Por Mario Sales, FRC, S.:I.: ,M.:M.:
Salmo 123, vers. 1,2,3
Cântico dos degraus, de Davi
“1.Para Ti que habitas nos céus, levanto os meus olhos.2.Eis que como os olhos dos servos atentam para as mãos de seus senhores, e os olhos da serva para as mãos de sua senhora,assim os nossos olhos atentam para o senhor nosso Deus, até que tenha piedade de nós.3.Tem piedade de nós, ó senhor,tem piedade de nós, pois estamos assaz fartos de desprezo.”
Assim diz o salmista, o Rei Davi, acerca de sua compreensão peculiar de Deus, Todo Poderoso.
Quais as inferências que fazemos deste texto tão singelo?
Vejamos, a mais evidente é a de que o salmista fala com outro ser: ele, Rei Davi, conversa com Deus, e o compara a um senhor e, o Rei, ele mesmo, apresenta-se como seu servo. Servo e senhor, dicotomia irreconciliável, dois pólos de uma única equação. O que concluímos? São dois seres, não um.
Davi, o Rei salmista, considera-se separado de Deus. Deus está lá, em algum lugar, e o salmo esclarece, “tu que habitas nos céus”, portanto um ser distante, no alto.
Ele, por sua vez, aqui em baixo, na Terra, presume-se, bradando ao seu Deus distanciado.
O Salmista, portanto, postula uma separação entre ambos, talvez intransponível; Deus, para aquele autor, é um fenômeno extremamente distante, e por isso, inatingível.
Toda a tradição judaica aposta nesta separação.
Existe Deus, o Criador, e existem suas criaturas, os homens. Duas entidades separadas.
Separação.
Toda a cultura Judaica, e mais tarde aquela que derivará do ensinamento cristão, continuará esta tradição de separação.
O Sagrado sempre esteve e foi Separado, do comum dos mortais.
Entre os membros da Igreja, Santo Agostinho afirma, ainda no século IV de nossa era, no texto de suas Confissões:
“Quem é Deus? Perguntei-o à Terra e disse-me: “Eu não sou.” E tudo que nela existe respondeu-me o mesmo.Interroguei o mar, os abismos e os répteis animados e vivos e responderam-me: “Não somos o Teu Deus; busca-o acima de nós”.
Separação. Separado. Deus não está no salmista, não está no santo, nem mesmo está na Criação, mas separado de todos, distante, embora capaz de captar suas súplicas.
Este é o postulado não tão oculto, mas que na maioria das vezes opõe o que chamamos crenças religiosas ou pelo menos o Cristianismo Institucional e o Misticismo Rosacruz.
São diferenças irreconciliáveis como poderemos demonstrar.
Todos nós, estudantes rosacruzes, conhecemos esta imagem: uma ligação em série de algumas lâmpadas, uma do lado da outra, pelas quais passa a mesma corrente, todas acesas pela mesma energia. Lâmpadas diferentes, talvez até de cores diferentes; mesma fonte, mesmo substrato. Em cada uma, a resistência determina a intensidade da luminosidade. Ao espiralar pelo filamento, a energia que por ali flui gera calor.
Calor e Luz.
Este é o modelo rosacruciano.
Nós somos lâmpadas, aparentemente diferentes, mas em série conectadas com a mesma fonte, que alimenta igualmente a todos nós. Se somos, somos porque ela garante que sejamos. Se existimos, existimos porque esta energia existe em nós. Nada somos se não pela sua Sagrada e aquecedora presença. Nada, absolutamente nada somos que não seja expressão daquela força.
Cessat Causa, cessat effectus.
Cessando a Causa, cessa o efeito.
Se a fonte desaparecesse, desapareceríamos com ela. Se nós desaparecemos, se uma das lâmpadas queima a energia persiste fluindo por todo o conjunto. O Sagrado no rosacrucianismo não é separado, é imiscuído, misturado, interpenetra todas as entranhas de nosso ser, e nos dá existência, garante a nossa presença no mundo.
Mundo. Uma das Lâmpadas. Não mais que outra lâmpada, acesa pela passagem da mesma energia, proveniente da mesma fonte.
Toda a natureza, um conjunto iluminado, que como uma árvore de natal brilha no contraste da escuridão a sua volta, e se diferencia dele.
Retire-se a tomada, entretanto, e tudo se apaga; recoloque-se a tomada, e tudo se acende numa demonstração primária e indiscutível da dependência de todo este espetáculo luminoso de uma única fonte, de uma única energia.
Para o místico verdadeiro, não há possibilidade de separação de seu Deus, do qual ele não pode se apartar. Nem necessidade de reintegração alguma àquilo mesmo de que ele já é parte integrante. Na verdade, nem mesmo parte ele é, pois não houve qualquer partição.
Como estimular qualquer místico rosacruciano à uma Re-integração, se nada para ele foi Des-integrado?
