Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sábado, 5 de janeiro de 2019

O AVANÇO DO OBSCURANTISMO.


 Por Mario Sales


Gosto muito do estilo das crônicas de Inácio de Loyola Brandão no Estado de São Paulo, pela simplicidade e tranquilidade com que descreve coisas, épocas e pessoas. Como sempre digo, o bom escritor é um bom descritor. Embora não tenhamos um passado semelhante, reconheço em suas recordações algumas imagens comuns. Hoje, no seu texto semanal, ele fala dos mitos que nos cercaram na infância. 
“Ler e comer ao mesmo tempo faz mal”, dizia sua mãe.
E a minha também.
Ele compara esse mito àquele do perigo de envenenamento se misturássemos leite com manga, também uma memória comum, tanto aqui em São Paulo como era no Rio de Janeiro.
Loyola argumenta com perspicácia que, pior que comer e ler ao mesmo tempo, deve ser comer e digitar mensagens no iPhone e não há, que se saiba, relatos de mortes frequentes por causa dessa prática amplamente difundida.
Mitos são assim. Às vezes desaparecem com a mesma rapidez com que surgiram. Se não fossem os guardiões da memória, os narradores-escritores, nem saberíamos que um dia tivessem existido.
O problema, entretanto, não está no mito, mas na sua natureza.
O mito do mal que faz ler e comer, em si não expressa nenhuma restrição que não possa ser quebrada ou um perigo para quem nele crê ou não crê.
O que assusta é quando uma parcela da sociedade e não uma parcela carente, mas com uma vida material confortável, que teoricamente têm acesso a informação de qualidade, começa a difundir mitos como aquele que diz que a Terra é plana ou que vacinas são perigosos para crianças.
Isso me assusta.
Pode-se rir da ideia da Terra plana a esta altura da história da ciência e da civilização, mas não se pode rir do fato de que alguém esteja disposto a aceitar tal disparate como verdadeiro. Carl Sagan alertava desta bomba relógio que estávamos montando, aquela que combina tecnologia avançada com ignorância e preconceito. 
E isso porque o ser humano hodierno não entende o que a ciência faz. Só que o fato de a maioria das pessoas serem incapazes de acompanhar o que a ciência faz é culpa da própria comunidade científica, que jamais fez um esforço como o de Sagan, para traduzir os feitos científicos em linguagem compreensível para a sociedade leiga, nem preocupou-se em explicar para os não iniciados o que estava estudando.
Como narciso e sua imagem no espelho, cientistas em geral falam de ciência para outros cientistas e não para as pessoas que, em última análise, são as mesmas cujas vidas serão modificadas de modo dramático por este trabalho científico e pelos avanços tecnológicos.
Sem esse esforço fundamental de alfabetização em ciência que Sagan iniciou com a série para a televisão “Cosmos” (trabalho que hoje é continuado pelo diretor do museu de história natural americano, o físico Neil Degrasse Tyson , nos EUA, e aqui no Brasil por outro físico, Marcelo Gleiser) não teremos como evitar que ideias descabidas e fantasiosas além de perigosas, ganhem força.
Todo terreno abandonado está sujeito a invasão.
Mentes vazias de informações confiáveis tendem a ser ocupadas com informações não fundamentadas, às vezes completamente absurdas como essa história do leite com manga, ao mesmo tempo que rejeitam fatos consolidados, comprovados.
Por exemplo, repassei em minha linha do tempo do Facebook recentemente uma informação antiga, de 20.11.17, sobre o interessante trabalho de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais, no qual foi elaborada uma substância cuja molécula é capaz de se ligar com a molécula da cocaína, tornando-a identificável pelo sistema imunológico do indivíduo. Uma vacina contra o vício.
Não costumo repassar notícias descabidas, mas mesmo assim uma amiga, com formação universitária, ao ver o post ironizou, insinuando que se tratava de uma notícia falsa.
O que me espanta é que trata-se de uma profissional de saúde, em princípio capaz de pensamento científico crítico, perfeitamente habilitada a buscar a confirmação da notícia que lhe parecia tão inverossímil. Alguns cliques e ela chegaria a fonte da notícia, o site de uma grande empresa jornalismo e lá, a matéria estaria mais aprofundada e seria fácil confirmar sua veracidade.
Não, nada disso.
Preferiu desdenhar de uma notícia séria apenas por preguiça mental. Este é outro lado dessa perigosa moeda. Estas pessoas não acreditam, apenas, em coisas absurdas; além disto, também duvidam de fatos reais, como minha amiga fez com uma simples notícia de um trabalho científico em andamento em uma universidade brasileira.
Como muitos que me lêem devem saber, muitas pessoas duvidam que o homem tenha pisado na Lua, acreditando que tudo não passou de uma encenação de estúdio. Duvidam da ciência e do conhecimento científico consolidado ao longo dos anos e ao mesmo tempo acreditam em fantasias descabidas, como a absurda ideia da Terra plana.
São sintomas de um perigoso obscurantismo que ronda tudo de bom e útil que a ciência produziu nos últimos anos, nas últimas décadas.
A profecia de Sagan aos poucos vai se materializando e me parece que se quisermos reverter essa tendência nefasta teríamos que investir pesadamente no trabalho de alfabetização científica da sociedade, no esforço de resgatar as pessoas em geral das garras da ignorância.

Nenhum comentário:

Postar um comentário