Mario Sales FRC, M.:M.:, S.:I.:
Guaratinguetá e Suzano, 21 de Outubro, 2006.
No passado, havia necessidade de ocultar a verdade por vários motivos: perseguições religiosas, a importância daquilo que estava sendo ensinado, a conhecida dificuldade psicológica do homem de valorizar aquilo que consegue com facilidade, etc. Um texto para iniciados, em função disso, era repleto de símbolos e imagens complexas e de difícil decifração.
Para valorizar e resguardar o ensinamento místico precisava-se ocultá-lo, como num jogo de adivinhação.
Com isso, atingia-se dois objetivos primordiais: preservava-se a segurança de informações de grande significado e importância e, ao mesmo tempo, testava-se a determinação daquele que buscasse estes textos.
Esta seria, por assim dizer, sua primeira iniciação, a primeira prova para este indivíduo que queria conhecer estes segredos.
Esta foi a infância do esoterismo, em que tudo era escuridão,véus, principalmente por medo de represálias dos ignorantes, as quais, na época, significavam risco de vida.
Só que, com o tempo, este estilo de escrever por charadas tornou-se um problema e um vício.
Tornou-se obrigatório falar sobre assuntos místicos de modo velado e simbólico, como se houvesse um consenso silencioso sobre como redigir estas informações.
Atualmente, nossa herança de textos esotéricos é composta de muitas páginas de tal hermetismo que a maioria dos místicos não pode ter acesso a eles, e aqueles que se esforçam para interpretá-los, para fazer sua exegese, devem dedicar longos períodos a tal empreitada, em parte por causa dos obstáculos da língua de que falarei adiante, e em parte por causa das armadilhas de interpretação.
Fora os termos que foram propositadamente alterados ao sabor de forças e interesses os mais variados como as alterações feitas nos textos bíblicos pelos sucessivos concílios de cardeais.
Mesmo assim, muitos se dedicam a este esforço de interpretação.Basicamente, estes textos sagrados são pesquisados e lidos por três tipos básicos de pessoas, os quais passaremos a analisar de forma sucinta.
Ao primeiro grupo chamaremos de racionais céticos; ao segundo grupo, de religiosos fanáticos e ao terceiro grupo de racionais sensíveis.
Os Racionais Céticos e os Religiosos Fanáticos
Os racionais céticos assemelham-se mais aos gregos que receberam Paulo, quando de sua viagem de evangelização.Não lhe atiraram pedras; pelo contrário, receberam-no educadamente, na Ágora. Ouviram o que ele tinha a dizer com atenção para depois, dar de ombros com um sorriso de desdém.
Para quase toda a Grécia daquela época, como para uma parte de nossa sociedade hoje, a razão era mais importante que o sentimento e a sensibilidade.
Na verdade, são os céticos que, verdadeiramente, merecem pena e misericórdia.Para eles, religiosos fanáticos ou racionais céticos, (insensíveis, melhor dizendo), o Mestre proferiu a frase célebre: "Pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem". Ou o que dizem, eu acrescentaria.
Erkarthausen, a respeito disto, na primeira carta de Nuvem sobre o Santuário, comenta:
A filosofia do nosso século eleva a fraca razão natural a objetividade independente; atribuindo-lhe mesmo um poder legislativo, isentando-a de uma autoridade superior. Torna-a autônoma e a diviniza, suprimindo entre Deus e ela toda relação, toda comunicação, e esta razão deificada, que não tem outra lei que a sua própria, deve governar os homens e torná-los felizes!... As trevas devem expandir a luz!... A pobreza deve dar a riqueza!... E a morte deve dar a vida!...
Os Racionais céticos acham que estão corretos em seu modo de pensar, não se submetendo a nada nem a ninguém, (em sua opinião), muito menos a Deus, já que para eles, Deus só é palpável através de representantes, os quais nem sempre merecem confiança.
Já o grupo dos religiosos fanáticos é famoso e me abstenho de descrevê-lo em detalhes.O nome do grupo fala por si.
Características de nosso Momento Histórico
É verdade que hoje , como sempre, estamos cercados de charlatães e falsos profetas que, com a habilidade que os caracteriza, seduzem multidões com promessas de soluções fáceis para seus problemas pessoais.
