Por Mario Sales
Eu não havia ainda percebido.
Para a minha surpresa, e como disse Mestre Paulo do Recife,
como um sinal auspicioso, nosso grupo de estudos de Cabala faz seus estudos
como recomendado pela mais ortodoxa tradição judaica.
Primeiro, fazemos nossos estudos na sexta a noite, que é o início
do Shabat; segundo, estudamos em um grupo de três a quatro pessoas, o que
preenche outra condição recomendada pelo Rabino Arieh Kaplan, na época referindo-se
ao Sepher Yetzirah: nunca estudar sozinho estes textos de forma que, caso
ocorram fenômenos exóticos e inesperados tanto quanto incomuns, um possa dar
retaguarda ao outro sobre sua própria sanidade, evitando a impressão falsa ou a
suposição de tratar-se de mera alucinação visual ou auditiva.
Percebi que estas condições estavam sendo contempladas
apenas hoje. Exatamente no dia em que chegamos no fundo das leituras do Sepher
Bahir, o mais desprezado e subestimado texto do Cabala.
E isto é uma falha grave. Desprezar o Bahir é renunciar a um
trecho do caminho desta estrada e uma estrada verdadeira é feita de todos os
seus trechos sem exceção, aqueles com belas paisagens e os desérticos, aqueles
tranquilos e os que nos causam apreensão.
Como recusar uma experiência sem prejudicar a avaliação da
seguinte, se só conseguimos enxergar com nossos olhos, tanto os da carne quanto
os do espírito, pelo recurso ao contraste? Sem opostos, não há nitidez nas
percepções visuais ou nas iluminações espirituais.
No Fédon, o diálogo de
Platão que retrata o último de vida de Sócrates, ele nos lembra disso, cercado de seus discípulos, horas
antes de ingerir a Cicuta que o mataria. O diálogo começa com a retirada das
correntes que o aprisionavam.
Ao retirá-las, Sócrates passa a mão em seu tornozelo e
especula sobre os contrários. Eis a cena:
“Sócrates, de seu lado, sentado no catre, dobrou a perna
sobre a coxa e começou a friccioná-la duro com a mão, ao mesmo tempo que dizia:
Como é extraordinário, senhores, o que os homens denominam prazer, e como se
associa admiravelmente com o sofrimento, que passa, aliás, por ser o seu
contrário. Não gostam de ficar juntos no homem; mal alguém persegue e alcança
um deles, de regra é obrigado a apanhar o outro, como se ambos, com serem dois,
estivessem ligados pela cabeça.”[1]
Quem não lê o Bahir, como já comentei neste espaço, está
condenado a supor que um dos mais importantes conceitos da Cabala, o do
Tzimtzum, é criação de Isac Luria, embora Luria tenha apenas esclarecido a
imagem.
No Bahir já encontramos a referencia a esta coluna do
conhecimento cabalístico, como descrito no versículo 25.
Da mesma maneira, se o incauto não contemplar as explicações e
orientações do Rabino Kaplan a cada um dos versículos, não terá acesso à uma das mais interessantes imagens que fui capaz de estudar até agora.
Está lá na página 220, no comentário ao versículo 179:
“Ao descrever o tzimtizum, o Ari declara que Deus retirou Sua luz de uma esfera, criando o espaço vazio, e foi nesse espaço que aconteceu toda a criação.”
“Ao descrever o tzimtizum, o Ari declara que Deus retirou Sua luz de uma esfera, criando o espaço vazio, e foi nesse espaço que aconteceu toda a criação.”
E continua:
“Todavia, a Criação não poderia se realizar sem o poder de
Deus. Assim sendo, Deus emitiu uma linha de luz nesse Espaço (Kav).” E conclui,
lindamente: “Dessa linha de luz foram formadas dez esferas concêntricas, que
envolvem toda a criação. As dez esferas concêntricas são as Dez
Sephirot [2]com as
quais Deus envolve todos os mundos.”
Vejam, sempre tive grande dificuldade de visualizar a árvore
da vida dentro do espaço da criação. Os textos cabalísticos quase sempre
desprezam a geometria dos simples mortais, submetendo à nossa imaginação
conceitos praticamente impossíveis de conceber imageticamente e isto dificulta
muito sua compreensão já que um conceito que não se pode visualizar é um
conceito que não se entendeu.
Essas simples palavras (As dez esferas concêntricas são as Dez Sephirot) me encheram de êxtase. Eu finalmente via a situação espacial de cada sephirot no contexto do vazio da esfera da criação, agora como dimensões, uma após a outra, através das quais a Luz de Deus, o Kav, desce e estabelece a existência.
A representação ortodoxa deste conceito é o desenho acima.
Na minha percepção de hoje, entretanto, ele não corresponde aos fatos. As dez sephiroth são círculos concêntricos, mas que ficam às margens do vazio criado pela retração.
Muitos dirão: “Porque esse espanto diante de uma constatação tão conhecida?”. Sim, é fato. Tal conceito é notório, intelectualmente. Só que esta epifania vem da interiorização deste conceito, de sua absoluta e indelével compreensão. Nestes instantes maravilhosos, não somos nós que alcançamos o significado do conceito, mas sim o conceito que entra em nós, e nos preenche.
Essa experiência é única.
Só os estudantes podem tê-la e amá-la, como se deve amar
cada passo da estrada, mantendo-se a consciência todo o tempo do jeito como se
pisa e da pressão que nossos pés imprimem ao chão, a cada trecho pelo qual nos
deslocamos.
Todos caminham. Poucos o fazem com atenção.
E quando estamos atentos, até uma simples rocha nos enche de
espanto e beleza.
Sim, a vida está cheia de magia todo o tempo e no mundo dos
homens Deus está mais presente do que parece, observando-nos de uma folha que
cai lentamente, ou de uma nuvem que passa sobre nós.
O Encantador é perceber-se o encanto.
O resto é o resto.