Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

domingo, 24 de janeiro de 2021

NÃO SOU NADA

 

Por Mario Sales

 

“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”

Fernando Pessoa in “Tabacaria”




 

Sempre achei curiosa além de infantilmente arrogante o hábito maçônico de conferir o título de mestres aos que atingem o terceiro grau de loja.

A palavra deveria ser reservada àqueles que realmente tem algo a ensinar, ou que se dedicam a esta nobre arte de passar, de modo compreensível, o conhecimento das eras, nem que seja para evitar que cresçamos para ter medo de vacinas ou achar que a Terra é plana.

Tal comportamento anticientífico deveria ter desaparecido da face de um planeta que se supõe tecnologicamente avançado, mas bem sabemos que estes não são os fatos. Carl Sagan já tinha previsto esta combinação nefasta de muita tecnologia nas mãos de quem não consegue compreendê-la, e que supõe, de modo ingênuo, que nossas conquistas cientificas foram simples e fáceis e realizadas em uma década, ou menos até.

Tal como crianças pequenas que não sabem os esforços e o cansaço envolvidos em mantê-los aquecidos, saudáveis e alimentados, grande parte da humanidade se comporta, nas palavras de um pensador contemporâneo, como se tivesse apenas direitos e não deveres.

Voltando ao tema, muitos querem da mesma forma ser mestres sem ter o que ensinar a alguém, sem estarem prontos para assumir a responsabilidade por um ou muitos discípulos. Esta relação, que configura um laço, um envolvimento que ata professor e aluno, torna esse exercício difícil, às vezes angustiante. Pode ser, entretanto, extremamente gratificante, se redunda em algum tipo de retorno, se o mestre divisa na face do aluno aquele lampejo que denuncia ter ele compreendido e absorvido o conceito estudado, fato em si suficiente para fazer o dia ou a semana de qualquer professor.

A maestria é, pois, um serviço, uma função social e humana, uma profissão. Não deveria ser um instrumento de vaidade, algo para aumentar o ego de quem não tem um conteúdo solido sobre nada.

Hoje, após seis décadas nessa encarnação, sei como é bom ser discípulo, como é confortante ter alguém que nos auxilie e inicie nos conhecimentos ainda desconhecidos. Sei também, com absoluta clareza, que não tenho merecimento nem para ser discípulo, e quando falo em merecimento não me refiro a aspectos éticos ou morais, mas à um conjunto de condições neurológicas que me permita absorver de modo rápido e eficiente os ensinamentos necessários acerca de qualquer assunto estudado.

Essas condições são docilidade ao receber a informação, capacidade de concentração suficiente, uma mente pragmática, uma memória privilegiada, energia e determinação para reler os textos e rever os conceitos ainda não totalmente compreendidos.

Sempre fui um analítico nato, e embora isso me confira um caráter reflexivo me faz, da mesma forma, um argumentador incontrolável, que, pelo menos no passado colocava em estado dialético cada ideia, cada informação. A docilidade citada acima permitiria que primeiro a informação fosse absorvida para depois ser analisada, como a comida só pode ser digerida depois de ser deglutida.

Hoje posso dizer que graças ao amadurecimento já não discuto tanto com as informações como antes, já mastigo mais as ideias e as engulo com calma, sem desconfianças ou rejeições automáticas, sistemáticas.

Embora não possa dizer que dominei a arte de escutar, hoje escuto mais do que falo. Tenho sincero desejo de compreender o interlocutor, quando a sua fala me causa interesse ou curiosidade. No caso de nem  uma coisa nem outra, aprendi a ser polido e não contra argumentar.

Isso já foi um grande alívio, psicológico e emocional.

Repito, estou me esforçando para aprender a arte de ser discípulo, não mestre. Querer ser mestre é uma bobagem. Ser um bom aluno, isso sim é uma meta factível, sensata.

“Não sou nada, nunca serei nada…” lembrava brilhantemente Pessoa. E completava que “à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.

Sim, todos temos em nós a natureza da água do oceano, gotas que somos, mesmo assim somos apenas gotas, aprendendo a manifestar a água em nós, libertando-nos da impressão falsa de que somos algo mais que água ou diferente da água.

A capacidade de se concentrar é outro aspecto delicado. Principalmente quando a emoção mostra seus dentes, manter-se focado é difícil. Como agora em que escrevo enquanto no quarto ao lado meu idoso pai, doente, parece ter desistido de lutar e piora dia após dia, o que embora não me surpreenda, me entristece. Não é a morte física, a saída de um corpo já inadequado, que me aborrece, mas o desconforto logo antes disso.

Aos 96 anos ninguém deveria sentir dor ou falta de ar. A vida física deveria extinguir-se lenta e delicadamente, sem sofrimento. Nem sempre no entanto é assim. Nestes dias de peste, muitos amigos nos deixaram sufocando nos leitos de hospitais. Notícias chegam a todo momento de pais de amigos internados, desencarnando. Meu pai não tem COVID, mas está triste, diabético, com o coração fraco, e triste pela morte de minha mãe mês passado, ela sim de complicações tardias do COVID.

É um período difícil, como são todos os períodos no corpo.

Dentro desse contexto, escrever esse artigo exige capacidade de manter o foco independente de outros acontecimentos como monitorar as necessidades de um pai doente.

