Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

terça-feira, 31 de julho de 2018

PONTOS DE VISTA


Por Mario Sales



Encontrar o justo equilíbrio entre segurança e liberdade, já dizia Bauman (e Obama) é muito difícil.
Se temos mais de uma, temos menos da outra, não importa nossa vontade pessoal ou nossas crenças.
Em uma visão realista de um mundo cada vez mais difícil de administrar, onde a violência e o mal persistem como mórbida presença na sociedade, a instabilidade é a única certeza em todas as nossas atividades profissionais e relacionamentos.
Místicos, pessoas preocupadas em descobrir o que de mais profundo se oculta nas aparências, para além dos físicos de partículas e dos psicanalistas, também participam da vida social como qualquer ser humano.

Edmund Husserl


Todos os místicos têm em comum o alento de serem capazes de ver um sentido e uma linha de proposito no aparente caos que nos cerca. Um certo pensador alemão, chamado Husserl, dizia que “a consciência é doadora de sentido” e, portanto, nada impede que os céticos nos acusem de ver na vida um sentido que se baseia em nossas crenças pessoais. Concedo tal posição, contra argumentando, entretanto, que não crer também é uma crença, um paradigma, que permite uma visão da vida mais objetiva, mas não mais ampla.
Sempre temos pressupostos a partir dos quais examinamos o mundo. As desejadas lentes transparentes e incolores não existem para a mente.
O ceticismo, no entanto, para ser fiel a sua origem, deve, como diz a piada, ser cético também quanto a si mesmo.
Quando um nobre rosacruz do século XVII deu ao mundo com seu “Discurso do Método”, os primeiros traços do ceticismo como ferramenta de investigação, buscava livrar a mente de ilusões e fantasias, na construção de um conhecimento de certeza, confiável, sustentado.
É necessário lembrar que este mesmo pensador rosacruz tinha uma crença inabalável na existência de Deus e não desejava com suas especulações dar munição ao ateísmo, mas sim combater a superstição.
Por que crer e ser cético ao mesmo tempo sofre dos mesmos problemas citados antes entre segurança e liberdade. Só que do mesmo modo que ter mais segurança garante uma liberdade melhor e uma maior liberdade, seja no caráter religioso, intelectual ou de imprensa, torna a vida em sociedade mais segura, o ceticismo, paradoxalmente, pode ajudar a crer de forma mais fundamentada. Não apenas porque se quer crer, mas por ser a crença produto de uma percepção interior indubitável, embora pessoal e intransferível.  
O problema é que a fé não fundamentada em sensação e percepção interna, a fé do religioso que se baseia apenas e tão somente em uma crença construída culturalmente, é diferente da convicção mística da presença de Deus em nós e em todas as coisas.
Como neste campo estamos em terreno perigoso e movediço, é preciso cuidado e prudência, já que estamos falando de sensações subjetivas, do sujeito.
E como lembram os grandes iniciados, místicos não trabalham com a hipótese antropomórfica da divindade.
Eles narram em seus textos e cartas sentimentos pessoais e impressões que o atingem da mesma maneira que a beleza de uma escultura ou o delicioso e fascinante desconforto que vem da contemplação dos quadros de Dali, ou de Magritte, ou mesmo de Picasso na fase cubista.
Não cremos, nós, místicos. Sabemos que Deus está aqui, da mesma maneira que sentimos o vento invisível tocar nosso rosto, ou a luz do sol nos aquecer a pele. No nível mais profundo, sentimos em nosso íntimo o êxtase de estarmos em contato com pessoas e coisas que perdem a estranheza quando mergulhadas em um contexto de interligação, que é a lente dos óculos místicos para contemplar o mundo que nos cerca.
Lentes vermelhas, mundo vermelho; lentes azuis, mundo azul; lentes foscas, pouco transparentes, e o mundo assim será também, fosco, sem beleza, distorcido.
Depois do microscópio e do telescópio, não ver alguma coisa, sabe-se, não quer dizer que ela não está lá.
Um ceticismo parcial e metodológico é útil.
O ceticismo total, sem a dose adequada, no entanto, conspira contra a busca da verdade.
É preciso ser cético quanto ao ceticismo, por prudência, não por ideologia. A verdade deve estar no meio de tudo, dançando como uma odalisca, vestidas com vários véus.
O mesmo pensador citado acima, que falava que o sentido era dado pela consciência, também defendia que o melhor método de investigar os fatos era manter todas as nossas certezas em suspenso, entre aspas, enquanto durasse nossa busca, nossa analise do objeto de estudo, fosse uma rocha ou uma sociedade primitiva.
A pressa é inimiga da compreensão adequada.
Deixemos que nossa sensibilidade à arte, à musica, à beleza enfim sejam nossas guias na busca da verdade, e não a emoção ou a razão apenas.
Essa sensibilidade é a metodologia mística de investigação, superior ao ceticismo puro e simples, pois nos ensina a perceber o invisível como se sólido fosse sensibilidade que é uma ferramenta altamente desenvolvida de compreensão dos fenômenos a nossa volta.
É isso.




