Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

quarta-feira, 29 de julho de 2020

A CHARLATANICE QUÂNTICA


Por Mario Sales




De onde vem o termo “quântico”, como adjetivo?
O que podemos afirmar é que sua introdução no imaginário popular se deu na primeira metade do século XX, quando os trabalhos de vários pesquisadores foram expostos pela detonação da primeira bomba nuclear.
Seu efeito devastador, as milhares de vidas calcinadas de modo súbito, levaram a imprensa e o publico em geral a tentar entender de onde havia surgido tamanho poder de destruição.
Na busca dessa explicação, jornais e revistas começaram a falar em uma linhagem de físicos que tinha em conjunto, construído o que seria batizado de física quântica ou mecânica quântica, no inicio do século XX.
Nomes como Rutheford(1871-1937), Bohr(1885-1962), Plank(1858-1947), Einstein(1889-1955) e Werner Heisemberg (1901-1976), fora o do diretor do projeto Manhatan, empreendimento secreto americano que teria levado à construção da primeira bomba nuclear, Julius Robert Oppenheimer (Nova Iorque, 22 de abril de 1904— Princeton, 18 de fevereiro de 1967), tornar-se-iam conhecidos de muitos curiosos, leigos, que queriam entender como, aparentemente de modo súbito, o mundo tinha entrado no período conhecido como a era nuclear.
E porque “nuclear”? Porque o que tinha acontecido nas duas cidades japonesas devastadas pela bomba, Hiroshima e Nagasaki, tinha a ver com a ruptura do núcleo do átomo, algo invisível, mas que uma vez provocado, mostrara sua ira de modo apocalíptico.
Quântico vem de quantum, termo em latim que significa “quantidade”. Mas quantidade de que?
Na Wikipedia encontramos o seguinte:
“A palavra “quântica” (do Latim quantum) quer dizer quantidade. Na mecânica quântica, esta palavra refere-se a uma unidade discreta que a teoria quântica atribui a certas quantidades físicas, como a energia de um elétron contido num átomo em repouso. A descoberta de que as ondas eletromagnéticas podem ser explicadas como uma emissão de pacotes de energia (chamados quanta) conduziu ao ramo da ciência que lida com sistemas moleculares, atômicos e subatômicos.”[1]









Um quantum, portanto, equivale a energia de um elétron, desde que o átomo de que ele faça parte esteja “em repouso”, já que se não o estivesse, estaria absorvendo energia e esta modificaria a quantidade de energia do elétron fazendo-o saltar de uma órbita atômica para outra.
Na verdade, átomos não são reproduções em miniatura das orbitas de corpos celestes. A não ser que a Lua, para dar um exemplo, aparecesse e desaparecesse de tempos em tempos, durante a sua orbita da Terra, ora aparecendo mais próxima, ora mais distante.
Como entre a Lua e a Terra, igualmente nos átomos, a distância entre a periferia com os elétrons e seu centro, seu núcleo, (daí o adjetivo “energia nuclear”) é formada apenas de vazio.
Ou pelo menos é o que nos parece, já que os campos gravitacionais que agem entre um e outro corpo celeste não são visíveis.
Só que eles estão lá. E as marés dos oceanos, que sobem e descem de nível, são as provas visíveis disso.
Foi, portanto, uma bomba que matou milhares de pessoas que fez as pessoas acordarem para a força do que é invisível e material.
Embora já se soubesse que outras coisas materiais, não espirituais, são invisíveis, como as bactérias, a ideia do invisível e impalpável atuando sobre o visível e palpável, de maneira trágica e espetacular, a um só tempo, só se tornou clara após a bomba.
O ruído físico e ético de sua explosão despertou a multidão de um torpor que fazia supor que o mundo era facilmente determinado, em que a separação entre o real e o irreal era simples e indiscutível.





