por Mario Sales
POEMA EM LINHA RETA
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Fernando Pessoa , Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática. 1944 (imp. 1993). p. 312.
Falamos dos nossos embaraços como se fossem experiências raras e por isso, desconcertantes. Como se a maioria de nossos atos e falas fossem coerentes e adequadas.
Pensando bem, pelo menos no meu caso, estou sempre cometendo gafes e equívocos.
Sexagenário que sou, ainda gaguejo diante de certas falas, ainda me sinto inseguro diante de certos desafios. E estou sendo vago e impreciso por vergonha de dar detalhes sobre minha própria e ridícula vida.
Afinal, todos somos vítimas das nossas próprias fantasias, das nossas crenças pessoais sobre o quanto somos belos, atraentes, sábios, justos, elegantes. Levados por nossa vaidade e ausência de discernimento, temos idéias pessoais acerca de nós mesmos exageradamente positivas, e não entendemos como outros não conseguem, a não ser por má vontade ou inveja, ver o quanto somos dignos, espiritualizados, cultos e, além disso, possuidores de um corpo belo e sexualmente atraente.
Talvez não exista, entretanto, área do comportamento onde sejamos mais vítimas do autoengano do que no discurso, na fala. Se somos capazes de nos enganarmos ao contemplar o mundo e a nós mesmos, imagine quando narramos a descrição deste mesmo mundo a nossa volta.
Pensamos, quase sempre, que dissemos o que deveríamos ter dito, que fomos compreendidos da maneira como desejávamos ser entendidos.
Os diálogos de que participamos são para nós absolutamente satisfatórios, e nossos interlocutores, na nossa nada humilde concepção, entenderam com certeza aquilo que queríamos dizer ou insinuar.
Via de regra, só percebemos tardiamente, a posteriori, o quão ridículos e imprecisos fomos em nossas palavras e silêncios. E nesses raros momentos de iluminação e consciência, percebemos que o momento adequado para dizer o que se queria dizer já está no passado, perdido na linha do tempo. Não há como voltar, nem como corrigir. Ser ou parecer ridículo é um evento irreparável, fica como uma nódoa histórica preservada, exatamente na memória das pessoas as quais não desejaríamos que guardassem de nós quaisquer lembranças desagradáveis, desabonadoras.
Até agora, falei apenas das relações sociais.
Não me ative a área de alta periculosidade do afeto, dos sentimentos. E se, sem amar, somos tolos, amando somos ainda mais tolos e estabanados.
Toda nossa elegância e equilíbrio se desfazem, como areia no vento. Difícil é saber o que é mais doloroso: a frustração de não se conseguir falar ou calar o que se quer na presença do ser desejado ou o desgosto de se ter dito o que se disse, ou se deixou de dizer. E aí, o tempo segue seu rumo, e o momento passa, a janela se fecha, e mais uma decepção vai para nosso depósito de fracassos.
Fracassos que, como lembra Fernando Pessoa, só ocorrem conosco, pois aparentemente “todas as outras pessoas são príncipes” ou princesas, enquanto que a nós sobra o papel de bobos da corte oficiais e permanentes.
De tal forma que textos como esse, que se destinam a discutir a banalidade da existência e das nossas existências, são rejeitados como manifestações particulares e estranhas que não correspondem a vida da grande maioria dos leitores, já que “nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.”
E se houver sentimento envolvido, então, tudo piora, pois “poderão as mulheres não os terem amado, podem ter sido traídos - mas ridículos nunca! E eu, (desorientado pelo sentimento) que tenho sido ridículo sem ter sido traído, como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que venho sido vil, literalmente vil, vil no sentido mesquinho e infame da vileza?”