quinta-feira, 26 de julho de 2018

FILÓSOFOS DO FOGO



Por Mario Sales

Na revisão que temos feito nos últimos seis anos, com dois veneráveis mestres martinistas, de Ísis sem Véu, de 1877 e da Doutrina Secreta, de 1888, de Helena Petrovna Blavatsky, duas obras clássicas do esoterismo e da Sociedade Teosófica, encontramos várias e elogiosas referências aos rosacruzes.
Ísis sem Véu Inicialmente foi intitulada “O Véu de Ísis, um título que permanece no cabeçalho de cada página, mas teve que ser renomeado uma vez que Helena descobriu que este título já havia sido usado para um trabalho Rosacruz de W.W. Reade, em 1861


William Winwood Reade[1]

É importante frisar que Blavatsky[2], por ter passado pela transição em 1891, não conheceu a iniciativa de Spencer Lewis, a AMORC, e nem seu trabalho de reorganizador dos trabalhos rosacruzes na América do Norte, já que a Ordem foi restaurada nos EUA apenas em 1915.
Quando citava os rosacruzes, portanto, ela se referia a nossa Ordem tradicional, que teve papel fundamental no esoterismo europeu, de maneira mais visível entre o século XIV e XIX.




Tobias Churton


Ao contrário de Tobias Churton, professor inglês da Exeter University, especialista em esoterismo, autor de “A História secreta da Rosacruz, os invisíveis”, publicado em português pela Ed. Madras, Blavatsky não tem senão boas referências sobre nossa Ordem, mas como ele, romanticamente crê que jamais nos reunimos em grupos, jamais nos organizamos em comunidades e que nossa ligação era tão mística quanto nossos interesses, provavelmente baseada em telepatia e projeção astral e não em conversações humanas hodiernas, comuns.
A Rosacruz autêntica sempre foi menor que a sua lenda. Sua sombra, neste caso particular, é mais forte do que a luz que a projeta, ou por outra, aqueles que se debruçam sobre sua história são, tornam-se, frequentemente, prisioneiros de uma visão ingênua e irrealistica.
Churton, nascido em 1960 e por isso um historiador contemporâneo, diz, por exemplo, com todas as letras, que os Rosacruzes modernos são apenas uma pálida alegoria dos antigos e tradicionais rosacruzes e que a AMORC é uma fraude, produto do trabalho do publicitário Spencer Lewis.
Diz ainda, demonstrando seu pouco bom senso, que se fossemos rosacruzes autênticos, seríamos absolutamente secretos e ninguém saberia de nossa existência.
O que chama a atenção nesse comentador é a enorme erudição por trás das tolices que afirmam. Mesmo sendo membro da Universidade, nota-se que mesmo assim é capaz de fazer declarações absurdas e descabidas, fruto de seu preconceito, da sua pouca maturidade, do seu pouco conhecimento da natureza humana e do verdadeiro trabalho esotérico.
Os rosacruzes, antes de rosacruzes, são seres humanos. Como tal, estão sujeitos a todas as limitações ligadas a esta condição. Em uma ordem tolerante e livre como a nossa, internacional, a única coisa que se repete, monotonamente, é a diferença de comportamento, de credo religioso, cultura e nacionalidades, entre nossos fratres e sorores.
Churton supõe, infantilmente, que todos os autêntico rosacruzes são seres iluminados e isentos de ligações com o Carma, esquecendo fatos históricos (o que é grave para um historiador) como os problemas pessoais e reais enfrentados por nossos mais destacados representantes ao longo dos séculos, desde o assassinato bárbaro de nosso fundador, o faraó Akhenaton, em um golpe de estado, até a vida conturbada de nosso maior esoterista no século XIV, John Dee, vítima de um charlatão que destruiu sua vida privada, e mesmo assim dono de grande conhecimento alquímico, conhecimento este que inspirou Francis Bacon, nascido em Londres, em 1561, (Galileu nasce em 1564 e Descartes, filosofo e rosacruz, em 1596)  no século XVI, filosofo, chanceler inglês e nosso imperator, que de modo súbito saiu de uma situação de prestigio para a prisão na Torre de Londres, se bem que por um breve período, tendo sido condenado por pratica de corrupção, a pagar pesada multa e proibido de exercer a advocacia, em 1621, aos 60 anos; ou das dificuldades de Giusepe Bálsamo no século XVIII, o Conde de Cagliostro, responsável pelo moderno ritual em nossas ritualísticas, e que, infelizmente, fez a sua transição na masmorra da Bastilha, em Paris, vítima indefesa da calunia e da perseguição.
