por Mario Sales
"A história prefere lendas à homens, nobreza à brutalidade, discursos inflamados às ações discretas. A História lembra das batalhas , mas esquece o sangue."
Do início do filme "Lincoln, caçador de vampiros"
Como houve uma intensa repercussão sobre a análise histórico
crítica dos Templários, acho pertinente aprofundar o tema. