que a loja comemora seus 61 anos de existência, venho trazer minha homenagem e gratidão a este grupo seleto de trabalhadores silenciosos que nas palavras em epígrafe souberam unir seus objetos de estudo ao “hóspede interior” com elegância, equilíbrio e competência.

Meus mais sinceros votos de parabéns a todos.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

A VIDA INTELECTUAL

 

Por Mario Sales

 

Sertillanges

 

Passado este furacão estético que é ler Bachelard, dedico-me agora a degustar um saboroso texto cujo título, estimulante, é “A Vida intelectual”.

Seu autor é “Antonin-Dalmace Sertillanges, conhecido também como Antonin-Gilbert Sertillanges ou Antonin Sertillanges (Clermont-Ferrand, 16 de novembro de 1863 – Sallanches, 26 de julho de 1948), (o qual) foi um filósofo e teólogo francês, considerado como um dos maiores expoentes do neotomismo da primeira metade do séc. XX.”[1]

Não há, sem ler, como descrever a beleza e a suavidade desse texto, por várias razões, mas talvez a mais significante seja a ponte que estabelece entre a atividade cerebral e a vida devocional.

Chega mesmo a classificar o intelectual, não aquele eventual, mas o que está comprometido com a aquisição prazerosa e continuada da cultura como um “vocacionado”, à semelhança daqueles que se sentem atraídos para a vida monástica.

Vejam, o adjetivo não está equivocado, esta adesão a vida intelectual deve e precisa ser prazerosa. Não se pode mentir para si mesmo, para as tendências internas que nos mobilizam, e a vida intelectual como tantas outras tendências vem de dentro de cada um, é um chamado, não uma escolha.



O autor cita a propósito São Tomás de Aquino: se este “pode dizer que o prazer qualifica as funções e pode servir para classificar os homens, ele poderia concluir disso que o prazer pode também revelar nossas vocações.”

O “precioso conselho” de Disraëli: “Faz o que te agrada, desde que realmente te agrade” se aplica aqui.

E num trecho que aproxima a bioquímica e o misticismo, bem ao meu gosto, Sertillanges, com muita sagacidade, dispara:

“Nossas disposições são como as propriedades químicas que determinam para cada corpo, as combinações que esse corpo pode realizar. Elas não podem ser criadas. Vêm do céu e da geração natural. Toda a questão se resume a ser dócil a Deus e a si mesmo, depois de ter ouvido essas duas vozes.” (o grifo é meu)

E em outra brilhante passagem, eivada de devoção cristã, lembrando a necessidade de que cada um de nós faça de sua vida a mais produtiva possível, Sertillanges afirma:

“A humanidade cristã é composta de personalidades diversas, e nenhuma delas abdica de si mesma sem empobrecer o todo e sem privar o Cristo eterno de uma parte do seu reino. O Cristo reina, desdobrando-se. A vida inteira de um de seus “membros” é um instante qualificado da sua duração; toda existência humana e cristã é uma existência incomunicável, única e por conseguinte necessária a expansão de seu “corpo espiritual”.

Talvez um único reparo possa ser feito a essa edição, responsabilidade da Kirion, em tradução de Roberto Mallet: o prefacio foi feito por ninguém mais do que o polemico Olavo de Carvalho, que já deu amplas demonstrações de instabilidade emocional, a despeito de sua bagagem intelectual, o que em si em nada afeta a qualidade do texto e não deve, por nenhum preconceito, afastar os interessados dessa leitura.

É um livro, em tudo e por tudo, cativante.

Recomendo entusiasticamente.


[1] https://ecclesiae.com.br/index.php?route=product/author&author_id=247


segunda-feira, 9 de novembro de 2020

A MAGIA DA PALAVRA

Por Mario Sales


Gaston Bachelard

 

Enquanto escrevo ainda estou sob o impacto das últimas reflexões deste monumento literário cujo título simples – A Poética do Espaço - esconde sua complexidade e perturbadora profundidade.

