Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

domingo, 27 de janeiro de 2019

A AMIZADE


Por Mario Sales



O que significa amizade? O que faz duas pessoas procurarem a convivência uma da outra, de forma constante e prazerosa?
Das respostas filosóficas a essas questões, a mais famosa é a que está no livro VIII e IX da obra Ética a Nicômano, de Aristóteles, (384 AC a 322 AC) aproximadamente há 2040 anos atrás, mas que ainda permanece atual.
Nicômano era o filho de Aristóteles com a escrava Herpilia. Aristóteles comenta que não possuindo riquezas, deixaria como herança a seu filho um guia para a vida em sociedade e para a interação humana.
A felicidade, (eudaimonia, “o estado de ser habitado por um bom daemon,[demônio, do ponto de vista grego] um bom gênio) não se fundamentaria em satisfações físicas e sociais como honra, prazer e riquezas mas na virtude (areté), palavra que na cultura grega, tem um sentido diferente do significado cristão, representando a idéia de excelência de desempenho em alguma atividade.
Para auxiliar o filho a desenvolver esta areté (lê-se aretê), Aristóteles esmiúça vários aspectos das relações humanas, entre eles a amizade (philia), palavra que em grego tanto representa o afeto cordial como o amor entre duas pessoas.
Sempre atento aos aspectos práticos da Ética, Aristóteles classifica a amizade em três tipos: as amizades motivadas pelo prazer, pela utilidade, ou pela amizade em si mesma.
Nos dois primeiros tipos, existe uma intenção na associação com o outro, ou na busca da satisfação dos desejos, ou na utilidade que este relacionamento traz para nós na forma de benefícios pessoais.
No terceiro tipo, no entanto, que Aristóteles classifica como o mais importante, a amizade existe apenas por ela mesma, sem qualquer interesse de parte a parte. Ama-se o amigo por razões de afinidade espiritual e não por motivos sociais ou físicos. É um relacionamento baseado na admiração mútua, e isto é suficiente.
“A amizade segundo a virtude só pode se estabelecer entre os homens que são “bons e semelhantes na virtude, pois tais pessoas desejam o bem um ao outro de modo idêntico, e são bons em si mesmos.”. Como estes (seres humanos) são raros, amizades assim também são raras.”[1]
Dizem que devemos ser gratos por nossas bênçãos. Uma das bênçãos pela qual devo agradecer é por desfrutar do privilégio de amizades virtuosas, as tais que são raras.
E embora as amizades assim não sejam baseadas em interesses pessoais, como disse, existe um benefício imediato deste tipo de associação, o compartilhar.
Fui membro da Ordem Maçônica por muito tempo. Lá observei que os costumes que estavam presentes na fundação da ordem, 1000 anos atrás, ainda permanecem vivos e ativos. O mais prosaico deles é o de dividir e compartilhar a mesma refeição, e o mesmo vinho.
Desde épocas imemoriais, a raça humana faz dos momentos a mesa um instante de consolidação dos relacionamentos e aprofundamento dos vínculos afetivos.
Provavelmente, em uma época em que a comida fosse escassa e difícil de conseguir, compartilhar alimento tornou-se a mais forte manifestação de uma vida social, onde as disputas e as competições são temporariamente suspensas e substituídas por um momento de carinho e saciedade mútua.
Se saciar nossa fome é bom, melhor seria saciar a fome em grupo. Com isso, ao mesmo tempo, combatemos a fome e a solidão.
Chamamos isto em filosofia de sensação de pertencimento. Pelo convívio em torno da refeição, consolidam-se os laços que fortalecem o grupo.
Assim foi com a Ordem Maçonica. Após um dia de estafante e perigoso trabalho, construindo catedrais góticas, no alto de andaimes precários, sujeitos aos perigos de acidentes mortais, os homens reuniam-se a noite para celebrar o fato de estarem vivos e dividir com seus companheiros de oficio esta alegria.



Ainda hoje é parte do ritual maçônico jurar proteger órfãos e viúvas. Os mesmos órfãos e viúvas resultantes dos acidentes citados.
A solidariedade se fortaleceu na divisão do ônus e do bônus envolvido na arriscada empreitada a que se dedicavam aqueles homens.


E então, à noite, vinha o banquete. Por muitos séculos, pelo menos cinco deles, não havia um ritual de iniciação à Ordem Maçônica, mas sim um banquete de recepção ao novo companheiro.
Comendo juntos, tornavam-se um só grupo, fortalecidos por pertencer a algo maior do que eles mesmo, o tal senso de pertencimento.
Compartilhar, assim, era também a forma de expandir nossos horizontes e possibilidades para além de nossas próprias limitações físicas e intelectuais.
Pelo dividir de alegrias e decepções, diminuía-se o fardo da existência e ampliava-se a capacidade de comemorar o que era gratificante. Muitas pessoas unidas pela mesma “philia”, garantiam que o conhecimento fosse uniformemente repartido entre todos os membros do grupo. A difusão da informação tornava mais hábeis e preparados os que dela compartilhavam, melhorando cada um deles e o grupo inteiro, por extensão.
Assim, talvez o maior lucro da amizade virtuosa não seja tão abstrato, mas eminentemente prático além de fundamental ao desenvolvimento da sociedade: o compartilhar.
É verdade que a afinidade entre duas pessoas antecede o compartilhar de alimento e de informação, mas é nessas atividades que o encontro se fortalece, se solidifica.
Por isso conversamos com os amigos enquanto comemos. E com a ajuda do vinho, conversamos alegremente, sem os pudores necessários a relacionamentos mais superficiais.
A humanidade é um conjunto de homens e mulheres, e não um único e isolado indivíduo.
Precisamos, por inúmeras razões, uns dos outros, para a nossa autopreservação e para garantia de uma vida de qualidade e enriquecedora.
A solidão física jamais foi a base de um espírito refinado e elaborado. Em determinada época, alegou-se que era necessário passar algum tempo isolado para desenvolver a espiritualidade, a sensibilidade espiritual.
No entanto, uma vez tendo desenvolvido esta habilidade, estes seres iluminados não fogem do convívio, mas ao contrário, procuram as comunidades para trazer seu conhecimento e sua sabedoria, compartilhando com elas aquilo que possam ter alcançado.
A base, pois da amizade, principalmente da amizade virtuosa, mas também daquela baseada no prazer e na utilidade, é o compartilhamento, o dividir dos ônus e bônus de viver.
Esta talvez seja a essência de todos os relacionamentos realmente bons e justos.


[1] http://glauberataide.blogspot.com/2008/09/as-trs-espcies-de-amizade-em-aristteles.html?n=1

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