Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

DISCURSOS,DISCURSOS,DISCURSOS

Por Mario Sales FRC, SI

Emil Cioran



Estimular comportamentos éticos é sem dúvida um objetivo meritório. É a primeira função dos educadores e líderes sociais,principalmente com seu exemplo pessoal.
Existem, portanto, duas formas de provocar modificações positivas de caráter em outras pessoas: pela demonstração prática ou por elaborações teóricas convincentes, a técnica da persuasão.
Dentre as técnicas teóricas podemos distinguir também dois tipos: através de provocações teóricas intelectualmente instigantes ou pelo método do discurso moralista.
Em uma coletividade de pessoas voltadas para a finalidade de autoaperfeiçoamento, manda a boa estratégia que se use o primeiro tipo de abordagem teórica, aquela que provoca reações mais profundas. Para isso, não é preciso reinventar a roda.
A humanidade dispõe de um acervo de reflexões intelectuais de grande beleza e elegância, acervo este construído do trabalho intelectual de vários e magníficos pensadores ao longo das épocas.
São filósofos e poetas, além de escritores místicos que deixaram suas ideias registradas em textos iluminados sobre variados temas importantes à convivência humana, à construção de uma personalidade digna e a estruturação de um suporte intelectual que possa fortalecer o espírito de tantos seres humanos que tem em comum, na experiência da existência, a perplexidade com a força do acaso em nossas vidas e o receio do sofrimento e da morte, seja a nossa ou de entes queridos.
Embora tenhamos várias vezes, a vaidade de acreditar termos a habilidade de organizar em palavras, a partir de nossa própria experiência, um conjunto de textos, que descrevam ideias e sensações capazes de servir de farol para a vida de outras pessoas, poucos entre nós tem este talento, este dom, de falar sobre as coisas da existência sem o apelo a uma abordagem piegas e melodramática.
Abordagens que recorrem a lugares comuns, com a profundidade de uma poça de chuva em uma estrada de terra, abundam nas livrarias e constituem uma fonte de lucros fáceis, já que embora existam pensadores que defendam que o homem supere, por seu próprio esforço, a necessidade de muletas, o inevitável constrangimento da vida social, com suas idas e vindas, principalmente no campo dos relacionamentos, faz com que o exercito de necessitados espiritualmente de orientação aumente a cada dia.
Infelizmente, este fato gera como todos sabem um mercado extremamente lucrativo para charlatães e embusteiros de todas aas espécies.
A grande maioria das pessoas tem um modo de pensar extremamente simplista, são psicologicamente infantis e emocionalmente influenciáveis. E é exatamente dessa fragilidade que os maus intencionados se aproveitam para criar em torno de si uma legião de seguidores dependentes, fenômeno tão comum em nossos dias como em épocas passadas. E existem charlatães em todos os meios, seja na política como no espiritualismo, no meio esotérico e mesmo entre respeitados escritores.
Mas esse é outro tema para outro ensaio. Aqui nos cabe discutir a natureza dos discursos estimuladores do caráter.
Consciente daquela herança cultural supracitada que a humanidade detém, a Ordem Rosacruz tem por hábito colocar na contra capa de suas apostilas trechos de pensadores consagrados, página esta conhecida como Concordância, no sentido de demonstrar que o assunto tratado naquela apostila encontra apoio no pensamento de filósofos ou pensadores renomados de todas as épocas.
Mesmo assim, nós, artesãos, temos visto uma piora na qualidade dos discursos internos, lidos nas reuniões reservadas da fraternidade. Muitos textos lidos em loja nos parecem mais com um conjunto de repreensões morais do que um estímulo a reflexão e a um comportamento mais equilibrado.
Em alguns momentos, aos mais antigos membros da Ordem, parece que nos tornamos um grupo de moralistas e que nossos discursos internos visam nos dizer como devemos viver ao invés de nos fortalecer com elementos conceituais consagrados que ajudem o fortalecimento de nosso espírito crítico e nos municie nesta perigosa guerra mental na qual estamos permanentemente envolvidos.
E de que tipo de guerra estamos falando? Guerra contra as ideias superficiais, contra a mediocridade, contra a charlatanice de toda a espécie. Guerra, enfim, contra a mesmice intelectual.
A única defesa contra a mediocridade é a cultura. Nossos textos internos devem, embora acessíveis, manter a característica de evitar cair no lugar comum da autoajuda, das frases de efeito, das recomendações banais acerca de um comportamento social deste ou daquele tipo.
Não são todos os textos que apresentam estes vícios, mas alguns são difíceis de crer que tenham sido preparados para uma reunião de elevação espiritual.
Sempre me orgulhei de pertencer a uma Ordem que não discutia assuntos de natureza pessoal, que fazia considerações sobre escolhas pessoais, orientação política ou sexual. Nosso objetivo como rosacruzes é nos tornarmos seres humanos melhores a partir do ponto em que estamos, e não a partir de um critério de perfeição determinado por alguém em alguma sala fechada.
O espírito se manifesta de variadas formas, ou como lembra o Bhaghavad Gita, o mesmo Krishna tem milhares de bocas e rostos. O que importa, portanto, é estimular nossos membros a consumirem alimento espiritual de boa qualidade, a lerem os filósofos, mesmo aqueles que como Cioran[1] “nasceram sem o órgão da fé”. Não importa. Muitas vezes o raciocínio de um ateu é mais interessante e preciso do que o discurso piegas de um crente. E um raciocínio adequado, com ideias claras e distintas, ajuda as mentes a construírem uma personalidade imune aos cantos de sereia dos vampiros de almas espalhados pelo planeta.
A Ordem Rosacruz, ao contrário das religiões, não consola sofredores, mas os instrui, para que se fortaleçam e cresçam em capacidade mental e espiritual.
Nossos discursos lidos em ambiente reservado devem ser, portanto, didáticos e claros, mas sempre livres do apelo fácil das recomendações de conduta, focando estimular cada um dos membros a procurar, por seu próprio esforço, as respostas aos seus questionamentos, não só na tradição esotérica, mas, principalmente, na tradição intelectual filosófica e científica, que em si representa o esforço coletivo da humanidade para libertar-se da ignorância, essa sim, nossa verdadeira e mais perigosa inimiga.
Contra ela voltemos todas as nossas forças.

[1 Emil Cioran (Rasinari, 8 de abril de 1911 - Paris, 20 de junho de 1995) foi um escritor e filósofo romeno radicado na França. Em 1949, ao publicar "précis de decomposition", passa a assinar E.M. Cioran, influenciado por E.M. Forster -esse "M" não tem nenhuma relação com outros nomes do filósofo (como Michel, Mihai, etc.

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