Por Mario Sales, FRC,SI
Cena de “Sonhos”
de Akira Kurosawa
Há vários assuntos e conceitos a discutir, alguns nascidos
de reflexões durante o último encontro da Confraria In Vino Veritas, onde lá
pelas tantas, o tema passou a ser as distintas compreensões da morte por
espiritualistas e materialistas.
Outro tema significativo vem de uma conversa agorinha a
pouco com Flavio e Wilson sobre a natureza do conhecimento comparado das várias
linhas de tradição místico esotérica, seja Zen Budista, Sufi, da Escola do
Quarto Caminho de Gurdieff, ou do Cabala Judaico, Cristão ou Esotérico, na qual
eu expunha minha posição que as correntes com certeza tem uma origem comum dado
o ditado árabe que lembra que “enquanto só vires as diferenças teu conhecimento
não valerá uma rúpia; a verdadeira sabedoria só vem quando começamos a ver as
semelhanças”.
A pergunta é se ver essas semelhanças traz alguma vantagem
esotérica prática, além desta percepção de uma unidade subjacente a todos estes
caminhos. A meu ver, não traz, e pode se tornar uma espécie de vórtice que
engole pessoas sinceras em sua busca, mas desviadas de seus objetivos mais
profundos pela falsa luz do intelecto. Erudição e Sabedoria são condições
absolutamente distintas e, em certos contextos, antagônicas. Eliphas Levi, com
sua indiscutível erudição, criou uma legião de seguidores fascinados pelo
volume de informações que seus livros traziam, principalmente Dogma e Ritual da
Alta Magia de 1854 e O Grande Arcano, de 1868. Era talvez este o papel mais
importante dos esoteristas do século XIX: preservar e consolidar as informações
de séculos anteriores.
Eliphas Levi
E esse papel, Levi desempenhou com competência. Blavatsky
continuaria esse esforço em 1888 com a publicação da Doutrina Secreta. “Ísis
sem Véu” de 1877 tinha sido um primeiro ensaio, mas pela densidade de
informações, a Doutrina Secreta tem um peso maior.
Mas estes trabalhos são,
como disse, monumentos de erudição, não portas de Sabedoria.
Aliás, a erudição pela erudição impede a verdadeira
sabedoria. O erudito, antes de erudito, deve ser alguém encharcado de humildade
e prudência, de forma a não cair na armadilha de achar que ler e publicar muito
o torna um mestre espiritual.
Mestria, por sinal, é algo secreto, silencioso. Um processo
oculto em nosso coração, que testemunha nossa evolução e que, junto com a
Consciência Guardiã, nos autoriza ou não a trocar de patamar e de nível
espiritual.
A verdadeira escola é invisível, interior e individual, como
Saint Martin com sagacidade percebeu.
Todos que encontramos em uma ou em muitas encarnações são
nossos mestres, ou discípulos. Os papéis são e devem ser trocados, em um balé dinâmico,
que comprova a lição e que todos somos parte de um só espírito, de uma só
mente.
Mesmo irmãos mais avançados devem retornar e retornam a
níveis já ultrapassados para resgatar outros espíritos e demonstrar certos
conceitos e valores que vão auxiliar no desenvolvimento de todos e no deles
mesmo.
Cada Mestre que demonstra misericórdia doando-se, ao
mostrar-se em locais e regiões do espaço tempo menos evoluídos, aumenta sua luz
pessoal e melhora seu próprio desenvolvimento.
Um mestre que não ensinasse o que sabe seria inútil. Todo
seu esforço se perderia ao não ser compartilhado. E compartilhando-o, ele
aumenta as chances de toda a humanidade e sua luz se expande junto com a luz de
todos que beneficiou.
Fazer o bem não é virtude, mas uma necessidade evolucional.
E quando falo bem não me restrinjo a noção de Bem em oposição a um determinado
conceito de Mal, algo definido por compreensões culturais regionais ou por
valores de uma época.
