Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

TEXTOS E CONTEXTOS


por Mario Sales, FRC.:, C.:R.:+C.:, S.:I.:(membro do CFD)






Todo escritor é um descritor. O que ele faz é usar palavras para transmitir imagens, mesmo quando trabalha com conceitos abstratos em demasia. Se o cérebro não consegue ver a ideia descrita por um texto ele automaticamente faz analogias, e a expressão “ é como se fosse...” aparece seguida de um modelo de comparação. O cérebro anseia por visualizar aquilo que ele quer compreender e, em certas circunstâncias, talvez na maioria delas, compreender é igual a visualizar a ideia. Tendo uma representação imagística da ideia, quando o cérebro repassa a ideia a terceiros, ele apenas descreve a ideia que ele captou da explicação ou da descrição feita pelo escritor que ele consultou.
Textos que não oferecem uma imagem clara de suas linhas gerais não atraem a mente, são de difícil compreensão, e muitas vezes são abandonados.
Textos esotéricos, por não contemplarem esta clareza na imagem, muitas vezes são confusos e obscuros. Por muitos anos supomos que esta obscuridade fosse voluntaria e visasse afastar os profanos, ocultar nobres informações, resguardar de olhos não iniciados os conhecimentos sublimes.
Mas, e se fosse apenas incompetência literária?
E se, por outro lado, aqueles que escreveram estes textos tivessem, por variadas razões, dificuldade de se expressar, ou de descrever imagens tão grandiosas exatamente por que à época lhes faltavam as palavras certas para descrever a visão?
A obscuridade do texto não seria, portanto, voluntária, mas involuntária, já que, supõe-se, quem escreve e publica um texto, esotérico ou não, quer expressar e comunicar uma visão, quer dividir e não esconder um conhecimento com tantas pessoas quantas possam ler seus textos, em todos os lugares e em todas as épocas que este texto atingir.
Não é, pelo menos em princípio, sua primeira intenção ocultar, pois quem escreve e publica o que foi escrito busca revelar.
Existem portanto, vários aspectos a considerar quando nos deparamos com um texto esotérico, além do seu esoterismo em si.
E o principal é este: o que o autor tentou fazer, em princípio, foi partilhar uma informação, e se não o conseguiu pode ser apenas porque não teve competência descritiva para tal e não porque não quis.
Isto nos leva a outra consideração: quem descreve mal, por causa de suas limitações intelectuais e literárias, pode confundir a imagem de tal forma para quem o lê que, em vez de a revelar, torna-a mais confusa, como uma miragem no deserto.
Existe na miragem algo de inconstante, de flutuação, uma instabilidade que exige de quem a contempla que force a visão, que proteja os olhos com as mãos para diminuir o reflexo do sol do deserto e outros artifícios quaisquer para que possa se certificar de que a imagem é realmente falsa. Neste momento é preciso atenção a todos os detalhes, com muito cuidado, para que não sejamos vítimas de uma simples ilusão.
Ao descrever uma visão mística, da mesma maneira, é preciso o mesmo tipo de zelo, para que o que se passe adiante não se transforme em um obstáculo a compreensão em vez de um esclarecimento ( do verbo esclarecer, tornar claro, tornar mais luminoso). 