É também verdade que, como em todas as épocas, manda o bom senso que pessoas equilibradas, cultas e refinadas, sejam críticas e cuidadosas com assuntos ligados ao misticismo, sob pena de serem consideradas ingênuas.
Infelizmente, por causa disso, pessoas comuns generalizam esta prudência concluindo que, já que grande parte das pessoas que se dedicam aos assuntos místicos são emocionalmente instáveis e influenciáveis, todo e qualquer indivíduo que se envolva com assuntos esotéricos deve ser no mínimo psicologicamente pouco equilibrado.
Preconceito.Puro preconceito.Aliás, um preconceito fora de moda.Os tempos de hoje são os tempos da diferença, chamados pós-modernos pelo filósofo Jean-François Lyotard.
São tempos do indefinido e da mistura.Tempos de heterogeneidade.
Os Racionais Sensíveis, Os Modernos Buscadores.
Nestes tempos onde é mais fácil ser o que se é, existe espaço para um terceiro grupo de pessoas, de características místicas muito peculiares. Este grupo é formado por aqueles que procuram Deus com fome e sede e que não se envergonham disso.
É verdade que existe um grande número de pessoas que são conduzidas para lá e para cá como gado, por qualquer um dos muitos líderes carismáticos existentes.
Só que não se pode confundir um buscador sincero com um indivíduo que caminha ao sabor de quem o influencie melhor.
O problema dos extremos
Estes pobres coitados, que acham que o racional tudo satisfaz (racionais céticos), ou que, ao contrário, no outro extremo, acham que apenas a crença e a fé, sem o discernimento, são suficientes (religiosos fundamentalistas), não conhecem o contato pessoal e solitário com o Cristo Interno, de forma que suas dificuldades em partilhar a fome do Eterno que está presente na vida de um verdadeiro místico são compreensíveis.
Para quem foram feitos os Textos Esotéricos
Este terceiro grupo, os racionais sensíveis, é composto de mentes esclarecidas e conscientes, que não desprezam o legado da razão, mas não a transformam em um novo Deus; sabem de suas limitações, de forma que se valem da sensibilidade para completar as lacunas deixadas pela razão.
O Gita, o Corão, a Bíblia, os sutras de Patânjali e do Buda, foram feitos para este tipo de pessoas, com olhos e espíritos diferenciados.
E só se pode conversar com quem pode ouvir o que estamos dizendo e compreenda a língua que estamos usando.
Portanto, é para estes místicos, que fizeram este contato, que já chegaram ao momento de dizer que “Eu e Deus somos Um”, que os textos esotéricos foram escritos.
Estas pessoas que, nas palavras de Aristóteles, “vivem, cada dia, todos os dias, pela graça de Deus”, a eles, e tão somente a eles são dirigidos os textos sagrados.
Estas pessoas sabem que o Eterno está dentro deles mesmos. Estes são nossos irmãos verdadeiros, sejam ou não rosacruzes, por que isto, aqui, não tem nenhuma importância.
Todas as formas de adoração, se sinceras, devem ser respeitadas e são legítimas.
Todas as formas de Amor valem a pena.
Todos os caminhos levam ao Deus Único.
Só existe um Deus, só existe uma mensagem.
Parte do mistério iniciático, diziam os Yogues, é que só Shiva é Guru, só Deus é nosso único e verdadeiro Mestre.Qualquer alto iniciado entenderá isto, não importa o caminho que tenha resolvido seguir.
Portanto, textos sagrados de todas as linhas, se forem realmente sagrados, trarão, de modo peculiar e diferente, uma única mensagem, que se corretamente interpretada pela sensibilidade daquele que a interroga revelar-se-á pouco original no conteúdo, embora com formas as mais variadas.
Existe uma escola única de interpretação dos Textos Sagrados?
Não há conflito verdadeiro entre as diversas linhas de religião e seus particulares textos sagrados e esotéricos, mas sim complementaridade, como se cada livro nos trouxesse uma perspectiva a mais daquilo que queremos contemplar, como na parábola dos quatro cegos e do elefante.