Não, rosacruzes não são santos, nem anjos ou espíritos invisíveis como supõe o tolo professor inglês supracitado, e muito menos estão a margem da existência comum, sujeita a ventos e tempestades. São, como repetimos sempre, um conjunto de homens e mulheres dedicados ao estudo das leis universais e a sua aplicação na vida cotidiana. São estudantes, e apenas nisto se harmonizam uns com os outros: nós, rosacruzes, somos um grupo de curiosos investigadores da natureza, mesmo que por meios às vezes diferentes do consagrado método científico, para o qual aliás, nossos pensadores (Descartes, com o Discurso do Método; Bacon com o Novum Organum; e Newton com Princhipia Matematica) contribuíram decisivamente.
Da mesma maneira, Blavatsky tem também tem de nós uma visão idealizada, se bem que mais simpática, e em sua poderosa erudição, que ela afirma não ser sua, mas de Ku Thu Mi, Morya e Saint German, ela nos atribui conhecimentos e conceitos ausentes de nossas modernas monografias e talvez mais relacionados ao período anterior a publicação da Doutrina Secreta e Isis sem Véu.
Lemos no volume 1 da Doutrina Secreta, no Proêmio da Cosmogênese, que "O conhecimento do Espírito absoluto, tal como a refulgência do sol e o calor do fogo, não é outra coisa senão a própria Essência absoluta", diz Sankarâchârya. É "o Espírito do Fogo", não o Fogo em si mesmo; portanto, "os atributos deste último, o Calor e a Chama, não são atributos do Espírito, e sim daquilo de que o Espírito é a causa inconsciente". Não é a proposição anterior a verdadeira chave da filosofia dos últimos Rosacruzes?”(chamo a atenção para o adjetivo “últimos” que sugere nossa extinção como Ordem física)
Mais à frente, nos comentários do segundo verso da  Estancia 3, “O despertar do Cosmos”, escreve HPB: “Segundo os ensinamentos dos Rosacruzes, tais como interpretados pelos profanos (e desta vez em parte corretamente), "a Luz e as Trevas são idênticas em si mesmas, sendo separáveis tão-só na mente humana"; e, segundo Robert Fludd, "a escuridão se fez iluminar para se tornar visível".[3] Fludd, ou “Robertus de Fluctibus (Milgate House, Thurnham, Kent, 17 de janeiro de 1574 -Londres, 8 de setembro de 1637 ), foi mais um dos famosos rosacruzes dos séculos XVI e XVII.
Diga-se de passagem, que também não era um “invisível”. Estudou artes em Oxford, no Saint John the Baptist College, e medicina no College of Physicians de Londres. Médico, exerceu sua profissão até sua morte, em Londres.
E o que dizer de John Dalton, rosacruz e químico do século XIX, contemporâneo de Blavatsky, nascido em 1776 e falecido em 1844, trinta e três anos antes da publicação de Isis sem Véu. Foi ele o primeiro cientista a propor a natureza atômica da matéria. Publicou livros, ministrou palestras e de modo algum poderia ser classificado como um ser social invisível.
Blavatsky demonstra aqui que mesmo grandes esoteristas, orientados por mestres cósmicos, podem incorrer em equívocos.
Mais à frente, nos comentários ao oitavo verso da Estancia 3, numa belíssima passagem que revela todo seu conhecimento universalista e esotérico, diz ela:
“É ainda igualmente significativo o estranho símbolo adotado; seu verdadeiro sentido místico é a idéia de uma matriz universal, representada pelas Águas Primordiais do Abismo, ou abertura para a recepção e a subsequente saída daquele Raio Uno (o Logos), que contém em si os outros Sete Raios Procriadores ou Poderes (os Logos ou Construtores). Daí terem os Rosacruzes eleito por símbolo o pássaro aquático (seja o cisne ou o pelicano) com os seus sete filhotes (símbolo modificado e adaptado à religião de cada país. Ain Sof é chamado no Livro dos Números a "Alma de Fogo do Pelicano". Surge em cada Manvantara como Nârâyana ou Svâyambhuva, o Existente por Si, e, penetrando no Ovo do Mundo, dele sai no final da divina incubação, como Brahmâ ou Prajâpati, o progenitor do Universo futuro, no qual se expande.
É Purusha (o Espírito), mas também é Prakriti (a Matéria).”
Ora, qualquer rosacruz que tenha pertencido ou pertença à Ordem Maçônica, em qualquer de suas potências aceitas, verá que aqui não temos um símbolo rosacruz, mas sim um símbolo eminentemente maçônico, ligado ao chamado "Grau do Cavaleiro Rosacruz", ou Grau 18, que foi equivocadamente atribuído aos rosacruzes em si.