Falo do Bem transcendente, transvalorado como diria
Nietzsche, já que todos, absolutamente todos os acontecimentos não são mais do
que estratégias de mobilização dessas energias em evolução chamadas pelos
rosacruzes personalidades alma, como o vento mobiliza o barco em meio ao
oceano.
Nós não chamamos de Bem aos dissabores e vicissitudes da existência,
e isto porque temos uma visão limitada do contexto no qual está inserida aquela
ocorrência.
Muitas vezes anos depois do ocorrido compreenderemos o papel
mobilizador que aquele evento teve em nossa vida e o quanto nos estimulou na
jornada em direção a posições mais elaboradas de compreensão e percepção da
realidade.
O Objetivo sempre será levar-nos a entender a experiência
vital como uma experiência estética e não só moral ou psicológica apenas. E
estética nos dois sentidos, tanto no sentido de receber estímulos, imagens
cores, sons, sabores e as emoções decorrentes, como também um exercício de
materialização da beleza, de conscientização da beleza da vida, como quando
contemplamos um quadro que nos fascina, ou para ser fiel ao dinamismo da
existência, um filme belo e profundo, como os que foram produzidos por Akira
Kurosawa. Tanto para Yogues Indianos, como para Cabalistas Judeus, o que
importa é entender que o que vemos do mundo é aquilo que podemos compreender do
mundo e vivenciar em nós o maior de todos os mistérios: o que vemos com nossos
olhos é o que nossos olhos criam a nossa volta.
Akira Kurosawa
Spencer Lewis tocou neste profundíssimo assunto em uma de
suas monografias. O Olhar não é apenas um passivo recebedor de imagens, mas
também um ativo projetador de compreensões. E, portanto, vemos e criamos ao
mesmo tempo, ao interagir imageticamente com o que contemplamos.
Como em um filme qualquer de cinema.
A erudição, de que eu falava acima, é como saber de cor o
nome de todas as locações do filme, os membros da equipe técnica, o nome do
elenco, conhecer os problemas relacionados a sua execução, as questões
financeiras da produção, o nome dos produtores e do diretor.
Nada disso é o filme, no entanto.
O filme é o produto final, a experiência estética, a obra em
movimento.
O filme é movimento, ou melhor, é o que resulta da ilusão de
movimento provocada pela aceleração de milhares de imagens imóveis, tornadas “vivas”
pela aceleração de seu deslocamento, pelo movimento que lhes é acrescentado.
Vida, da mesma maneira, não é nada sem o movimento, que em
nosso caso se chama Tempo, o Devir, a sequência dos instantes como descrita por
Henry Bergson.
Sem o Tempo não há existência, apenas formas sem vida.
Sem a ilusão provocada pelo Tempo, ou seja, sem a Ilusão
produzida por outra Ilusão, a existência como a concebemos seria impossível.
Para compreender isso, a natureza mais profunda da
existência, não basta ir a cabine de projeção e segurar nas mãos o acetato em
fita dentro daqueles enormes projetores, como se fazia antes das cópias
digitais.
É preciso sentar na cadeira em frente a tela perceber que a
realidade que sentimos na experiência que o filme nos traz, não importa sua
natureza, terror, ficção, ação, violência, só existe por autorização e
concordância de nossa parte, por cumplicidade nossa nessa magnífica e emocional
experiência cinematográfica. Mestre é aquele que sabe que, antes de qualquer coisa,
um filme é diversão e aprendizado como lembra Richard Bach em “Ilusões”, sua
obra prima.
A Vida, da mesma maneira, ou é diversão ou aprendizado, e
sempre é, ou deveria ser, lazer.
Só se assusta com o filme quem acredita na ilusão e nos
truques cinematográficos. Outros apenas se divertirão; esses são os mestres. O
próximo passo da evolução é fazer seus próprios filmes, materializar suas
próprias histórias, construindo-as com a elegância e a habilidade de um
artista, de um artesão.
Esta é a consequência da Sabedoria, a visão de conjunto: tornar-se
um criador de Universos e de Mundos.
Bonito.
Quanto à morte e seus diferentes conceitos para
espiritualistas e materialistas, isso aí já é assunto para outro ensaio.