Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

quinta-feira, 29 de junho de 2017

A ROSACRUZ E O ESPIRITO ROMANTICO DE BLAVATSKY

Por Mario Sales




Diz um provérbio persa: "Quanto mais escuro estiver o céu, mais as estrelas brilharão". Assim, no negro firmamento da época medieval começaram a surgir os misteriosos Irmãos da Rosa-cruz. Eles não formaram associações, nem construíram colégios; pois, caçados e encurralados como feras selvagens, quando a Igreja Católica os apanhou, eles foram queimados sem cerimônia. “Como a religião proíbe”, diz Bayle[1], “derramar sangue”, então, “para eludir a máxima “Ecclesia non novit sanguinem” eles queimaram os seres humanos pois queimar um homem não derrama seu sangue”.

Muitos desses místicos, seguindo os ensinamentos de alguns tratados, preservados secretamente de uma geração a outra, fizeram descobertas que não seriam desprezíveis mesmo em nossos dias das ciências exatas. Roger Bacon, o monge, foi ridicularizado como um charlatão, e é hoje incluído entre os "pretendentes" à arte mágica; mas suas descobertas foram, não obstante aceitas, e são hoje utilizadas por aqueles que mais o ridicularizaram. Roger Bacon pertencia, de fato senão de direito, àquela Irmandade que inclui todos os que estudam as ciências ocultas[2]. Vivendo no século XIII, quase como um contemporâneo, portanto, de Alberto Magno e Tomaz de Aquino, suas descobertas - como a pólvora de canhão e os vidros ópticos, e seus trabalhos mecânicos - foram considerados por todos como milagres. Ele foi acusado de ter feito um pacto com o diabo.
Na história legendária do monge Bacon, e também numa antiga peça escrita por Robert Green, um dramaturgo dos tempos da Rainha Elizabeth, conta-se que, convocado pelo rei, o monge foi convidado a mostrar algumas de suas habilidades diante de sua majestade, a rainha. Ele então agitou sua mão (seu bastão, diz o texto), e "rapidamente ouviu-se uma belíssima música, que eles afirmaram jamais ter ouvido igual". Ouviu-se em seguida uma música ainda mais alta e quatro aparições de repente se apresentaram e dançaram até se dissiparem e desaparecerem no ar. Então ele agitou novamente o bastão, e de repente um odor "como se todos os ricos perfumes do mundo tivessem sido preparados no local da melhor maneira que a arte pudesse fazê-lo". Então Roger Bacon, após ter prometido mostrar a um dos cortesãos a sua amada, apanhou um enfeite do apartamento real vizinho e todos na sala viram "uma criada da cozinha com uma concha nas mãos". O orgulhoso cavalheiro, embora reconhecesse a criada que desapareceu tão rapidamente quanto surgiu, irritou-se com o espetáculo humilhante, e ameaçou o monge com a sua vingança. Que fez o mágico? Ele simplesmente respondeu: "Não me ameaceis, para que eu não vos envergonhe mais; e guardai-vos de desmentir novamente os eruditos!".
Como um comentário a esse respeito, um historiador moderno assinala: "Isto deve ser visto como uma espécie de exemplificação do gênero de exibições que eram provavelmente o resultado de um conhecimento superior das ciências naturais". Ninguém jamais duvidou de que isto foi o resultado de um tal conhecimento, e os hermetistas, os mágicos, os astrólogos e os alquimistas jamais pretenderam outra coisa. Não era decerto sua culpa que as massas ignorantes, sob a influência de um clero inescrupuloso e fanático, tivessem atribuído tais obras à intervenção do demônio. Em face das torturas atrozes estipuladas pela Inquisição para todos os suspeitos de Magia Branca ou Negra, não é de estranhar que esses filósofos jamais se vangloriaram ou mesmo reconhecera uma tal relação. Ao contrário, os seus próprios escritos provam que eles sustentavam que a Magia é “apenas uma aplicação das causas naturais ativas em coisas ou sujeitos passivos, por meio da qual muitos efeitos extraordinariamente surpreendentes, mas, no entanto, naturais[3], foram produzidos"