Na verdade, a simbologia do Pelicano que morde o próprio peito e tira seu próprio sangue para dar como alimento aos seus sete filhotes refere-se a este grau da maçonaria e representa, na simbologia maçônica, o desenvolvimento da virtude da misericórdia, como lembra talvez o mais importante autor maçônico brasileiro, o alagoano Nicola Aslan.
Os símbolos realmente secretos dos rosacruzes no século XVI e XII, estão descritos na preciosa obra que AMORC reeditou juntamente com a Editora Renes, em 1978, e que foi publicado originalmente em ALTONA, Alemanha, em 1785 e editado e impresso por J. D. A. Ackhardt.
Estou aberto a críticas, mas nas pesquisas que fiz não encontrei nenhuma referência a este símbolo fora do ambiente da maçonaria.
Ainda em referência a esta citação, transcrevo a nota de rodapé, a qual, como não tem identificação, atribuo a escritora:
“Que espécie de ave seja, cygnus, anser ou pelicanus, não importa, pois é sempre uma ave aquática que flutua ou nada sobre as águas, como o Espírito, saindo depois para dar nascimento a outros seres. A verdadeira significação do símbolo do grau dezoito dos Rosacruzes é exatamente essa, embora depois o tivessem poeticamente convertido no sentimento maternal do pelicano que dilacera o próprio peito para alimentar com seu sangue os sete filhos pequeninos.”[4]
Salvo, como lembra sempre meu bom irmão Flavio Bazzeggio, um grave erro de tradução ou de impressão, aqui a declaração é mais embaraçosa, considerando a importância da obra e o indiscutível conhecimento da autora-escritora, como ela mesma se identifica, em certas passagens. Fala-se em um Grau Dezoito dos Rosacruzes. Que se saiba, não existe tal grau, nem nunca existiu, já que ao contrário da Ordem Maçônica e do Martinezismo de Vilermoz e Papus, que sempre se organizaram através do sistema de graus, a Ordem Rosacruz, a não ser na pratica contemporânea, mais recente, da AMORC, tradicionalmente sempre formou comunidades que transmitiam a todos todo o conhecimento disponível através de seus rituais, de acordo com sua capacidade e maturidade, exceção feitas às práticas esotéricas das pirâmides escolas, no antigo Egito, onde haviam sim níveis diferentes de ascensão ao conhecimento mais profundo.
Assim tanto na colônia da Philadelphia[5] quanto sob o comando de Hyeronimus, último imperator europeu e transmissor das credenciais que permitiram a Spencer Lewis continuar o trabalho rosacruz na América do Norte, o que havia era uma comunidade discreta de iniciados que trocavam entre si os textos e as informações tradicionais guardadas e retransmitidas por séculos.
Gostaria de insistir que, embora os seguidores de mestre Johanes Kelpius, que fundaram a comunidade rosacruz da Filadélfia, fossem discretos, não eram de maneira algumas invisíveis, como desejaria Churton, citado no início desta fala. Eram homens e mulheres comuns no aspecto e nos gestos, mas incomuns na busca sincera de uma espiritualidade mais profunda.
Blavatsky continua seu raciocínio na mesma página, mais abaixo dizendo, ao comentar a Estancia 9:
“9. [A Luz é a Chama Fria, e a Chama é o Fogo, e o Fogo produz oCalor, que dá a Água — a Água da Vida na Grande Mãe.]
 Convém ter presente que os termos "Luz", "Chama" e "Fogo" foram adotados pelos tradutores do vocabulário dos antigos "Filósofos do Fogo" a fim de tornar mais claro o significado dos termos e símbolos arcaicos empregados no original.”
E, em uma nota de rodapé, em relação à expressão Filósofos do Fogo, HPB explica:
“Não os alquimistas da Idade Média, mas os Magos e os Adoradores do Fogo, de quem os Rosacruzes ou os filósofos per ignem, sucessores dos teurgistas, houveram todas as idéias referentes ao Fogo, como elemento místico e divino.”
Para a grande mestra e fundadora do esoterismo moderno, o Fogo é um símbolo primordial na compreensão do significado intrínseco do mundo místico.
Lembro a todos, como fiz em ensaio anterior analisando na época o linguajar esotérico de Martinez de Pasqually, que a palavra Fogo pode e deve ser considerada no mesmo sentido de sua sucessora, Energia, como modernamente nomeamos esta noção de força motor invisível da vida.
Neste aspecto, Blavatsky afirma a importância dos rosacruzes no conhecimento deste conceito.
Diz ela:
“Que diz o ensinamento esotérico a respeito do Fogo? "O Fogo é o reflexo mais perfeito e não adulterado, assim no Céu como na Terra, da Chama Una. É a Vida e a Morte, a origem e o fim de todas as coisas materiais. É a Substância divina." Assim é que não só os Adoradores do Fogo, os parses, mas até as tribos errantes e selvagens da América, que se dizem "nascidas do fogo", demonstram mais ciência em sua fé e mais verdade em suas superstições que todas as especulações da física e da erudição moderna. O cristão que proclama "Deus é um Fogo vivente", e fala das "Línguas de Fogo" do Pentecostes e da "sarça ardente" de Moisés, é tão adorador do fogo como qualquer "pagão". Dentre os místicos e cabalistas, os Rosacruzes foram os que definiram mais corretamente o Fogo.”[6]
Esta menção de Blavatsky demonstra o respeito e a admiração que a nobre esoterista nutria por nossa sublime Ordem. É preciso ler outros esoteristas para ter a dimensão correta da nossa importância, nós, rosacruzes, ao longo da história do esoterismo e do misticismo.
Ela, Blavatsky, nos considerava como referenciais históricos da compreensão mais perfeita de um dos mais esotéricos conceitos do misticismo: a noção da Energia Essencial do Universo, que nós chamamos em nosso jargão rosacruz, NOUS.
Além disso, na acepção de HPB, nossa Ordem é também referencial para a própria noção do que seja a prática verdadeiramente esotérica.
No rodapé da página 313, da mesma publicação, diz HPB:
“A palavra Mysterium é assim explicada pelo Dr. Hartmann, segundo os textos de Paracelso, que ele tinha diante de si: “De acordo com o eminente Rosacruz, "Mysterium é tudo aquilo que é capaz de desenvolver algo que aí se acha apenas em estado de germe. Uma semente é o Mysterium de uma planta, o ovo é o de um pássaro etc."
Esta é uma belíssima formulação do conceito do mistério. Existem momentos na leitura da Doutrina Secreta que são pura poesia. E esse é um deles.
Entender o Mistério como o potencial oculto no germe das coisas, e o Místico como aquele que é capaz de percebê-lo, é compreender o mais recôndito significado do termo Misticismo.
Forçoso é referir-se ao quadro de Magritte[7] abaixo, como representação pictórica do que foi dito.






