Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

O ENCANTO

Por Mario Sales



Eu não havia ainda percebido.
Para a minha surpresa, e como disse Mestre Paulo do Recife, como um sinal auspicioso, nosso grupo de estudos de Cabala faz seus estudos como recomendado pela mais ortodoxa tradição judaica.
Primeiro, fazemos nossos estudos na sexta a noite, que é o início do Shabat; segundo, estudamos em um grupo de três a quatro pessoas, o que preenche outra condição recomendada pelo Rabino Arieh Kaplan, na época referindo-se ao Sepher Yetzirah: nunca estudar sozinho estes textos de forma que, caso ocorram fenômenos exóticos e inesperados tanto quanto incomuns, um possa dar retaguarda ao outro sobre sua própria sanidade, evitando a impressão falsa ou a suposição de tratar-se de mera alucinação visual ou auditiva.
Percebi que estas condições estavam sendo contempladas apenas hoje. Exatamente no dia em que chegamos no fundo das leituras do Sepher Bahir, o mais desprezado e subestimado texto do Cabala.
E isto é uma falha grave. Desprezar o Bahir é renunciar a um trecho do caminho desta estrada e uma estrada verdadeira é feita de todos os seus trechos sem exceção, aqueles com belas paisagens e os desérticos, aqueles tranquilos e os que nos causam apreensão.
Como recusar uma experiência sem prejudicar a avaliação da seguinte, se só conseguimos enxergar com nossos olhos, tanto os da carne quanto os do espírito, pelo recurso ao contraste? Sem opostos, não há nitidez nas percepções visuais ou nas iluminações espirituais.
No Fédon, o diálogo de Platão que retrata o último de vida de Sócrates, ele nos lembra disso, cercado de seus discípulos, horas antes de ingerir a Cicuta que o mataria. O diálogo começa com a retirada das correntes que o aprisionavam.
Ao retirá-las, Sócrates passa a mão em seu tornozelo e especula sobre os contrários. Eis a cena:
“Sócrates, de seu lado, sentado no catre, dobrou a perna sobre a coxa e começou a friccioná-la duro com a mão, ao mesmo tempo que dizia: Como é extraordinário, senhores, o que os homens denominam prazer, e como se associa admiravelmente com o sofrimento, que passa, aliás, por ser o seu contrário. Não gostam de ficar juntos no homem; mal alguém persegue e alcança um deles, de regra é obrigado a apanhar o outro, como se ambos, com serem dois, estivessem ligados pela cabeça.”[1]
Quem não lê o Bahir, como já comentei neste espaço, está condenado a supor que um dos mais importantes conceitos da Cabala, o do Tzimtzum, é criação de Isac Luria, embora Luria tenha apenas esclarecido a imagem.
No Bahir já encontramos a referencia a esta coluna do conhecimento cabalístico, como descrito no versículo 25.
Da mesma maneira, se o incauto não contemplar as explicações e orientações do Rabino Kaplan a cada um dos versículos, não terá acesso à uma das mais interessantes imagens que fui capaz de estudar até agora.
Está lá na página 220, no comentário ao versículo 179: 
“Ao descrever o tzimtizum, o Ari declara que Deus retirou Sua luz de uma esfera, criando o espaço vazio, e foi nesse espaço que aconteceu toda a criação.”
E continua:
“Todavia, a Criação não poderia se realizar sem o poder de Deus. Assim sendo, Deus emitiu uma linha de luz nesse Espaço (Kav).” E conclui, lindamente: “Dessa linha de luz foram formadas dez esferas concêntricas, que envolvem toda a criação. As dez esferas concêntricas são as Dez Sephirot [2]com as quais Deus envolve todos os mundos.”
Vejam, sempre tive grande dificuldade de visualizar a árvore da vida dentro do espaço da criação. Os textos cabalísticos quase sempre desprezam a geometria dos simples mortais, submetendo à nossa imaginação conceitos praticamente impossíveis de conceber imageticamente e isto dificulta muito sua compreensão já que um conceito que não se pode visualizar é um conceito que não se entendeu.

Essas simples palavras (As dez esferas concêntricas são as Dez Sephirot) me encheram de êxtase. Eu finalmente via a situação espacial de cada sephirot no contexto do vazio da esfera da criação, agora como dimensões, uma após a outra, através das quais a Luz de Deus, o Kav, desce e estabelece a existência. 



A representação ortodoxa deste conceito é o desenho acima. 
Na minha percepção de hoje, entretanto, ele não corresponde aos fatos. As dez sephiroth são círculos concêntricos, mas que ficam às margens do vazio criado pela retração.
Muitos dirão: “Porque esse espanto diante de uma constatação tão conhecida?”. Sim, é fato. Tal conceito é notório, intelectualmente. Só que esta epifania vem da interiorização deste conceito, de sua absoluta e indelével compreensão. Nestes instantes maravilhosos, não somos nós que alcançamos o significado do conceito, mas sim o conceito que entra em nós, e nos preenche.
Essa experiência é única.
Só os estudantes podem tê-la e amá-la, como se deve amar cada passo da estrada, mantendo-se a consciência todo o tempo do jeito como se pisa e da pressão que nossos pés imprimem ao chão, a cada trecho pelo qual nos deslocamos.
Todos caminham. Poucos o fazem com atenção.
E quando estamos atentos, até uma simples rocha nos enche de espanto e beleza.
Sim, a vida está cheia de magia todo o tempo e no mundo dos homens Deus está mais presente do que parece, observando-nos de uma folha que cai lentamente, ou de uma nuvem que passa sobre nós.
O Encantador é perceber-se o encanto.
O resto é o resto.