Como, como fala a monografia citada, falar-se em Unidade, em Re-União, se nada para o rosacruz está Des-Unido?
Por fim, como supor-se que Deus está Incógnito, Desconhecido, para um rosacruz que o sabe dentro de si?
Esta separação é e sempre foi didática, teve intenção didática, fez e faz parte dos esforços de explicar o chamado inexplicável, para homens que não podiam desfrutar do conceito de circuito em série de lâmpadas, umas ligadas às outras, tornadas luminosas pela passagem da mesma energia.
Que exemplo poderoso, que ordem poderosa esta que, com algumas linhas e um desenho, consegue demonstrar um dos conceitos mais importantes da vida mística.
Esta é a noção de sagrado para o místico. Mais que uma percepção, uma vivência. Um processo diário de polir, como Espinoza, a lente de seu corpo e sua mente para permitir o extravasamento mais claro e transparente desta luminosidade e deste calor interno que a Presença Sagrada manifesta dentro dele.
A Luz dentro de nós é infinitamente bela. E nós também. A Luz em nós é infinitamente forte, e nós da mesma forma, com ela. Somos faróis a lançar esta Luz para frente de nós e a nossa volta.
Somos a própria Luz. Sair da frente desta luz: esta é a nossa oração. Permitir que ela se propague livremente: este é o nosso desejo.
Que mais se pode dizer?
No capítulo XIII do Bhagavad Gita, intitulado “A Natureza, o Desfrutador e a Consciência”, Krishna diz a Arjuna: versículos 2 e 3:
“ Este corpo, ó filho de Kunti, chama-se o campo, e quem conhece este corpo chama-se o conhecedor do campo. Ó descendente de Bharata, deves entender que, em todos os corpos, Eu também sou o conhecedor, e compreender este corpo e seu conhecedor chama-se conhecimento. Esta é a Minha opinião.”
Krishna está em nós, diz o texto. Buda, ou o estado Búdico está em nós, diz o Sidartha. Cristo está em nós, diz Paulo Apóstolo. O Sagrado está, pois em nós, os profanos, tornados sagrados pela presença de Deus, ou melhor, pela Consciência de Deus em nós.
O que aumenta ao longo das eras?
A consciência de uma presença. A clareza acerca desta inexistência de distância, dessa amálgama do qual somos constituídos. “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Universo e os Deuses”, diz Delfos. Mas quem somos? Somos Deus manifesto; lâmpadas de sua Sagrada Luz, sua Sagrada Fonte.
Conhecer-se é saber-se um ser sagrado.
É respeitar-se, tratar-se a si mesmo com a deferência que trataríamos o Todo Poderoso se estivéssemos separados dele e o reencontrássemos. Tratar a si mesmo com respeito e devoção, não menosprezar-se, não subestimar-se, não nos desvalorizando achando que somos outra coisa distinta de Deus e iludidos por Maya julgamo-nos diferentes Dele.
Não, o homem não deve supor-se um caído, um ser menor, um exilado de um mundo melhor, pois Deus não está entre nós, mas em nós, e, portanto, este é o melhor dos Mundos, pois estamos N’ Êle e não com Êle.
Como o amante pode sentir-se mal na presença de sua amada?
Como o devoto pode sentir-se esquecido, na presença d’Aquele que é a sua devoção?
Como por fim acreditar-se nesta separação se cada fibra, cada célula de nosso ser místico, grita em nossos ouvidos espirituais
“Eu estou aqui, Eu estou aqui!!!”?
Não, a noção de separação não interessa ao místico, só ao religioso.
Só uma religião necessita deste nefasto conceito. É através dele que se justifica a necessidade do intermediário, daquele que intervirá entre nós e um ser qualquer distante, que só ele sacerdote pode tocar, só ele pode sentir, experiência proibida a todos os que não pertençam ao clero daquela fé.
Criam-se dificuldades para vender facilidades.
Só fazendo que os mais simples de espírito creiam que necessitam de um facilitador deste contato mantém-se a dependência desses mesmos indivíduos, deste esquema maligno, que conspira para afastar do homem sua Consciência, que faz do Sagrado, o Separado.
A droga mais viciante e mais cara, no início é fornecida de graça.
É preciso criar o mercado, o consumidor.
Depois, basta suprir a demanda, abastecer os que necessitam deste ópio maldito chamado Separação de Deus.
Agora, libertemo-nos de todas estas tristes imagens e fechemos os olhos.
Por um breve instante, deixemos que as trevas caiam sobre o mundo externo.
Respiremos, profundamente, uma, duas, três vezes.
Quietos, tranqüilos, levemos nossa consciência para o nosso peito, para o nosso coração. Sintamos as suas pulsações, sintamos sua regularidade, sua cadência.
Segundo a segundo, 70, 80 vezes por minuto, sentiremos nosso coração bater em nosso peito, manifestando e testemunhando a vida em nós.