Místico, pois, é aquele que vê para além da forma exterior, para o mistério por trás do além das aparências, para além do comum dos mortais.
Não se trata de um dom paranormal, mas do desenvolvimento da mais comum das capacidades do intelecto e do espírito: o aprimoramento da sensibilidade, presente naquele que contempla com enlevo uma escultura ou naquele que se emociona ao ouvir uma peça de Debussy ou de Erik Satie, para ficar apenas nos pianistas também rosacruzes.
É a sensibilidade aperfeiçoada que faz do místico ou da mística, indivíduos capazes de olhar o mundo pelos olhos de Deus.
É condição si ne qua non para dizer-se místico, ser uma pessoa sensível, capaz de ouvir no silêncio a melodia do Cosmos, o OM silencioso dentro e fora de nós.
E aqueles que não se emocionam ao contemplar o desabrochar de uma planta ou com as imagens magníficas do Universo que o Huble, este maravilhoso telescópio que tanto fez por nosso conhecimento astrofísico, às vias de aposentar-se, nos deu, não pode considerar-se místico verdadeiramente.
É isso que aprendemos ouvindo a grande mestra não rosacruz, porém discípula pessoal do mesmo Hierofante ao qual prestamos reverência, Ku-Thu-Mi.
Lembremos: foi HPB que nos informou em primeira mão da existência da Fraternidade Branca e de alguns de seus membros; foi através de seus textos que incendiaram a imaginação de milhares de pessoas, que esses seres habitavam o mesmo mundo que nós habitamos, revelando-se de tempos em tempos àqueles que demonstrassem merecimento kármico.
Dos dois grandes esoteristas escritores do século XIX, Eliphas Levi dedicou-se a detalhar procedimentos e métodos ligados a prática da Magia, enquanto Blavatsky preocupou-se em desvelar a história esotérica da humanidade, nos revelando uma outra realidade que jaz por trás desta realidade que tanto nos aflige e angustia.
Um exemplo desta contribuição foi levado ao cinema nos Estados Unidos, em uma película patrocinada na época pela Ordem Rosacruz. Chamou-se Horizonte Perdido, e sua produção é de 1937, dirigida por Frank Capra, um cineasta interessante para qualquer rosacruz.
No filme, revela-se a existência de uma comunidade oculta nas montanhas onde um povo simples e ordeiro cultiva a saúde através da serenidade, da alimentação balanceada e dos bons pensamentos.
A comunidade chamava-se Shangri-Lá, e a saga foi originalmente apresentada em um livro do escritor inglês radicado nos EUA, James Hilton, em 1933, para ser depois levada ao cinema. Alguns aqui se lembrarão da refilmagem feita em 1973, com musica de Burt Bacharah, mas foi a primeira versão a mais impactante, mostrando a quem fosse capaz de ver um retrato vivo da comunidade de iniciados que viviam no Himalaia, gozando de segurança para preservar os textos mais sagrados da humanidade.
Essas revelações baseiam-se primeiramente nas informações trazidas a luz por Blavatsky através da sua monumental obra A Doutrina Secreta, a qual sucede os volumes anteriores de Ísis sem Véu, seu outro grande trabalho.
É pela importância desta senhora na história do esoterismo que muito nos envaidece que ela nos cite, a nós rosacruzes, com tanto respeito e admiração.
Blavatsky travou uma luta desigual com os céticos e cientistas da época, o que a levou a tratar de maneira injusta a própria ciência em si.
Mas mesmo assim, ela revela grande interesse em fundamentar em bases sólidas suas informações e afirmações, de maneira que em muitas passagens revela grande simpatia por alguns dos luminares da ciência da sua e de outras épocas, da opinião dos quais se socorre para defender seus pontos de vista.
É assim que encontramos em Ísis sem véu um comentário positivo acerca de um dos mais notáveis rosacruzes de todas as épocas, Isaac Newton.
Diz ela:
“Há cientistas e cientistas; e se as ciências ocultas sofrem, na instância do Espiritismo moderno, da malignidade de uma classe, elas tiveram, não obstante, os seus defensores em todos os tempos entre os homens cujos nomes derramaram luzes sobre a própria ciência. No primeiro posto está Issac Newton, "a luz da Ciência", que acreditava plenamente no Magnetismo tal como fora ensinado por Paracelso, Van Helmont e os filósofos do fogo em geral. Ninguém ousará negar que a sua doutrina do espaço e da atração universal é tão-só uma Teoria do Magnetismo. Se as suas próprias palavras significam alguma coisa, elas querem dizer que ele baseou todas as suas especulações na "alma do mundo", o grande agente universal e magnético que ele chamava de divine sensorium. "Aqui", diz ele, "trata-se de um espírito muito sutil que penetra tudo, mesmo os corpos mais duros, e que está oculto na sua substância. Pela força e pela atividade desse espírito, os corpos se atraem uns aos outros e se mantêm juntos quando colocados em contato. Através dele, os corpos elétricos operam à distância mais remota, tanto quanto se estivessem próximos, atraindo-se e repelindo-se; por este espírito a luz também flui e é refratada e refletida, e aquece os corpos. Todos os sentidos por esse espírito e por ele os animais movem os seus membros. (...) Mas estas coisas não podem ser explicadas com poucas palavras e não temos experiência suficiente para determinar plenamente as leis pelas quais opera esse espírito universal".
No segundo volume, em um trecho, ela reforça a impressão de que os rosacruzes autênticos haviam desaparecido, o que na verdade confirma nossa discrição em todas as eras.
Diz ela, ao comentar sobre espíritos da Natureza:
“Embora os espiritistas procurem desacreditá-los tanto quanto possível, esses espíritos da Natureza são realidades. Se os gnomos, silfos, salamandras e ondinas dos Rosa-cruzes existiram em seus dias, eles devem existir agora.”
Deste trecho depreendemos duas coisas: primeiro, que os dias de existência dos rosacruzes na época em que ela escreve, são considerados coisas do passado e segundo que, a nós rosacruzes, ela atribui a concepção da existência de seres elementais, seres dos elementos da natureza, florestas, montanhas e rios, ou pelo menos, que ao longo de nossas práticas mágicas desenvolvemos a capacidade de vê-los e interagir com estes seres de dimensões diferentes da nossa. Também esta é uma informação que não está nas monografias.
O que é mais curioso é que, ao que tudo indica, já nos textos de Ísis sem Véu, em 1877, ela aparenta ter estudado o trabalho esotérico de nossa Ordem, nos dando a autoria de teorias e formulações originais sobre a Criação.
Assim afirma lá pelas tantas que:
“A teoria Rosa-cruz de que todo o universo é um instrumento musical é a doutrina pitagórica da música das esferas.”[8]
Neste particular lembro a todos que ao longo de seus estudos receberam um teclado musical que é parte dos ensinamentos monográficos, estabelecendo a relação entre certos sons e certos órgãos do corpo, bem como pela prática de sons vocálicos em nossos rituais afetamos voluntaria e conscientemente a ação de certas glândulas e plexos do corpo.
Em nenhum texto que li nestes 43 anos de rosacrucianismo encontrei, no entanto, referência explicita ao entendimento de que todo o universo fosse um instrumento em si.
Essa informação só encontramos em Ísis sem Véu, informação que enriquece nossas concepções históricas acerca de nossa Ordem.




