Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

quinta-feira, 14 de maio de 2020

O VINHO SOLITÁRIO


Por Mario Sales



Talvez o que mais machuque além das mortes desta pandemia seja a solidão.
A solidão em si não é algo ruim. O que incomoda e entristece é a proibição de compartilhar.
Vejam esta taça de vinho a minha frente.
O sabor, tomada solitariamente, sem os companheiros das quintas feiras, não é o mesmo.
Compartilhar o vinho verdadeiramente lhe acrescenta paladar e êxtase. E embora trate-se de um belíssimo vinho italiano, o Lucarelli Puglia Rosso, amarga um pouco na minha boca que tantas vezes para ele só teve elogios.
Nada existe sem um contexto que lhe dê sentido. A consciência é doadora de sentido, diz Husserl.
De fato. E complemento, a consciência costuma enriquecer esse sentido desde que existencialísticamente considerada. É no ambiente social, no dividir com os amigos mais queridos e estimados as sensações e as experiencias que estas ganham dimensão e importância, ou melhor, ganham esta importância de uma forma mais exuberante, mas muito mais exuberante, do que se estivéssemos a sós, com nossos pensamentos, passando por este momento.
O vinho é o exemplo disso. O sabor do vinho está na amizade e no compartilhamento.
Ninguém toma uma taça de vinho, como supõem os néscios, para embriagar-se. Bebe-se vinho com os amigos para aprofundar afetos, melhorar o humor e repartir o ônus e o bônus de viver. Que importa a existência solitária? Que importância tem o santo isolado e sem estar exposto as tentações?
Não, é preciso participar do processo social e ali resgatar a essência do viver e principalmente do con-viver, razão da vida social e mola da evolução e do aperfeiçoamento psicológico e humano.
O outro não é o inferno, como pensava Sartre; o outro é fundamental.
Precisamos uns dos outros como o beduíno da água no deserto. Amigos ou adversários, companheiros de existência, marcam nossos referenciais espaço temporais e emocionais.
É pela forma que con-vivemos que definimos até onde podemos chegar, quanto tempo levaremos para isso e quais emoções precisamos aperfeiçoar para a viagem.
Pessoas são referenciais, placas que nos auxiliam nas muitas bifurcações da estrada a optar por este ou aquele trajeto.
Impedem nosso livre arbítrio, pois relacionar-se é constranger-se ao possível e não fazer o desejado, nas ao mesmo tempo auxiliam no arbítrio entre as opções que nos são apresentadas a todo momento.
Paradoxo. Escolhemos e ao mesmo tempo não podemos escolher senão aquilo que escolhemos, pois em cada escolha pesamos o passado e o presente de nossos relacionamentos, os exemplos que testemunhamos e as experiencias que dividimos com outras pessoas.
Caminhos solitários são paralisantes. É preciso correr riscos nos relacionamentos com outros, junto com estes outros e como Kiekegaard lembra, “arriscar-se é perder o equilíbrio por um tempo, mas não arriscar-se é perder-se a si mesmo para sempre.”
E esse risco chama-se existir em relacionamento, com instituições sim, mas principalmente com pessoas, que como eu disse, dão sabor ao vinho e a vida.
Ser obrigado a não ver aqueles que amamos é não só torturante, mas antinatural.
Este é um dos grandes males deste vírus amaldiçoado, provocar um forçoso exilio existencial.

Um comentário:

  1. Nesse momento, lembremos das reflexões de São João da Cruz frater!
    Algo bom, além do vinho irá minar de nós.
    Opto por agradecer, com amor diferenciado, as refeições, pois nesse momento muitos estão sofrendo no planeta, fantástico também é acordar sem febre e sem dor, cada dia de saúde me sinto uma espartana preparada para uma jornada vitoriosa.
    Aproveito pra usar o conhecimento pra fortalecer os que ainda estão de pé.
    As vezes dá um medinho, e trato de deixar ele pequenininho.
    Quero fazer parte do time das quintas feiras!

    Flor lilás também!
    Pra animar os comentários de suas reflexões.

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