Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

domingo, 10 de outubro de 2021

PECULIARIDADES

 Por Mario Sales FRC

 

Não confunda compreensão com um vocabulário mais amplo. Os escritos sagrados são benéficos para estimular o desejo de realização interior, se uma estrofe de cada vez for assimilada lentamente. Caso contrário, o estudo intelectual contínuo pode resultar em vaidade, falsa satisfação e conhecimento não digerido.

Sri Swami Yukteswar Giri,

"Autobiografia de um Iogue Contemporâneo" de Paramahansa Yogaananda

Sociedade Histórica da Pensilvânia, Filadelfia

Na Sociedade Histórica Da Pensilvânia existe uma carta, entre outras, de Sir Isaac Newton (25 de dezembro de 1642 [calendário juliano] ou 4 de janeiro de 1643 no [calendário gregoriano] — Kensington, 20 de março de 1727  [calendário juliano] ou 31 de março de 1727 [calendário gregoriano]) para Robert Hooke, (18 de julho de 1635 — 3 de março de 1703) cientista experimental inglês do século XVII, seu adversário científico.

Nela, Newton cita uma frase de Bernardo de Chartres, filosofo platônico do século XII. A frase em questão é “se vi mais longe é porque estava nos ombros de gigantes”, (nanos gigantum humeris insidentes) numa alusão ao conceito de “descobrir a verdade a partir de descobertas anteriores. Não se trata de modo algum de uma citação vulgar. É talvez o mais importante conceito do trabalho científico.

Isaac Newton, físico e rosacruz

A ciência, como todos sabem, é a busca pelo esclarecimento das causas dos fenômenos naturais, perceptíveis ou não, muitas vezes, causas estas contrárias às percepções do senso comum.

De qualquer forma a ciência ortodoxa trabalha com o mundo manifesto. A ciência não lida com conceitos inefáveis ou espirituais. Não é sua função.

Tais investigações de natureza mais íntima são do campo do misticismo.

E por que faço esta distinção?

Já chego lá.

Vamos, didaticamente, acompanhar uma metáfora.

Robert Hooke


Imaginem um praticante de esportes de competição. Um atleta de corridas com obstáculos.

Com certeza será treinado desde muito jovem, logo se perceba nele tendencia e talento para esse tipo de disputa. Terá um técnico, alguém que lhe ensinará as técnicas e métodos necessários ao aprimoramento de seu desempenho; entretanto, o papel do técnico terminará aí.

No dia da competição, e mesmo durante os treinamentos, a solidão do atleta, onde ele tem apenas a companhia de seu próprio corpo, será total.

 


Bernardo de Chartres

 

Seu sucesso vai depender do seu esforço e disciplina pessoais e das condições em que estiver no dia da disputa.

Tudo que seu técnico poderá fazer na hora da competição será sentar-se, observar e torcer para que nada dê errado durante o evento. Não terá, no entanto, maneira nenhuma de interferir durante o desafio de seu pupilo pois neste momento, como foi dito, a solidão do competidor é absoluta e indiscutível.

Ao contrário do atleta solitário, em ciência e na cultura em geral, nós somos muitos, ao mesmo tempo. Precisamos uns dos outros todo o tempo, como fontes de informação ou de inspiração para o nosso próprio trabalho. Não existe solidão intelectual, solidão teórica.


Microscópio de Hooke


Somos, enquanto pesquisadores, como disse o filosofo Bernardo de Chartres, “anões nos ombros de gigantes”. Se isso vale para a literatura, para a ciência vale mais ainda, pois fazer ciência é acumular dados e evidencias empíricas e matemáticas que fortaleçam convicções antes baseadas apenas em especulação. A ciência não é uma experiencia solitária. Precisamos dos relatos dos acertos e dos erros daqueles que nos precederam e por isso os pesquisadores não são insubstituíveis, mas as suas anotações estas sim, são fundamentais. Até onde um for, antes de passar pela transição, se anotou seus passos e experimentos, poderá ser o ponto de partida daquele que vier depois.



 E é exatamente assim que a ciência, historicamente, tem avançado, num esforço coletivo, constante, de expansão do conhecimento a partir do trabalho, e do registro em anotações ou vídeo deste trabalho daqueles que nos precederam.

O cientista, assim como o intelectual, não conhece nem pode conhecer a solidão do atleta. Ao contrário do atleta que vive do aqui e do agora, do momento da glória ou do fracasso conseguido a duras penas e em função tanto de seu talento e esforço como de circunstâncias às vezes imprevisíveis, cientista e intelectual conversam com vivos e mortos, através dos textos, a herança de nossa cultura.

Esta metáfora visa estabelecer um paralelo entre a prática esotérica e a prática mística.