[1]William Winwood Reade (26 dezembro 1838 – 24 abril 1875) foi um historiador, explorador e filosofo Britânico, Escocês.
[2]Blavatsky nasceu em Ekaterinoslav, Império Russo, atualmente na Ucrânia, 30 de julho - 31 de julho de 1831 (calendário juliano) (12 de agosto de 1831 (calendário gregoriano)) — Londres, 8 de maio de 1891).
[3] Roberto Fludd, também conhecido como Robertus de Fluctibus (Milgate House, Thurnham, Kent, 17 de janeiro de 1574 - Londres, 8 de setembro de 1637) foi um médico paracelsista, alquimista, astrólogo, matemático e cosmologista inglês. Sua vida foi fortemente ligada ao esoterismo. Estudou artes em Oxford, no Saint John the Baptist College, e medicina no College of Physicians de Londres. Morreu em 1637. Viajou pelo continente europeu por anos e depois estabeleceu-se em Londres como médico.
[4] Nota 41, pag. 136, Doutrina Secreta, volume 1, Cosmogênese, Editora Pensamento, 1980
[5]No final do século 17, na sequência de um plano inicialmente proposto por Francis Bacon em A Nova Atlântida, uma colônia Rosacruz foi organizada para estabelecer as artes e as ciências da Rosacruz na América. Em 1694 colonos Rosacruzes realizaram a arriscada viagem através do Oceano Atlântico em um navio especialmente fretado, a Maria Sarah, sob a liderança de Johannes Kelpius, mestre de uma Loja Rosacruz na Europa. Após o desembarque na Filadélfia, os colonos estabeleceram ali seu primeiro assentamento e depois mudaram-se para mais a oeste da Pensilvânia, em Ephrata. Johanes Kelpius e seus seguidores viveram à margens do rio Wissahickon Creekum afluente do Rio Schuyllkil na Filadélfia de 1694 até sua morte. Essa comunidade Rosacruz teria feito contribuições valiosas para a cultura emergente americana nas áreas de impressão, da filosofia, das ciências e das artes. Posteriormente, eminentes americanos tais como Benjamin Franklin, Thomas Jefferson e Thomas Paine estava intimamente ligado com a comunidade Rosacruz. De fato, muitos rosacruzes desempenharam um papel importante no processo alquímico e na formulação de fundamentos sociais que levaram à fundação daquela nova e grande nação.
[6] Idem ibidem, pág.137
[7] René François Ghislain Magritte (Lessines, 21 de novembro de 1898― Bruxelas,15 de agosto de 1967) foi um dos principais artistas surrealistas belgas, ao lado de Paul Delvaux.