H.P.Blavatsky, in “Isis sem Véu”, Ed.Pensamento,Volume 1, págs 152,153

Esse trecho de Isis sem Véu, (atual texto tema de nosso grupo de estudos teosóficos às quartas feiras), para um rosacruz, é enternecedor.
Pena que reflita uma dose de ingenuidade psicológica e romantismo, próprios da época e do ambiente esotérico do século XIX.
E os indícios dessa afirmação é o de supor que os rosacruzes, como de resto outros também supõem, não são seres humanos ordinários, comuns, mas uma espécie de iluminados que caminham pela terra distribuindo aqueles que encontram a bênção de sua presença.
Me lembrei de um livro infantil de Ilan Brenman cujo nome é “Até as princesas soltam pum”.
É como se rosacruzes de todas as épocas não fizessem parte da humanidade, não fossem seres biológicos, com as limitações próprias desta condição.
Pior. Quanto mais romântica a descrição de seu perfil, mais crível ela aparenta ser para grande número de pessoas.
Trata-se, claro, de um equívoco.
A definição de HPB dos rosacruzes como “...aquela Irmandade que inclui todos os que estudam as ciências ocultas...” é mais pertinente e equilibrada; se ela tivesse parado aí não haveria reparo a ser feito.
Ainda hoje nós, rosacruzes, somos essencialmente e apenas isto, estudantes do oculto, místicos em busca da união com o altíssimo, e esoteristas interpretadores de textos, exegetas dos símbolos, em busca de compreensão mais profunda das verdades universais.
Fora isso, no entanto, mesmo envaidecido pelos exageros dos escritores, não posso como rosacruz, em sã consciência, concordar com esta perspectiva folhetinesca, que faz de nós, embora humanos, pessoas fora da realidade e do cotidiano.
Todos nós rosacruzes sabemos de nossa inexorável humanidade, das dificuldades pessoais, físicas e psicológicas que enfrentamos todos os dias, da mesma maneira que aqueles que não pertencem a nossa Irmandade.
Somos monges do asfalto, absolutamente integrados à vida social comum, hodierna, sem dons excepcionais que possam evitar a dúvida, a doença ou a morte.
A maioria dos estudantes não tem os dons que Roger Bacon exibe na cena descrita por HPB.
E mesmo que os tivéssemos, no momento atual de nossa Ordem, o enfoque deixou de ser a elaboração dessas habilidades pessoais e da manifestação dos poderes naturais que estão dentro de todos nós.
Hoje parecemos mais uma religião.
O empirismo tem sido continuamente desestimulado, mesmo que dentro de ambientes da Ordem.
Na posição de membro antigo da fraternidade, fiz ao longo do tempo vários amigos em várias partes do país, e recebo deles informações as quais, presumindo que reflitam a realidade, me deixam muito preocupado com o destino desses “estudantes do oculto”.
E quando falo oculto, não me refiro, como Blavatsky fazia, apenas as coisas ditas esotéricas. 
O grau de complexidade da ciência contemporânea ampliou o universo do que se chama oculto, do mundo esotérico para o exotérico, onde a ciência profana criou áreas de difícil penetração intelectual, as quais apenas tem acesso os sacerdotes desta nova seita de mistérios, a física teórica.
Estamos falando, repito, de ciência ortodoxa, de conhecimentos profundos sobre o Universo e a Criação, tão profundos que beiram o antigo Ocultismo, só que dessa vez apoiado em sólidos cálculos matemáticos, se é que podemos chamar assim. A ciência é e sempre foi esotérica para todos, menos para os cientistas.
Cientistas iguais, em tudo e por tudo, guardadas as proporções históricas, a Roger Bacon, essencialmente um homem de ciência: descobriu a pólvora; fez estudos em ótica que lançaram as bases técnicas para o telescópio de Galileu; foi alquimista. Considerando que estamos falando do século XIII, seu desempenho estava para além de seu tempo.