Gaston Bachelard me encanta. Principalmente porque faz de sua erudição pista de decolagem e não uma âncora.

Voa, e em seu vôo, na ventania provocada pelo seu bater de asas, nos arrasta, nos desloca e desequilibra, fazendo-nos procurar em vão um apoio ou sustento no vazio. Seu olhar original e radical sobre as coisas aparentemente mais simples, uma casa, o canto de um cômodo, gavetas, cofres, ninhos de pássaros ou conchas, que são partes de nosso espaço ou no espaço das quais habitamos ou penetramos, são também capítulos deste pequeno tratado do estranhamento do que vemos, ouvimos, e costumamos classificar como expressão desses sentidos aparentemente objetivos, os quais ele perverte, descrevendo o ouvir da luz, ou a imagem do som.

“O ruído que a luz do sol faz ao bater nas paredes do quarto”. Que declaração embriagante, perturbadora, se me permitem a repetição.

A boa literatura deve nos perturbar.

“O ruído da luz do sol é como o zumbir de abelhas”.

A luz, pois, tem um som, um som característico que expande a sua manifestação e a diversifica, não mais apenas iluminação, mas também som, zumbido.

A imagem do ruído dos raios de sol, como zumbidos de abelhas é de Tristan Tzara[1] que ele extrai para fazer suas reduções fenomenológicas. Neste particular, Bachelard diferencia a abordagem fenomenológica daquela psicológica ou psicanalítica.

 



Tristan Tzara

Ao falar do som da luz do sol, ele tem o cuidado de frisar a importância de não se tentar uma análise, uma divisão em partes da imagem, no intuito de surpreender-lhe motivos ou razoes ocultas, internas. A imagem, lembra, deve ser vista como o poeta a produziu, íntegra, indivisível, como uma expressão completa em si, que não remete a questões do real ou do irreal, mas àquelas da imaginação, na qual estas classificações perdem inteiramente o sentido.

O poeta constrói uma nova realidade, talvez com alguns elementos da outra realidade que nos acostumamos de considerar a verdadeira, para dar vida a estados de manifestação paralelos e alterar o comportamento dos fenômenos, enriquecendo-os, enriquecendo-nos.

Por isso, nestas realidades, a luz pode ter som, emitir som, demonstrando uma densidade e uma solidez insuspeitas em nosso próprio mundo. E apenas porque a poesia lhe permite tal coisa por versos como

 

“E o mercado do sol entrou no quarto

E o quarto na cabeça, que zumbe”

 

E a realidade, instantaneamente, se transforma. Essa é a verdadeira magia.

A Magia da poesia.

A Magia da palavra.



[1] Tristan Tzara, nascido Samuel ou Samy Rosenstock (Moinesti, 16 de abril de 1896Paris, 25 de dezembro de 1963)[1] foi um poeta romeno, judeu e francês, um dos iniciadores do Dadaísmo. Em 1916, em plena Primeira Guerra Mundial (1914- 1918), um grupo de refugiados em Zurique, na Suíça, iniciou o movimento artístico e literário chamado Dadaísmo, com o intúito de chocar a burguesia.[2][3][4] Seu pseudônimo significaria numa tradução livre "triste terra", tendo sido escolhido para protestar o tratamento dos judeus na Roménia. Em 1917, após a partida de Hugo Ball, Tzara assumiu o controle do movimento dadaísta em Zurique. Proclamou a sua vontade de destruir a sociedade, os seus valores e a linguagem em obras como "Coração de gás" (1921), "A anticabeça" (1923) e "O homem aproximativo" (1931). Após o declínio do movimento dadá, Tzara envolveu-se no surrealismo, juntou-se ao Partido Comunista e à Resistência Francesa. Tudo isto fez com que em obras como "A fuga" (1947), "O fruto permitido" (1958), "A Rosa e o Cão" (1958), esteja patente uma consciência lírica, na qual traduziu as suas preocupações sociais e testemunhou a sua ânsia de defender o homem contra todas as formas de servidão.