[8] Ísis sem Véu, volume II, Ed. Pensamento, pág. 194

segunda-feira, 2 de abril de 2018

A MAGIA DA PALAVRA


Por Mario Sales





Escrever sobre não poder escrever é estranho.
Sempre reputei esses textos que são feitos para quebrar os períodos de bloqueio criativo como ruins, no mínimo, pois são como uma máquina oxidada pela falta de uso que range quando começa a funcionar; que aquece, produz fumaça, expelindo por seus exaustores o pó dos meses ou anos de inatividade.
São textos por isso difíceis, sem inspiração, sem beleza; exercícios de quem há muito está sedentário. É preciso ir, portanto, devagar, e por isso talvez eu escreva esses textos inicialmente a mão, no papel, não no processador de texto. Quando escrevemos no papel, mesmo que o façamos com rapidez, gastamos mais tempo na representação da ideia e da palavra que a representa. Isso torna a elaboração mais cuidadosa, apurada, como a areia que é peneirada torna-se um conjunto de natureza mais suave.
Esta pode ser a ideia-força desses textos: peneirar ideias e emoções; peneirar as representações linguísticas destas percepções, garantindo volume, página por página, na tentativa às vezes malsucedida de fingir uma produção farta e fácil de imagens e conceitos.
Se supomos assim parecer produtivos, é um ledo engano. Um observador-leitor mais perspicaz logo percebe as voltas que o texto dá, como se buscasse (e busca) orientação e direção em meio às possibilidades.
Já fazem meses que não consigo com regularidade escrever qualquer coisa numa clara demonstração de que escrever de ter ideias para um texto são coisas e fases completamente distintas no intelecto, e isso porque as ideias existem, só que transformá-las em palavras, em frases como esta, é praticamente impossível, ora por falta de ânimo e vontade, ora por falta de memória para guardar e elaborar sobre uma inspiração qualquer ou uma perplexidade que seja, em meio ao cotidiano.
Não sou um escritor profissional.
Não vivo de meus textos, mas meus textos são um sinal de vida em mim, e talvez a fadiga mental que impede o trabalho literário possa ser chamada de “a pequena morte”, uma condição que como o sono simula como nos cadáveres, a ausência de interação com o mundo e com as pessoas coisa que, para Espinosa, definiria a nossa existência e mesmo uma noção mais clara do que e de quem somos. Ao contrário do pensamento sartreano, o outro é fundamental a nossa vida, não apenas uma fonte de angústia (ou o inferno, em suas palavras), mas de uma angústia criativa como as contrações dolorosas do parto que necessariamente antecedem o nascimento.
Alguém já comentou que a felicidade não gera a boa literatura ou uma arte apreciável. É preciso angústia para extrair de nosso inconsciente o produto de nossa reflexão mais profunda. Nas palavras do professor Rubem Alves, “ostra feliz não faz pérola” e aqui, é bom deixar claro que a angústia não se opõe a felicidade pois o ato de criar, seja na música ou na literatura, também tem seu próprio grau de prazer. Digamos que a felicidade improdutiva se opõe, não à infelicidade, mas à felicidade produtiva, uma outra maneira de ser feliz no mundo.
Desde que produzamos algo realmente significativo, tanto para nós como para todos à nossa volta, seja um projeto de uma bela casa, o entalhe de uma bela porta de madeira ou um texto realmente inspirador, produzimos beleza, uma beleza que enriquece a quem a produz, tanto quanto aquele que a contempla, e que dela desfruta.
Para recorrer a um lugar comum, agora oportuno, “nem só de pão vive o homem”. Alimentamo-nos do deleite e só a arte, seja nos violinos e pianos, seja nas páginas de um livro, pode provocar este tipo profundo de satisfação em nós.
A arte é um serviço que o artista presta a toda a humanidade e embora seja uma atividade egocêntrica ela salta do indivíduo para o coletivo, espalhando-se como um incêndio em uma poça de óleo.
Artistas são faíscas fundamentais no incêndio das emoções. Sem eles nossa vida seria apática, insossa e inexpressiva, para usar uma palavra melhor. Viver é perceber e expressar, nas nossas possibilidades, o percebido.
Expressar a beleza da existência com competência gera encantamento.
A arte, portanto, como a magia, é feita de encantos, e a palavra sempre foi a ferramenta da magia.
Talvez só assim se compreenda a importância dos textos.
Tanto para quem os produz quanto para aqueles que os desfrutam.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