Fazia pesquisas e experiências, como os rosacruzes de hoje não fazem mais, porque quanto mais templos construímos, mais nossos laboratórios desaparecem e diminuem em número.
Lembro-me que era fascinado pelos relatórios de George Buletza, nosso último pesquisador sistemático. 
Depois de sua morte, os relatórios de pesquisa cessaram e nos transformamos em uma ordem de comentadores e de discursos, na maioria das vezes reflexões moralistas e éticas.
É comum ouvirmos o orador de templo, durante a ritualística, falar após o discurso na realização de um “experimento”. Na verdade, o que se chama assim são exercícios de visualização mental, mais relacionado a uma experiência pessoal do que a um processo experimental como entendido pela boa pratica positivista.
Não se ouve mais, dentro dos corpos afiliados, relatos de práticas e estudos em telepatia, telecinesia, projeção astral.
Algumas lideranças administrativas até desestimulam estes estudos, mesmo que feitos por oficiais avançados da Ordem, a não ser que sejam da Loja São Paulo, que não sei bem porque, recebe um tratamento diferenciado.
Nada contra a Loja São Paulo, tenho amigos lá além de fratres e sorores que respeito e admiro; só que espera-se que todos possam organizar revisões semelhantes, que todos os corpos afiliados, seja no Recife ou em Caxias do Sul, possam aprofundar conhecimentos técnicos específicos, presentes nas monografias oficiais, já que discursos de natureza filosófico-ética são tautológicos e já se tornaram características de grupos religiosos, não de uma ordem como a descrita por HPB, de “pesquisadores do Oculto”, ainda mais no exemplo que ela apresenta, uma demonstração prática, testemunhável, de habilidades psíquicas e físicas incomuns.
Precisamos realisticamente, voltar a ser os pesquisadores que HPB, em um enfoque romântico, com sua generosidade e fé infinita em nós, supunha que fossemos.
Porque, a meu ver, não somos mais.
Estamos (considerando as informações que nos chegam), estudando chás aromáticos, terapias alternativas, saberes tradicionais e coaching. Estudos altamente subjetivos, que estão muito próximos do que chamamos em Medicina efeito placebo.
Nada disso demanda um laboratório, potenciômetros, analises de dados colhidos em experiencias controladas.
Não se gasta praticamente nada em materiais nestes eventos.
São debates, exposições teóricas, que no máximo gastam papel e projeções multimídia.
Somos agora, cada vez mais, especialistas em reflexões intelectuais, auto referenciadas, pois nossos discursos falam de outros discursos.
Seminários eminentemente rosacruzes? Não, isso não fazemos mais.
Soube recentemente que um grupo do Nordeste resolveu fazer uma investigação sobre uma técnica esotérica do 12° grau, em ambiente rosacruz, com a presença apenas de artesãos. 
O mestre foi comunicado, o Grande Conselheiro da região também. Aceito o projeto, comunicou-se a Grande Loja em Curitiba que... vetou o projeto.
Porque? Porque rosacruzes não podem estudar, dentro de um corpo afiliado rosacruz, um assunto rosacruciano?
Talvez existam questões pessoais por trás dessas decisões, não sei. Não posso fazer juízo de valor sem ouvir os dois lados, e só recebi informações de um dos lados.
Só que como artesão me entristece receber tais relatos.
É triste, mas não somos mais “aquela Irmandade que inclui todos os que estudam as ciências ocultas”.
Parecemos mais, repito, uma religião, talvez não na Loja São Paulo, mas no resto do país.
Claro, este é o meu blog, e esta é minha opinião pessoal, sujeita a contestação e ao contraditório.