Respiremos novamente, profundamente. Deixemos que o ar penetre nossos pulmões, e com ele, a Vida que ele garante.
Dependemos deste ar, deste coração em nosso peito, do oxigênio bombeado em nosso sangue e levado por nossas artérias por todo o nosso corpo.
Corpo. A Vida está em nós, e faz deste corpo uma de suas manifestações.
Por mais que nossa ciência tenha avançado, ainda não sabemos como criar Vida. Mas Deus sabe, e aqui estamos sentindo a pulsação de nosso coração e o bombear rítmico de nossos pulmões, Vivos, pelo poder e pela vontade de Deus, que nos alimenta com sua energia, que é a nossa energia, a nossa Vida.
Esta Vida, este corpo, aparentemente tão sólido, e no passado tão injustiçado, cujos desejos legítimos, programados em nós pelo Criador foram transformados em objeto de vergonha e nojo, este corpo, perseguido e humilhado pelas regiões, por ser perigosamente prazeroso e belo, é na verdade a morada de Deus. Nada deixa de ser santificado quando o sagrado está presente.
E se o sagrado está em nós, e não separado de nós, ele está, também em nosso corpo, neste momento, neste mesmo instante em que, de olhos fechados, percebemos sua presença pela sua manifestação de Vida nos movimentos automáticos de nossos corações e pulmões.
Existe Vida em nós. E nós não a Criamos.
Desfrutamos dela, mas não é nossa. Somos apenas Sua expressão, da mesma maneira que nosso corpo também é Sua expressão, Seu templo.
“Vimos a este templo sagrado, tornado sagrado pelos nossos pensamentos e conduta...” para viver, para experimentar em nós mesmos esta comunhão com a matéria e com o conhecimento.
Na Carne Sagrada que habitamos, evoluímos.
Na matéria, crescemos, e trabalhamos, e nos divertimos, pois este não é um exílio, mas nosso destino verdadeiro. Nada há além da vida e parafraseando Saint Martin “não há para mim dois tipos de vida, mas apenas uma vida” dentro ou fora do corpo, manifesto de forma visível ou invisível não importa, mas manifesto, pela graça do Sagrado que somos, e no qual estamos mergulhados.
Sim, como gotas no Oceano, que saltam na ilusão passageira e fugaz de independência da grande massa d’água ao seu redor, e para a qual, por gravidade retornará, devemos permitir o Sagrado em nós pela redescoberta de nossa beleza profana.
Pois só pela eliminação dos preconceitos contra a vida, veremos que o sagrado não está nos templos, mas que todas as coisas e todos os espaços são transformados em templos pelo sagrado em nós.
Então, como o Mestre, não oraremos em Igrejas ou Sinagogas, mas nos montes e Desertos;à beira do oceano e em barcos de pesca; nas festas de casamento, nos funerais; na casa de pregadores, dos rabinos ou de coletores de impostos; entre Judeus ou entre Romanos, pois ,diz Pedro, “Deus não faz distinção de Pessoas”.
Não oraremos apenas nos momentos de angústia, mas nos momentos de Glória; e agradeceremos todos os dias, por nossos dias, por nossas noites, por nosso sono e nossa vigília, num movimento de retroalimentação desta divindade em nós.
Agradeceremos pela Vida em nós, e em nossos descendentes, por nossas esposas e maridos, filhos e filhas, por nossos servos e senhores, pois em todos veremos a presença de Deus.
E como o Brâmane, não faremos distinção entre o sábio, o comerciante, o cachorro e o comedor de cachorro, pois em todos veremos a presença da mesma luz divina, independente da cor da lâmpada por onde passa a energia sagrada.
E ouviremos em nós a Sagrada Canção do Senhor, como no Gita, mantricamente a repetir:
“Fica sabendo com toda a certeza que Eu sou a origem e a dissolução de tudo o que é material e de tudo o que é espiritual neste mundo. Ó conquistador de riquezas, não há verdade superior a Mim. Tudo repousa em Mim, como pérolas encartadas num cordão. Ó filho de Kunti, Eu sou o sabor da água, a luz do Sol e da Lua, a sílaba om nos mantras védicos; Eu sou o som no éter e a habilidade no homem. Eu sou a fragrância original da terra e sou o calor no fogo. Eu sou a vida de tudo o que vive e sou as penitências de todos os ascetas. Ó filho de Pritha, fica sabendo que Eu sou a semente da qual se originam todas as existências, sou a inteligência dos inteligentes e o poder de todos os homens poderosos. Eu sou a força dos fortes, desprovida de paixão e desejo. Eu sou a vida sexual que não é contrária aos princípios religiosos; ó Arjuna, fica sabendo que todos os estados de existência – sejam eles em bondade, paixão ou ignorância – manifestam-se por Minha energia.”
Paz profunda a Todos.