Descrever experiências místicas torna-se uma missão delicada por vários motivos. Um deles é que aquilo que supomos ser uma experiencia mística, às vêzes não é. Parece ser e ganha este status pelo grau de estranheza e incompreensibilidade que traz consigo.
Façamos um exercício ao estilo Erick Von Daniken. Imaginemos que no passado muito remoto, quando nosso estado civilizatório era muito precário, fossemos visitados por um grupo de cientistas de um planeta mais avançado que o nosso, com capacidade de viagem interplanetária. Óbvio que na época, nesta situação hipotética, não se poderia evitar de crer que as pessoas a nossa frente não fossem seres divinos, anjos que vieram do céu em carruagens de fogo, como descreve a passagem de Elias[1] em Reis 2, cap 2, versículo 11, onde ele é arrebatado por um "carro de fogo" com "cavalos de fogo".
Descrição fiel dos fatos ou metáfora explicativa?
E se aplicássemos aqui a fórmula "é como se fosse..."?
Teríamos então "é como se fosse um carro de fogo" ou "é como se fossem cavalos de fogo", etc,etc,etc.
O Vedanta e os livros sagrados da India nos dão outros exemplos desta situação, como o próprio Daniken, na sua época, descreveu. É o caso dos Vimanas[2], as máquinas voadoras descritas no Ramayana[3]. Sâo descrições tão curiosas que descem a detalhes como a diferença entre "agnihotra-vimāna", vimana com dois motores (?) (Agni significa fogo em sânscrito), e "gaja-vimāna", com mais motores (Gaja significa elefante em sânscrito).
Não estou defendendo as teses de Von Daniken, mas suas especulações não são de todo inverossímeis a não ser pelo fato de que nos recusamos a crer na existência de diferentes culturas interplanetárias além da nossa, quanto mais com tecnologia suficiente para nos visitar ou interferir em nossa vida política e social.
Fora este pequeno detalhe, resta a possibilidade de que os textos sagrados sejam sim narrativas de cunho moral, mas também histórico, descritos dentro das possibilidades da época sobre coisas absolutamente humanas.
Já que estamos especulando, façamos uma extrapolação aos sábios que escreveram os Vedantas, os Rishis.
Nada impede que os Vedantas sejam apenas e tão somente um protocolo de aceleração cultural passado como um documento de apoio a uma incipiente civilização por outra já bem mais estruturada. Talvez a chamada "1a diretriz", da mitologia moderna de Jornada nas Estrelas, seja apenas, como o nome diz, um mito, e as civilizações interfiram sim, umas nas outras, mobilizando-as sociocientificamente.
A clareza de um texto, prejudicada pela incapacidade de compreender um fenômeno excessivamente complexo a nossa frente, só pode ser garantida se mantivermos a prudência que os textos científicos tem. Jamais afirmar nada sem provas, dar a nossa narrativa o tom mais objetivo possível, são garantias de se ter um relato mais compreensível, mais prudente e mais fácil de ser compreendido.
Não falar do que não se pode descrever com clareza e admitir isto, que certas coisas não podem (pelo menos com os conhecimentos atuais) ser descritas, facilitaria muito a vida dos esoteristas, talvez diminuindo em muito o caráter esotéricos de certos textos.
Todas estas considerações me vem a mente durante a leitura dos textos da Doutrina Secreta, o primeiro volume. Às vêzes é nítido que Blavatsky se perde em solilóquios, deixa que seu pensamento vague, citando referências da época, nadando em uma erudição que, ao contrário do que ela provavelmente supunha não ajudava na compreensão da idéia, pelo contrário.
Seu texto tem poucos esquemas. Suas explicações não são lineares e ao leitor desavisado só causam agonia. Há quem goste deste tipo de texto, considerando a erudição e a riqueza bizantina de referências prova de alto conhecimento. Não é o meu caso.
E já que ela faz constantes referencias aos textos sagrados indianos, numa época pré - Von Daniken, vê-se o esforço que ela faz para ser o que, ao que parece, jamais conseguiu ser: didática.
Vejamos uma de muitas passagens contraditórias. Após defender, por várias linhas[4] a existência de seres divinos, "Os quatro Maharajas", regentes dos quatro pontos cardeais, e de lhes atribuir um papel de administradores do Carma dos homens,("Tais Seres estão ainda relacionados com o Carma, que requer agentes físicos e materiais para executarem os seus decretos — como sejam, por exemplo, as quatro classes de ventos, aos quais a própria ciência reconhece exercerem influências nocivas e benéficas sobre a saúde dos homens e dos seres vivos em geral. Encerra uma filosofia oculta a doutrina católica romana que atribui as diversas calamidades públicas — epidemias, guerras, etc. — aos invisíveis "Mensageiros" do Norte e do Oeste") (pág.171) pouco mais a frente, pra ser mais preciso na página seguinte, 172, ela escreve: "Não é o Reitor ou Mahârâja quem castiga ou recompensa, com ou sem a permissão ou ordem de Deus, senão o próprio homem, com suas ações ou o Carma, atraindo individual ou coletivamente (como por vezes acontece no caso de nações inteiras) toda sorte de males e calamidades. Nós produzimos Causas, e estas despertam os poderes correspondentes do Mundo Sideral, os quais são magnética e irresistivelmente atraídos para os que deram lugar a essas causas, e então sobre eles reagem, quer se trate de pessoas que praticaram o mal ou de simples "pensadores" que alimentaram subjetivamente ações más."

