Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sábado, 21 de novembro de 2015

MISTICISMO NÃO É RELIGIÃO


Por Mario Sales, FRC, SI




Algumas considerações sobre algo que parece óbvio, mas não é.
Em um antigo ensaio (Doutrina X Orientação) mostrei que, ao invés da idéia corrente de que a palavra “doutrinar” significa impor idéias, e que, quem não impõe idéias, não doutrina, é um erro conceitual.
Qualquer escola de pensamento, qualquer grupo de pensadores, que se dispõe a chamar-se organizado, tem uma doutrina e conhecê-la é o mínimo que seus associados tem por obrigação.
Falemos pois sobre a "Doutrina Mística".
A partir de um corpo de conhecimento específico e comum (doutrina do movimento, grupo ou escola) pode-se então seguir em frente autonomeando-se membro de um conjunto de pessoas com “pensamentos afins”.
A AMORC se intitula uma escola esotérica e, como tal, emite ensinamentos em forma de apostilas (monografias) que são distribuídas em um sistema de graus ascendentes separados por iniciações, solitárias, no sanctum no lar, ou templárias, com impacto psicológico bem mais profundo.
Portanto, grau a grau, um conjunto de conceitos, uma doutrina, portanto, é passada àqueles que são membros ativos, e que estudam suas apostilas, quintas à noite, ou na noite que escolheram para tal.
A AMORC é, portanto, uma escola de Misticismo, e não uma religião. Como escola, tem um currículo e uma didática própria na transmissão deste currículo mínimo. Membros das mais variadas religiões e mesmo ateus podem participar de seus estudos. Sua liberdade de pensamento, é prometido, será respeitada, e não tolerada, como é comum ler em nossos textos.
Tolera-se algo que nos incomoda e que, por estratégia de convivência social e civilização, decidimos não combater, mas suportar.
Existem comportamentos mentais e físicos difíceis de suportar e estes merecem o adjetivo de tolerados em prol de uma convivência social pacífica.
As diferenças de crenças entre os diversos tipos de personalidades humanas ou grupos de pensamento, desde que pacíficas e minimamente civilizadas não precisam ser “toleradas”, mas totalmente aceitas como parte da natureza da vida humana normal, que é, de per si, ricamente heterogênea em sua apresentação.
Esta é a característica do pensamento místico: ele é um corpo de idéias profundas que estão na raiz de todos os movimentos religiosos, mas que não se confundem com eles, permitindo uma linguagem comum entre linhas religiosas de manifestação diferentes.
A AMORC, na minha humilde concepção, é este tipo de escola. Ela trabalha com valores fundamentais e não superficiais, e um místico de AMORC reconhece no Sufi, o místico islâmico, e no cabalista, o místico judeu, irmãos de jornada e companheiros de compreensão.
Linguagens diferentes, pensamentos iguais, como se a mesma idéia fosse narrada em três ou mais idiomas diferentes, diferindo apenas na tradução e expressão linguística, não no pensamento que a gerou.
Por isso, embora tenha princípios nos quais se sustenta, postulados (a experimentação pessoal, e não a crença, de um caráter transcendente interior; a prevalência do pensamento sobre a matéria, a Unidade oculta na aparente Diversidade da Natureza), portanto, AMORC não tem dogmas, e espera pacientemente que cada rosacruz, em seu tempo, e do seu modo peculiar, usufrua plenamente de todas as possibilidades interiores que como ser humano, pode desfrutar, se adequadamente preparado para isso.
Nisto difere absolutamente de processos religiosos, uma vez que, pela própria natureza das religiões, exceção feita ao Budismo, os dogmas religiosos devem e tem de ser compartilhados por todos os membros daquela confissão. O espaço para divergências é mínimo, e deve ser preenchido apenas por alterações formais, de discurso ou comportamento, que não apresentem qualquer ameaça às concepções maiores daquela crença. É o exemplo das Ordens, dentro da religião Católica Apostólica Romana, o caso mais conhecido de administração da diferença dentro de uma suposta unidade de pensamento, que qualquer místico sabe ser impossível, já que como foi dito, a Natureza, seja a Humana ou o resto da Criação, consagra desde seu princípio a Heterogeneidade e a mutação, e não a manutenção do status-quo.