A mente pragmática, terceira condição do discipulado, é aquela que sabe das dificuldades e dos problemas a serem enfrentados, mas enfrenta-os um de cada vez dentro de suas possibilidades, dividindo as tarefas cartesianamente em partes para depois ir eliminando uma a uma. Se for interrompida, deixa marcada a fase em que parou de onde poderá retomar o trabalho quando puder.

Esse tipo de comportamento não pressupõe apenas capacidade intelectual, mas antes de tudo serenidade interior para seguir os passos um a um, independente das já citadas distrações que a vida nos traz.

Nem todo discípulo aceito pelos mestres da Fraternidade Branca eram portadores dessa serenidade. Quem ler Cartas dos Mahatmas, livro teosófico que narra os primórdios da Sociedade Teosófica, verá que Blavatsky teve serias crises emocionais em função das falsas acusações de que foi vítima e que caíram por terra apenas 100 anos depois de terem sido feitas, por intermédio da mesma instituição que as tinha feito.

Mesmo assim era ela uma das discipulas aceitas por Morya porque sua lealdade e determinação eram indiscutíveis e ao que tudo indica, estas eram as mais importantes qualidades para eles naquela época.

É claro que em um cenário ideal não deveria ser assim, mas devemos ter em mente que somos seres humanos, não conceitos.

Nossa vida e nosso karma, via de regra, não são uma linha reta, mas um traçado instável, oscilante, em que equilibrado é aquele que oscila menos e não aquele que não oscila.

Quanto a memória, quando a classifico em privilegiada, não me refiro a característica comum de reter dados e evocá-los quando necessários.

Por privilegiada refiro-me a qualidade de não repetir erros de natureza emocional e psicológica uma vez que tenhamos sofrido com eles.

Aliás, o sofrimento, este sim é um grande mestre, pois fixa em nossos engramas os eventos que nos causaram dor e desconforto para que instintivamente fujamos de episódios semelhantes. O que sucede é que muitos, por não aprofundarem suas avaliações íntimas, por não, digamos assim, fazerem o dever de casa, acabam se enredando em situações afetivas semelhantes seja no relacionamento com terceiros, seja no relacionamento consigo mesmo. Essa pessoa não terá a tal serenidade citada antes por não ter resolvido questões de caráter íntimo e não por lhe faltarem qualidades intelectuais.

É privilegiada a memória daqueles que erram uma única vez, já que a “desgraça dos homens é esquecer”.

Já energia e determinação no estudo são qualidades que andam lado a lado, já que uma depende da outra.

Lembro-me quando era uma criança no subúrbio que ficava fascinado com pessoas que tinham bicicletas com um dínamo atrelado ao pneu da frente. O movimento do pneu fazia com que a borracha roçasse o dínamo que então girava levando energia elétrica para o farol da bicicleta.

A energia e a determinação em pedalar andavam juntas e sem um movimento contínuo do ciclista o pneu não rodava e o dínamo não funcionava, mas se fosse o contrário a luz do farol ia bem longe e o caminho era mais seguro.

Textos esotéricos, como todo texto obscuro, demandam paciência e calma em sua interpretação. Sem energia a luz sobre estes textos não brilhará. Só pela leitura repetitiva e contínua conseguimos gerar condições de compreensão. Muitas vezes, uma repetição monótona, mas absolutamente necessária, como o movimento dos pedais da bicicleta.

Docilidade, capacidade de concentração , pragmátismo, memória, energia e determinação , somados, levam inevitavelmente à discrição e à humildade. Discrição porque são tantas e tão especificas as informações que poucos serão aqueles com quem o discípulo poderá dialogar satisfatoriamente e humildade porque qualquer um que se dedique de maneira sincera ao estudo perceberá eventualmente o tamanho de sua ignorância. Por mais que leia, por mais que estude, jamais imaginará este disparate de que se tornou um mestre ou coisa que o valha mesmo que muitos possam considerá-lo como tal.

Todas as pessoas sensatas conhecem a armadilha psicológica por trás dos elogios e dos títulos e talvez o de mestre seja um dos mais perigosos, já que o tolo se supõe no direito de exigir daquele que ele considera um mestre um comportamento e uma infalibilidade inexistente entre seres humanos, mesmo entre os altos iniciados, os Devan Choan.

A Adulação precede a cobrança e a cobrança, não satisfeita, leva à frustração e ao ódio. Lembrem-se, o ser humano infantil, como disse, é alguém que acha que tem apenas direitos e não deveres.

Por isso a discrição. Não se trata de querer esconder o que em si não pode ser ocultado. Trata-se de fugir dos equívocos e das armadilhas dos relacionamentos humanos, talvez a pior delas aquelas em que milhares de pessoas querem um mestre pra chamar de seu e para ele transferir a responsabilidade de viver por eles aquilo que é obrigação de cada um passar.

Todos temos nossa dor, mas é exatamente ela que nos ensina e nos motiva, que nos empurra para a frente e nos aperfeiçoa. Em silencio, sem drama, o desconforto vai nos manipulando e moldando nossa personalidade, tornando-nos mais e mais flexíveis. Como a água que se adapta a diferentes recipientes.

Não somos nada a não ser água, uma mera gota d’água com a presunção de ser independente da massa do oceano da qual salta e para a qual retorna.

Não sou nada, nunca serei nada. Contentar-me-ia entretanto em ser um bom discípulo, um dia, quando assim for possível.

Paciência.

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