“Enquanto vires apenas as diferenças teu conhecimento não valerá uma rúpia. Só começarás a aprender quando começares a ver as semelhanças”, diz um velho ditado árabe.
O espírito do iniciado não se preocupa com diferenças de linhas de pensamento.
Para interpretar bem um texto sagrado ou esotérico é preciso, isso sim, atingir determinado nível de evolução e sensibilidade que todos, sem exceção, deverão buscar, da mesma forma que podemos subir uma mesma montanha por vários lados diferentes, mas lá em cima, o topo será o mesmo e a vista que descortinaremos, será igual.
Na montanha da evolução, buscamos todos, a nossa maneira, subir o mais alto possível.
Mesmo o grupo dos racionais céticos, para um místico, está nesta escalada e são buscadores legítimos se bem que em níveis mais inferiores de percepção.
Todos nós somos buscadores do pico desta montanha, saibamos ou não.
Textos Herméticos Demais
Compreende-se que, no passado, por medo da perseguição religiosa, nós, esoteristas, ocultássemos o sentido verdadeiro de nossos textos.
Só que esconder e velar a luz tornou-se um vício.
E hoje ainda se encontra o culto do incompreensível e do esotérico como se isto fosse sublime.
Basta ser incompreensível para ser respeitado.
Textos simples e diretos não são considerados importantes ou profundos, pelo menos não tanto como aqueles que não são.
Na minha opinião, por exemplo, a parábola contada nas páginas manchadas de graxa em Ilusões, de Richard Bach, é de uma santidade e beleza e de um esoterismo que não deve nada a qualquer texto sagrado já escrito.
Um outro problema é que, para decifrar corretamente uma mensagem codificada, devemos ter em nossas mãos a chave do código.
E isto nem sempre está disponível, por motivos técnicos ou mesmo gramaticais.
Técnicos por que o sentido exato do que está escrito, só aquele que o escreveu sabe.
Todos os que o lêem fazem o exercício normal de interpretação a que qualquer exegeta se dedica.
E gramatical por que, por sobre o código do sentido oculto do texto, cai o manto da diferença da língua, e sobre esta, o manto da diferença de época em que aquele texto, naquela língua, foi escrito.
Portanto, lidamos com três camadas de decifração para um mesmo texto: a camada gramatical da língua original (francês, alemão, etc.) a camada do contexto cultural histórico daquela obra (alemão do século XVII, francês do século XVIII) e, finalmente, mas não menos importante, a camada do sentido esotérico do trabalho.
Com tamanha dificuldade não admira os enormes equívocos cometidos ao longo de todas as épocas com textos laicos, imaginem com textos sagrados.
Na camada da língua, por exemplo, ressalte-se que uma língua é uma entidade viva, que se modifica com o passar do tempo, como se as chaves de decifração fossem se modificando com o passar dos séculos, fato que demanda cuidadosa atualização para não mergulharmos em uma tormenta interpretativa.
Textos muito antigos, escritos nos moldes de uma outra época, apresentam dificuldades ao serem decifrados por causa da distância histórica entre as sociedades e os costumes, mesmo que esteja na mesma língua que falamos hoje.
Dou como exemplo o Príncipe dos Filósofos Divinos e Obscuros, Jacob Boheme, cujos textos nos desafiam por várias razões.
Ao começar a ler Boheme, deparei com um problema conceitual banal, mas que me consumiu duas semanas de dúvidas.
Por razões pessoais e de época, Jacob costumava usar exemplos tirados da culinária para descrever o Universo que contemplava em suas visões.
Numa dessas comparações, no primeiro capítulo de Aurora Nascente, ele se esforça por oferecer uma classificação racional do que ele chama de Qualidades da Essência Divina na Natureza.
Dessas qualidades, quatro delas são nomeadas como amarga, doce, azeda e adstringente.
Entender que o amargo é amargo e o doce é doce para mim, foi fácil; entender que o azedo possa ser doce aí foi mais difícil.
Isto porque, senso comum, em nossa época a maioria das pessoas tendem a achar que a palavra azêdo é sinônima de amargo, o que não é verdade.