A diferença entre o misticismo e as religiões é a mesma entre a água e as pedras do rio. A fluidez e a adaptabilidade do pensamento místico rivaliza com a rigidez aparente das pedras rígidas das religiões, sendo que embora pareçam obstáculos, na verdade apenas aceleram o fluxo da água que passa ao seu redor e segue, rio abaixo, sempre.
Vejo estudantes de AMORC confusos às vezes sobre estas diferenças, não de forma importante, mas significativa. Eventualmente, nota-se uma rigidez vitoriana na avaliação do comportamento pessoal de fratres ou sorores; às vezes, por outro lado, nota-se uma devoção religiosa em certas situações de templo, ou da vida dentro de corpos afiliados, que não condizem com o pensamento místico.
A rigor, o trabalho místico é solitário e pessoal, sendo que seu mais importante laboratório está dentro dele mesmo. O Templo se faz necessário em raras situações e durante um tempo curto e se levássemos estas considerações ao pé da letra, a existência física de uma estrutura internacional para a AMORC seria inviável.
Por isso caminhamos sobre o fio da navalha, como fez Papus, quando reorganizou a Ordem Martinista em um modelo Willermoziano, com graus e templos, e chamou-a de Martinista, ao mesmo tempo, a qual, se verdadeiramente o fosse, não necessitaria de nenhuma estrutura material, mas apenas de pessoas que iniciassem umas às outras.
Este paradoxo, que eu reconheço como insolúvel, se quisermos, como queremos, divulgar o pensamento místico de forma regular e organizada no planeta, como temos feitos nos últimos cem anos, faz do esforço administrativo de AMORC aparentemente meramente financeiro e material, mas não é. Não haveria estrutura nenhuma a criticar se desprezássemos o aspecto material e mesmo aqueles que criticam, no fundo foram beneficiados pela existência destas estrutura, construída e mantida com enormes dificuldades nestas últimas décadas.
O que em nada muda o fato de que, como escola mística, AMORC não tem Igrejas, e o comportamento dos rosacruzes deve ser o menos dogmático possível e mesmo o regulamento que nos rege deve ser aplicado com sabedoria salomônica e não com um rigor de disciplina militar. Da mesma maneira, devemos ser flexíveis em nossa compreensão mística, entendendo que não somos um grupo de crentes, mas sim de pessoas que experimentaram a Shekinah, a presença divina dentro de nós mesmos.
Trata-se de uma experiência, não apenas uma crença.
Não se trata de fé, mas de vivência interna desta conexão com esta Transcendência, experiência esta que é intransferível e solitária, mas que nos conecta a todos em um verdadeiro sentimento de pertencimento.
Não devemos nos comportar como torcedores de um time de futebol que se sentem na obrigação de menosprezar outros times adversários, mas reconhecer o Divino em todas as manifestações ou caminhos da espiritualidade naturalmente heterogêneas na manifestação, mas unas no sentido profundo.
A oração rosacruz, portanto, nada tem a ver com a prece religiosa, que muitas vezes é repetida de maneira mecânica, e sem espírito. Quando um rosacruz ora tem a liberdade de seguir algum protocolo ou um texto pré-estabelecido de prece, mas o ideal é que orasse sempre com palavras próprias combinadas de forma original, como se (e é isso que ocorre) conversássemos por vídeofonia com o Altíssimo, de forma relaxada e coloquial. A oração mística é apenas a manifestação vocal desta conexão que caracteriza a vida mística e que não pode em momento algum ser desfeita, mesmo que em certas situações angustiantes pareça que sim.
A conscientização objetiva e subjetiva desta conexão é a manifestação comum a todos os iniciados e a mais importante consequência da verdadeira iniciação.
E não pode de modo algum ser confundida com a pratica religiosa, embora usemos palavras semelhantes como prece, oração, e busca do Divino.
Tudo isso pode parecer óbvio e pode ser, queira Deus, que eu esteja ensinando padres a rezarem missa, mas se for assim, agradecerei milhões de vezes ao Altíssimo pela inutilidade de minhas reflexões, como agradeço já a ele se tais reflexões forem úteis a algum Frater ou Soror de AMORC.
Assim seja.