Quem me acompanha aqui no blog sabe que faço distinção entre estas duas coisas, dando ao termo esoterismo o significado de prática intelectual de consulta e leitura de textos antigos da tradição, e para misticismo reservo o significado de busca solitária do Deus interior.

Se muitas vezes o misticismo bebe do esoterismo, em nenhum momento se confundem.

Posso agora dizer que o esoterista é como o cientista, pois precisa dos textos anteriores para compreender outros textos, mas o místico é como o atleta, que está completamente só em seu esforço pessoal de busca íntima.

Ao contrário do esoterista que pode discutir com outros esoteristas o significado deste ou daquele trecho do livro que estuda, a busca mística é pessoal e intransferível e mesmo aqueles entre nós, místicos, que já receberam a bênção de ter um mestre pessoal, um Adepto, que o tenha aceitado como discípulo, sabem que o esforço pessoal é única e exclusivamente responsabilidade do discípulo e o Mestre só pode torcer para que ele, seu discípulo, seja bem-sucedido em seus desafios.

 



A nenhum Mestre verdadeiro é permitido interferir no desempenho de seus chelas, sob pena de enfraquecê-lo e impedir que este desenvolva as habilidades que aquele desafio lhe proporcionará.

Se alguém, generosamente, quiser descrever suas sensações e impressões acerca de sua busca pessoal e solitária pela iluminação, o fará no intuito de dar um depoimento sobre aspectos absolutamente particulares que serão específicos de sua própria existência.

A cada místico, em cada encarnação, caberá uma história de vida peculiar. Místicos não são produzidos em série. São absolutamente diferentes uns dos outros, seguem diferentes tradições, tem diferentes cor de pele, hábitos, idiomas e forma física. Alguns usam ternos, outros andam seminus. Uns são magros, outros obesos.

A única coisa que os une é a sede de Deus, a fome pela iluminação, e a solidão em que realizam essa busca ininterrupta, vida após vida.

Como eu disse acima, o sucesso ou o fracasso do místico, como o do atleta, dependem de treino, talento, mas também de circunstâncias nem sempre previsíveis, que ao fim e ao cabo representarão também testes de aperfeiçoamento e fortalecimento do buscador.

Dito isso, podemos entender que existem textos esotéricos e textos místicos.

Textos esotéricos são, sim, baseados em outros textos. São interpretações ou variações de documentos mais antigos sobre os quais o esoterista meditou.

Já textos místicos são depoimentos, narrativas de caráter pessoal, mas que serão compreendidas por aqueles que também estão na mesma senda e que buscam o Cálice Sagrado pelas mesmas veredas, solitária e diligentemente.

Textos místicos, ao contrário dos esotéricos, são, sempre, totalmente originais, como a vida daqueles que os inspiram, pois relatam experiencias de vidas que jamais se repetirão, que não poderiam se repetir já que dizem respeito apenas e tão somente aquele que faz o relato.

Nesse viés, Cristo não era cristão, Buda não era budista, e nem Maomé era Maometano.

Esses homens eram místicos que compartilharam experiencias pessoais. É apenas depois deles que surgem os esoteristas, comentando, por páginas e páginas, o provável significado dos atos e palavras daqueles iluminados.

Portanto, Místicos não podem ser compreendidos a partir dos livros que leram, nem da bibliografia que consultaram porque eles trazem um olhar original sobre tudo que foi escrito antes. No caso do Cristo, falamos do messias profetizado no Velho Testamento e, depois dele, na Última Ceia, criou-se uma “nova e eterna aliança”, que atualizou a anterior e modificou, de tal modo, a perspectiva do Divino, que foi criado um Novo Testamento.

O Cristianismo, o Budismo, o Islamismo e mesmo o Judaísmo, não estão nos seus livros, mas na sua vivência. Viver uma experiencia mística é algo peculiar e solitário como a competição de um atleta em uma corrida de obstáculos.

Se alguém quiser entender um texto místico, leia-o e medite em silencio sobre ele. Não tente dissecá-lo pois dissecar um ser vivo pressupõe matá-lo, antes de qualquer coisa.

Absorva-o em seu espírito e deixe que decante em sua alma. Não o digira, como faríamos com um alimento solido. Respire-o, inale-o, como fazemos com a fonte de toda a vida, o NOUS.

E não se preocupe em compreendê-lo com sua cabeça, mas com seu coração; nem tente dirigir a energia para aqui ou para lá, pois a energia vai para onde precisa ir.

Tudo isso faremos de modo solitário e pessoal.

Cada um respira do seu jeito.

Esta é a essência da vida: sempre igual, mas sempre diferente e peculiar.

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