Por Mario Sales
Pico de La Mirandola
Passei o dia de ontem todo mergulhado na terceira
releitura do curso de Cabala Hebraica que escrevi para a Grande Loja.
Depois de tantas idas e vindas e da cuidadosa análise crítica
do Frater Raimundo Bispo, mesmo assim haviam trechos a corrigir, duplicidades a
desfazer.
Considero este processo angustiante. Minha esposa diz que sou bom de começos, mas
ruim nos acabamentos finais. Esta finalização com correções e correções eternas
me aborrece profundamente, se bem que é extremamente necessária.
De qualquer forma tive chance de ler por inteiro os textos
das 18 aulas que sobraram do projeto inicial.
O que era um curso de Cabala transformou-se em um Curso sobre
Esoterismo Ocidental, se bem que a rigor, a Cabala prosperou longe do Ocidente,
em Safed, no Oriente médio, hoje no norte da Galileia.
O polo mais ocidental de intensificação dos estudos cabalísticos,
no entanto, foi a Espanha, e nesse aspecto, de fato, a Cabala ganhou um
prestigio no Ocidente extremamente importante, passando a estimular a
imaginação dos místicos europeus, influenciando outras leituras, como a Cabala
Cristã, na minha opinião uma salada de conceitos de Pico de la Mirandola, e
marcando todo um período entre os séculos XIV e o XIX, talvez o período mais
rico do esoterismo ocidental.
É a época de John Dee, de Francis Bacon, de Johan Reuchlin,
Cornélius Agripa, Jacob Boheme, e outros.
Todos escritores profícuos, estabeleceram em seus textos a
base de reflexões que atravessaram as épocas.
Mas tudo começa com o Discurso sobre a Dignidade do Homem,
de Pico, que lança reflexões para a época, altamente perigosas, considerando a violência
da inquisição e o meio conservador em que floresceram.
Existem boas traduções em português, mas as Edições 70
publicaram uma edição bilíngue que pode ser achada com facilidade, e reproduz
de modo decente as ideias deste pensador italiano.
Pergunta ele “por qual razão seria o homem um grande
milagre? Pelos seus sentidos agudos? Pelo poder da sua razão? Por ser soberano
das criaturas inferiores? Por que os seres humanos deveriam ser mais admirados,
por exemplo, que os anjos?”
Independente do aspecto esotérico, estes questionamentos
provenientes de considerações místico religiosas vão ter sem dúvida impacto na
construção do pensamento iluminista no século XVIII, principalmente pela
valorização do indivíduo como consagração da criação.
Embora motivado pela visão dos judeus, o temor e tremor
presente em todos os textos cabalísticos hebraicos não existe nessa abordagem.
O que se nota é um movimento entusiasmado em direção ao Humanismo, o culto ao
individualismo, talvez a base mais forte da Magia como fenômeno de época.
Como já considerei antes, em outros artigos, Magia não tem a
ver com o culto ao Altíssimo, mas com poder. O mago visa em seus exercícios dominar
a energia invisível da mesma forma que o mundo pós cartesiano pensava em dominar
a natureza material selvagem.
Esta talvez seja a marca indelével do toque ocidental, a
característica de libertar o homem do jugo de crenças religiosas que o esmagavam,
dando-lhe alternativas de ação pessoal sobre o Universo da Criação.
Para os judeus, Cabalá era o aprofundamento do contato com o
divino, que para eles era indescritível, a ponto de recomendarem não
representar conceitos divinos com imagens terrestres ou mundanas, e não
escreverem o nome do Altíssimo, optando pela forma D’us, que evitaria este erro
sacrílego, na sua concepção.
Para a Cabala Cristã a palavra, ou os estudos linguísticos e
numerológicos dos textos em hebraico eram menos importantes do que os efeitos
sobre o mundo destas mesmas palavras. Modificar o que existia com som era uma
possibilidade que incendiava a mente dos esoteristas ocidentais e daí a ideia,
base da magia, de que o simples pronunciar de encantamentos geraria efeitos no
chamado mundo ordinário, materializando objetos, transformando realidades.
Esta concepção, que nasce na Cabalá Prática, vai se
transformar na espinha dorsal do ato mágico, falar para acontecer, dar ordens
verbais aos seres de dimensões paralelas ou as coisas para que elas se
comportem da maneira que o mago deseja.
Em suma, poder.
O Cabalá Judaico visava e ainda tem como objetivo conseguir
a compreensão mais profunda de Deus. O Cabala Cristão visava a compreensão mais
correta das forças invisíveis do Universo de maneira dominar sua aplicação à
realidade.
Para o cabalista hebraico,o poder mágico que poderia advir das meditações cada vez mais
elevadas espiritualmente, resultado das orações e combinações de letras nas meditações judaicas, era um efeito secundário da prática.
Para o Cabala Cristão, ao contrário, era o objetivo
primário.
Essa talvez seja a grande diferença nem sempre explicitada
entre uma e outra linha.
E não estabeleço aqui nenhuma escala de valor entre uma e
outra, com dizer que uma é boa e outra ruim. São aspectos do comportamento
humano, perspectivas em relação ao Universo, que refletem as duas faces de
Adão.
O mesmo Adão que até hoje carrega a marca de ter comido o
fruto da árvore do bem e do mal, que, aliás, em nenhuma parte do texto bíblico
é identificado como uma maçã. O fruto é uma metáfora das consequências de
saber, de abandonar a inocência, de aplicar a nossa consciência aos problemas
cotidianos, em suma, os desdobramentos inevitáveis da chamada “liberdade de
escolha”.
A inteligência humana, esta sim, é o superpoder do homem. E
já dizia o tio do Homem Aranha: “Grandes poderes trazem grandes responsabilidades.”
É, pois, nossa responsabilidade transformar o mundo para
melhor ou para pior usando nosso conhecimento. E considerando o grande talento
humano para cometer equívocos, ter em mente uma bússola ética me parece um
cuidado prudente.
Ao associar o conhecimento ao contato mais íntimo com o Senhor do Universo,
a Cabalá Judaica se valia dessa bússola espiritual que não diviso na cabala
cristã, embora esta se chame cristã.
É uma visão pessoal, claro que sujeita a críticas, e estou
aberto a ouvir outras posições. Mas já que ninguém lê este blog, acho difícil que
tal debate prospere.
As pessoas em geral têm interesses mais mundanos a cuidar e
essas reflexões podem parecer bizantinas por demais para absorver a atenção de
muitos.
Que assim seja então.
Paciência.