Em um trecho, existem entidades que zelam pelo Carma, administram este Carma dos homens, cuidando para que seja justo e perfeito; no trecho seguinte, o mecanismo Cármico é automático e garantido apenas pelo funcionamento da lei universal, sem necessidade de outras intervenções.
Obscuro, contraditório e confuso.
Existem, portanto, várias maneiras de sermos obscuros em um texto, principalmente se redigimos um texto esotérico. Uma é se não conseguimos descrever o que está a nossa frente porque nos faltam palavras; outra é quando nosso raciocínio lógico é abandonado e se vê substituído por divagações contraditórias entre si. E considerando a importância do trabalho de transmitir conhecimentos sagrados, é nossa obrigação sermos claros, não obscuros, e de permitirmos que o leitor crie imagens conceituais referentes as idéias que estamos descrevendo.
Eu e Flávio, meu companheiro de leitura nesta empreitada, achamos que esta confusão inegável, as alterações de ritmo do texto, os desvios de linha de pensamento que às vêzes nos deparamos no texto, têm mais a ver a própria natureza da construção deste imenso texto. Blavatsky diz no prefácio da primeira edição da Cosmogênese: " A Autora - ou mais propriamente a escritora - ...." numa admissão de que a autoria deste texto pertenceria a mente de três mestres diferentes, Ku-Thu-Mi, Morya e Saint Germain, sendo ela apenas aquela que, como uma secretária, redigiu aquilo que eles ditaram, telepaticamente. Três mentes dentro de uma mente, três mestres dentro da mente de uma única mulher, podem causar esta balburdia de imagens pouco claras, este volume de informações , demonstrando erudição sim, mas passando ao largo da clareza e da síntese.
Em uma palavra, a Doutrina Secreta, sem que aqui a desmereçamos pelo seu valor histórico no Esoterismo Ocidental, é um texto prolixo, repetitivo e confuso. E algumas vezes, como vimos acima, contraditório.
Já tarda que se realize uma revisão, como Lewis fez para a AMORC americana dos manuscritos rosacruzes europeus, dos textos teosóficos , para lhes dar uma roupagem mais palatável, até para que preservemos esta imensa e importantíssima obra e o esforço de sua auto denominada escritora.
Blavatsky sempre esteve, do ponto de vista social e místico, extremamente só, não fosse pela amizade de Olcott, e pela presença destes mestres supra citados.
Os muitos volumes de informação característicos da Doutrina Secreta precisam urgentemente de um polimento e de uma reorganização conceitual, evitando a reverência excessiva que congela a forma e mata o conteúdo, o que aconteceu com tantas importantes tradições.
Cabe aos próprios teósofos realizarem este trabalho, saindo da zona de conforto em que estão, elogiando década após década a profundidade do mergulho de HPB sem se esforçarem para atrair novas mentes ao trabalho teosófico com uma linguagem mais clara, mais sintética e mais contemporânea.



[1] E sucedeu que, indo eles andando e falando, eis que um carro de fogo, com cavalos de fogo, os separou um do outro; e Elias subiu ao céu num redemoinho.
[2]Uma vimāna é um veículo voador mitológico, descrito na literatura antiga da Índia. Referências a veículos voadores são comuns nos textos antigos indianos, que, inclusive, descrevem seus usos na arte da guerra. Independentemente de serem capazes de voar na atmosfera terrestre, consta que as vimānas também viajam pelo espaço e sob a água. Descrições contidas nos Vedas e na literatura indiana recente falam de vimānas de várias formas e tamanhos: Nos Vedas: o sol e várias outras divindades são levadas em suas peregrinações por carruagens voadoras, com rodas, puxadas por animais, geralmente cavalos (já a carruagem do deus védico Puchan é puxada por bodes)
O "agnihotra-vimāna", com dois motores (?). (Agni significa fogo em sânscrito).
O "gaja-vimāna", com mais motores (?) (Gaja significa elefante em sânscrito).
Outros tipos, com denominações baseadas em animais, como o martim-pescador, o Íbis, e outros animais.
Alguns ufólogos modernos atribuem às vimāna evidências de civilizações tecnologicamente avançadas do passado, e da Teoria dos astronautas antigos. Outros estabeleceram ligações das máquinas voadoras com a lenda dos Nove Homens Desconhecidos. David Hatcher Childress fala sobre elas em seu livro "Vimana Aircraft of Ancient India & Atlantis"(Vimana - Aeronáutica da Índia Antiga e da Atlântida),citando também alguns de seus livros anteriores, como "Lost Cities of China, Central Asia & India"(Cidades Perdidas da China, Índia e Ásia Central) ((http://pt.wikipedia.org/wiki/Vimana)
[3] O Ramáiana, também conhecido como Ramayana ou Ramaiana (devanágari: रामायण, transl. Rāmāyaṇa) é um épico sânscrito atribuído ao poeta Valmiki, parte importante do cânon hindu (smṛti). O nome Rāmāyaṇa é um composto tatpurusa de Rāma e ayana "indo, avançando", cuja tradução é "a viagem de Rama". ORāmāyaṇa consiste de 24.000 versos em sete cantos (kāṇḍas) e conta a história de um príncipe, Rama de Ayodhya, cuja esposa Sita é abduzida pelo demônio (Rākshasa) rei de Lanka, Rāvana. Seus versos são escritos numa métrica de trinta e duas sílabas chamada de Anustubh. Na sua forma atual, o Ramáiana de Valmiki data variadamente de 500 a.C. a 100 a.C., ou quase contemporâneo às versões mais antigas do Mahābhārata. Como os épicos mais tradicionais, como passou por um longo processo de interpolações e redações, é impossível datá-lo com precisão. O Ramáiana teve uma importante influência na poesia sânscrita posterior, principalmente devido ao uso da métrica Sloka. Mas, como o seu primo épico Maabárata, o Ramáiana não é só uma história ordinária. Contém os ensinamentos dos antigos sábios hindus e os apresenta através de alegorias na narrativa e a intercalação do filosófico e o devocional. Os personagens de Rama, Sita, Lakshmana, Bharata, Hanumān e Rāvana (o vilão da peça) são todos fundamentais à consciência cultural da Índia
[4] A Doutrina Secreta, vol. 1, Cosmogênese, ed. Pensamento, 1973, 1a edição, página 171

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