De lá pra cá tudo mudou.
No mês que vem, no dia 6 de agosto, data da explosão em Hiroshima, completaremos setenta e cinco anos de nosso despertar.
E com isso melhoramos nossa percepção da complexidade da realidade. Melhoramos?
Não. Mudamos apenas o foco de nossa ignorância.
O que a física quântica nos trouxe? Perplexidade.
O comportamento das partículas sub atômicas, menores do que o átomo, é radicalmente diferente daquele das coisas chamadas “densas”, visíveis.
O mundo quântico é incerto, de comportamento misterioso, onde alguns elétrons desaparecem e reaparecem como se fossem para o nada e voltassem desse nada para a existência com naturalidade.
Isso não criou apenas humildade naqueles que estudaram e estudam este campo de modo profissional, os físicos. Não.
Deu também origem a uma nova classe de pessoas que a exemplo de Simão, o Mago, julgam ser possível usar determinado fenômeno em proveito próprio, na busca do lucro fácil, o chamado “charlatanismo quântico”.
Nesta sub área, onde não só as partículas discutidas, mas também a dignidade dos envolvidos, são muito pequenas, um sem numero de indivíduos propaga com uma certeza invejável, que são sabedores de maneiras pelas quais um mundo misterioso e incerto pode fornecer efeitos práticos para a vida pessoal, afetiva e profissional de muitos, principalmente daqueles que estão dispostos a desembolsar grandes quantias em dinheiro por livros, cursos de dois dias, ou vídeo aulas que prometem o paraíso na Terra para os seus consumidores.
A ponte que liga estas duas áreas da atividade humana, uma altamente matemática e séria e outra altamente desonesta e fantasiosa, como tudo na história do charlatanismo, é absolutamente sem consistência.
Não há, repito, não existe qualquer relação entre o campo da física quântica e possíveis técnicas de cura de doenças complexas, ou relação entre sucesso financeiro e pessoal e partículas subatômicas.
Mais.
Quem propõe estes vínculos, estas ligações, sabe muito bem disso. Mesmo assim, sem qualquer pudor, vende a ideia de que a física quântica é uma nova área para o esoterismo.
E apoia-se na própria natureza desse campo, que estamos apenas começando a descortinar, cheio de dúvidas e de situações contra intuitivas, incomuns e, em termos matemáticos, aí sim, extremamente esotéricas.
Ou seja, só dois tipos de pessoas podem desmascarar essa farsa. Físicos sérios, dedicados a mecânica quântica, ou céticos, de qualquer camada da sociedade.
Aliás, até físicos estão envolvidos nesta peça burlesca como é o caso de Amit Goswami, que viaja pelo mundo auto intitulando-se “ativista quântico”, seja lá o que este termo pomposo e vazio queira representar.
Vejam, defender posições pessoais e compreensões particulares do que é e o que significa esta nova área de conhecimento é legitimo, mas transformar esta cruzada em fonte de lucro pessoal, não.
Isto me lembra os antigos televisores que funcionavam com válvulas enormes aonde a energia fluía na geração da imagem captada para um bulbo a vácuo, chamado Tubo da TV. Meu pai, que não tinha formação em eletrotécnica ou no conserto de televisores, aprendeu em um curso por correspondência como fazer o reparo simples destes aparelhos.
E enquanto ele abria a parte de trás da televisão e testava aquelas válvulas enormes quanto ao seu desempenho, na intenção de trocar as que estivessem queimadas, minha mente de criança olhava fascinada para todo o interior do aparelho sem atinar qual a função de cada peça, mas absolutamente hipnotizada pelo conjunto, cujo deslumbre aumentava na proporção direta da minha ignorância sobre seu significado e função.
Algo muito antigo em nós, uma lembrança de tempos idos, ainda faz com que nos ajoelhemos diante do que não compreendemos, como se estivéssemos na presença do Altíssimo. 
E mesmo considerando o respeito que Deus nos provoca, tal infantilidade mental só nos envergonha.
Talvez nos falte a humildade de um cientista, que diante da natureza 
não se ajoelha, mas se encanta, embora o Universo e suas maravilhas o encham de humildade. 
O encantamento do sábio difere, pois, do fascínio infantil do ignorante diante do desconhecido.
Como diz o nome, ciência é conhecimento. Tomar ciência de alguma coisa é conhecer.
“A etimologia da palavra ciência vem do latim scientia ("conhecimento"), o mesmo do verbo scire ("saber") que designa a origem da faculdade mental do conhecimento.”[2]
Tudo o que acontece a nossa volta pertence apenas a duas categorias de fenômenos: os conhecidos e compreendidos (portanto científicos) e os ainda não compreendidos (também passiveis de se tornarem científicos) mas que, com o tempo e o esforço, tornar-se-ão tão corriqueiros quanto as válvulas misteriosas, hoje coisas do passado, desaparecidas, dos televisores antigos.
Nada perturba mais a mente do que permitir que ela aja sem controle e que a imaginação seja contaminada pela fantasia.
E a mente é o material de trabalho do psicólogo, do psicanalista e do místico.
Que a higiene que dispensamos ao nosso corpo se estenda aos nossos pensamentos e às nossas reflexões, até que possamos, finalmente, poder dizer que nos tornamos psicologicamente adultos.


2 comentários:

  1. Escrita coerente e muito interessante.

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  2. Essas e muitas outras bobagens tão em voga em nossos dias vendem milhares de livros, filmes, vídeos, palestras, conferências etc. Criou-se um mercado imenso com produtos de toda espécie, ditos, todos eles, quânticos. Parabéns pela bela reflexão!

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