O ENCANTO

Por Mario Sales



Eu não havia ainda percebido.
Para a minha surpresa, e como disse Mestre Paulo do Recife, como um sinal auspicioso, nosso grupo de estudos de Cabala faz seus estudos como recomendado pela mais ortodoxa tradição judaica.
Primeiro, fazemos nossos estudos na sexta a noite, que é o início do Shabat; segundo, estudamos em um grupo de três a quatro pessoas, o que preenche outra condição recomendada pelo Rabino Arieh Kaplan, na época referindo-se ao Sepher Yetzirah: nunca estudar sozinho estes textos de forma que, caso ocorram fenômenos exóticos e inesperados tanto quanto incomuns, um possa dar retaguarda ao outro sobre sua própria sanidade, evitando a impressão falsa ou a suposição de tratar-se de mera alucinação visual ou auditiva.
Percebi que estas condições estavam sendo contempladas apenas hoje. Exatamente no dia em que chegamos no fundo das leituras do Sepher Bahir, o mais desprezado e subestimado texto do Cabala.
E isto é uma falha grave. Desprezar o Bahir é renunciar a um trecho do caminho desta estrada e uma estrada verdadeira é feita de todos os seus trechos sem exceção, aqueles com belas paisagens e os desérticos, aqueles tranquilos e os que nos causam apreensão.
Como recusar uma experiência sem prejudicar a avaliação da seguinte, se só conseguimos enxergar com nossos olhos, tanto os da carne quanto os do espírito, pelo recurso ao contraste? Sem opostos, não há nitidez nas percepções visuais ou nas iluminações espirituais.
No Fédon, o diálogo de Platão que retrata o último de vida de Sócrates, ele nos lembra disso, cercado de seus discípulos, horas antes de ingerir a Cicuta que o mataria. O diálogo começa com a retirada das correntes que o aprisionavam.
Ao retirá-las, Sócrates passa a mão em seu tornozelo e especula sobre os contrários. Eis a cena:
“Sócrates, de seu lado, sentado no catre, dobrou a perna sobre a coxa e começou a friccioná-la duro com a mão, ao mesmo tempo que dizia: Como é extraordinário, senhores, o que os homens denominam prazer, e como se associa admiravelmente com o sofrimento, que passa, aliás, por ser o seu contrário. Não gostam de ficar juntos no homem; mal alguém persegue e alcança um deles, de regra é obrigado a apanhar o outro, como se ambos, com serem dois, estivessem ligados pela cabeça.”[1]
Quem não lê o Bahir, como já comentei neste espaço, está condenado a supor que um dos mais importantes conceitos da Cabala, o do Tzimtzum, é criação de Isac Luria, embora Luria tenha apenas esclarecido a imagem.
No Bahir já encontramos a referencia a esta coluna do conhecimento cabalístico, como descrito no versículo 25.
Da mesma maneira, se o incauto não contemplar as explicações e orientações do Rabino Kaplan a cada um dos versículos, não terá acesso à uma das mais interessantes imagens que fui capaz de estudar até agora.
Está lá na página 220, no comentário ao versículo 179: 
“Ao descrever o tzimtizum, o Ari declara que Deus retirou Sua luz de uma esfera, criando o espaço vazio, e foi nesse espaço que aconteceu toda a criação.”
E continua:
“Todavia, a Criação não poderia se realizar sem o poder de Deus. Assim sendo, Deus emitiu uma linha de luz nesse Espaço (Kav).” E conclui, lindamente: “Dessa linha de luz foram formadas dez esferas concêntricas, que envolvem toda a criação. As dez esferas concêntricas são as Dez Sephirot [2]com as quais Deus envolve todos os mundos.”
Vejam, sempre tive grande dificuldade de visualizar a árvore da vida dentro do espaço da criação. Os textos cabalísticos quase sempre desprezam a geometria dos simples mortais, submetendo à nossa imaginação conceitos praticamente impossíveis de conceber imageticamente e isto dificulta muito sua compreensão já que um conceito que não se pode visualizar é um conceito que não se entendeu.

Essas simples palavras (As dez esferas concêntricas são as Dez Sephirot) me encheram de êxtase. Eu finalmente via a situação espacial de cada sephirot no contexto do vazio da esfera da criação, agora como dimensões, uma após a outra, através das quais a Luz de Deus, o Kav, desce e estabelece a existência. 



A representação ortodoxa deste conceito é o desenho acima. 
Na minha percepção de hoje, entretanto, ele não corresponde aos fatos. As dez sephiroth são círculos concêntricos, mas que ficam às margens do vazio criado pela retração.
Muitos dirão: “Porque esse espanto diante de uma constatação tão conhecida?”. Sim, é fato. Tal conceito é notório, intelectualmente. Só que esta epifania vem da interiorização deste conceito, de sua absoluta e indelével compreensão. Nestes instantes maravilhosos, não somos nós que alcançamos o significado do conceito, mas sim o conceito que entra em nós, e nos preenche.
Essa experiência é única.
Só os estudantes podem tê-la e amá-la, como se deve amar cada passo da estrada, mantendo-se a consciência todo o tempo do jeito como se pisa e da pressão que nossos pés imprimem ao chão, a cada trecho pelo qual nos deslocamos.
Todos caminham. Poucos o fazem com atenção.
E quando estamos atentos, até uma simples rocha nos enche de espanto e beleza.
Sim, a vida está cheia de magia todo o tempo e no mundo dos homens Deus está mais presente do que parece, observando-nos de uma folha que cai lentamente, ou de uma nuvem que passa sobre nós.
O Encantador é perceber-se o encanto.
O resto é o resto.