E eu era um daqueles ingênuos culinários que ignoravam tal fato.
Ao ler que a qualidade azeda está em oposição às qualidades amarga e doce, mas que pode adocicar a ambas, fiquei no mínimo perplexo. Depois, quando ele continuou dizendo que o azêdo “... tempera tudo convenientemente, é um refrigério e um calmante quando as qualidades amarga e doce se elevam em demasia...” fiquei mais perplexo ainda.
Se já estamos lidando com uma metáfora, pelo menos que seja uma boa metáfora e não uma metáfora em si mesma esotérica para aqueles que, como eu, não são conhecedores tão íntimos dos caminhos do paladar.
Para ele, Jacob Boheme, tudo estava claro e bem descrito, já que em 1612 os temperos eram exemplos considerados fáceis de compreender.
Ao conversar com um frater de Ordem, biólogo, sobre meus problemas com a compreensão deste fato, ele me explicou a natureza complexa do azedo e disse que a sua esposa tinha a mesma falsa impressão de semelhança entre azedo e amargo.
Consolei-me com esta informação e me senti melhor já que minha ignorância era compartilhada.
Este é um exemplo de um problema cultural gramatical, não místico, mas que obstrui uma leitura satisfatória de um texto esotérico.
Por causa da mudança dos costumes, Deus e a criação já não pode ser explicado de maneira clara, através dos sabores.
Consensos
O que impede então que estes textos sejam jogados de lado e abandonados como inúteis? O que torna possível sua interpretação por tantas pessoas de forma satisfatória até com o surgimento de consensos interpretativos?
Parece-me que a chave deste mistério é, como sempre, o ser humano.
Não é o texto, esotérico ou não, que se prepara para o homem, mas o homem que se prepara para o texto.
Pouco a pouco alimentamos nossas entranhas mentais com informações que podemos chamar de complementares, as quais preencherão as lacunas que existem nos textos esotéricos.
Porque é assim que se dá o processo interpretativo: parte compreendemos e outra parte, não compreendemos.
E as partes que não compreendemos ficam como espaços em branco, que serão preenchidos pela nossa sensibilidade e intuição.
Para isso, precisamos pertencer àquele terceiro grupo que analisamos no inicio desse ensaio, os racionais sensíveis, de forma a estarmos aptos ao preenchimento desses espaços.
Místicos pertencentes a este grupo, ao trabalhar um texto esotérico, mantém sempre uma atitude prudente de, humildemente, admitir que sua solução interpretativa pode estar incorreta, mesmo que aquela altura lhe pareça a mais adequada.
Textos esotéricos são assim, formados de duas partes: uma sólida e outra instável e flutuante, que é moldada pela mente daquele que o lê, sendo este fato responsável pelo fenômeno de múltiplas interpretações para um único texto.
O que difere o místico que interpreta um texto sagrado do fanático religioso é a presença ou a ausência da dúvida.
O fanático só tem certezas; o místico, na maioria das vezes, está cheio de dúvidas.
Ele, místico, sabe as limitações de sua natureza humana e ao mesmo tempo em que usa seu intelecto, aplica todo o seu coração ao processo interpretativo, pedindo ao Deus de sua compreensão que o inspire a cada passo de sua empreitada.
Assim, reverente, o místico verdadeiramente inspirado entra no texto esotérico como quem pisa em terreno sagrado, em silêncio, com humildade, sem nunca supor que sua interpretação seja definitiva, mas sim a mais satisfatória para aquele momento da sua vida.
O místico como um artista
Talvez a dificuldade desses textos seja circunstancial, talvez seja proposital e parte de uma estratégia
Cheios de vida, eles dançam ante nossos olhos, assumindo formas diversas, mas sempre adequadas as nossas capacidades, trazendo-nos mais que uma informação, uma experiência estética para nossa percepção.
Isto nada teria que ver com compreensão intelectual, mas seria como sentir o texto, da mesma forma que quem não sabe nada sobre música pode se deleitar com uma sinfonia.
Esta é a grande habilidade do interpretador místico: antes de ser um erudito, para concluir satisfatoriamente sua tarefa ele precisa ter a alma de um verdadeiro artista.
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