O PAPEL DO MARTINISMO

O Martinismo talvez tenha um papel nisso, já que é uma ordem não rosacruciana que caminha perigosamente no fio da navalha entre esoterismo e crença religiosa, a começar pelo fato de oficialmente assumir-se como ordem cristã, o que já a torna uma agremiação não plural, ao contrário daquilo que o Marquês de Guaita gostaria que fosse. 
Vejam, afirmar é negar.
E em um ambiente complexo e liberal como o ambiente rosacruz, é no mínimo estranho florescer um grupo ou tendência que afirma ser cristão, e por isso nega ser Budista, Hinduísta ou Judaico
Guaita, o autor da carta lida no terceiro grau da Ordem , que fala que todos, independentemente da linha de pensamento, são benvindos, não percebeu o paradoxo.
Aliás, já descrevi detalhadamente os conflitos doutrinários entre Martinismo e Rosacrucianismo, mas podíamos discutir os conflitos internos do próprio Martinismo, mais poliédrico do que tenta parecer.
O fato da Ordem Rosacruz abrigar o Martinismo em si não tem nada de heterodoxo, já que ao longo de séculos sempre absorvemos os conhecimentos e as práticas de várias tradições, desde os Essênios até os Iluminati alemães.
O problema é supor que Martinismo seja Rosacrucianismo e que o desenvolvimento da religiosidade seja a mesma coisa que pertencer a uma religião.
É um exercício sempre delicado expor pessoas comuns a este tipo de conflito existencial, de comparecer a um templo, de uma ordem que dá ênfase ao termo “Fé”, (termo este que, os artesãos lembrarão, pelo menos até a década de 90 do século passado sempre foi considerado capcioso, considerado em textos de monografias menos adequado que o conceito de Confiança), e depois pedir as pessoas que não confundam esta prática com uma prática religiosa.
É o mesmo que pedir a um canadense que tire suas roupas em pleno inverno e, ao mesmo tempo, dizer: “Não está frio, é tudo psicológico, supere. ”
Não, Madame Blavatsky, não estudamos mais o Oculto, mas sim as superstições da moda. 
Nós, rosacruzes, que em nossa propaganda institucional orgulhosamente lembramos que o fundador do Ceticismo Metodológico, Renée Decartes e o criador do Cálculo e da teoria gravitacional, Sir Isaac Newton, eram membros de nossa Amada Ordem.
Concordo que como seres humanos materiais precisamos ter uma estrutura material para sustentar nossa organização, a parte física da Instituição. 
Como manter esta estrutura em uma Ordem mundial, sem diversificar a oferta de cursos? 
E estes cursos devem ter retorno financeiro, concordo. 
Porque, no entanto, os temas destes encontros não se basearem nos ensinamentos das monografias?
Telepatia? Não, não devemos discutir fora de templo, como se os russos não trabalhassem o tema no âmbito da ciência ortodoxa e profana há décadas.
Projeção astral? Deixemos isto para outras linhas de pensamento, que abrem suas portas para tais discussões de forma entusiasmada e estão abarrotadas de interessados.
Telecinesia? Não é um tema didatizável.
Aliás, como fazer um curso sobre isso? 
Principalmente em uma fraternidade que não tem estatísticas sobre os seus “Roger Bacons” atuais, que não sabe nem quantos são seus grandes telepatas ou telecinéticos, nem a qualidade de seus dons.
Como rosacruz, isto em muito me interessaria.
Quantos de nós vêem auras? Qual a qualidade de sua vidência? É possível um confronto entre pelo menos três desses videntes para comparar e verificar a harmonia de suas percepções?
Estes são temas eminentemente rosacrucianos que motivariam não um, mais dezenas de cursos, em todas as partes do país e do mundo.
Talvez em outra jurisdição este enfoque já tenha começado, talvez até na nossa jurisdição, imensa, exista um movimento nesta direção.
O certo é que não vejo sinais de que isto ocorra.
As monografias e as nossas práticas de pesquisa divorciaram-se, como se não existisse dentro do próprio universo de conhecimento da Ordem assunto a ser aprofundado.
E os temas monográficos, nosso verdadeiro corpo de conhecimento, precisam ser trabalhados e aprimorados, em um esforço coletivo.
As técnicas, principalmente as mais sutis, precisam ser discutidas fora do sanctum no lar, com destaque para aquelas acima do nono grau.
Vejo os kardecistas estudando Kardecismo, sua história, seus princípios. 
Vejo Budistas conversando sobre o Budismo e dialogando com a ciência, com o Dalai Lama privando da amizade de físicos renomados, desde Carl Sagan até Mathieu Ricard, monge e ex pesquisador do Instituto Pasteur. 
Só os Rosacruzes não tem um diálogo com a ciência e, na maioria de seus corpos afiliados, estudam os mais variados assuntos não rosacruzes
Falo como ex oficial e ex monitor cultural na minha região.
O que nós rosacruzes temos a oferecer aos cientistas? 
Qual conhecimento específico, qual produto conceitual ou técnica possuímos que possa ser compartilhada? 
Temos feito esforço para isso?
A URCI, nossa universidade, abandonou ao que parece qualquer projeto nas áreas das ciências duras (física, ótica, acústica).
Os temas mais e mais dizem respeito às áreas de ciências humanas. Áreas em que nos tornamos coletores de informações e não produtores de conhecimento ou de técnicas.
Em um ensaio como este, aberto, não posso discutir mais detalhadamente, mas acho que se nos esforçássemos, primeiro para levantar entre nós quem são nossos Bacons e depois, para  compartilharmos seu conhecimento entre nossos artesãos, haveria um incremento considerável de lucro em nossa afiliação.
Talvez aí sim, quem sabe, chegaríamos mais perto da visão generosa de Blavatsky sobre nós e honraríamos os cientistas e filósofos que nos orgulhamos de repetir fizeram parte de nossa ordem no passado.
Porque hoje, lamento dizer, o que temos é um passado do qual falar.
Urge construirmos um presente técnico cientifico pois como tudo, o esoterismo evoluiu e demanda novas posturas para este novo século.
Ou talvez o romântico seja eu e tudo isto não passe de uma expectativa pessoal tola.
Espero sinceramente que não.


[1] Pierre Bayle (Carla-Bayle, 18 de novembro de 1647 — Roterdão, 28 de dezembro de 1706) foi um filósofo e um escritor francês.
[2] O grifo é meu.
[3] Novamente, o grifo é meu.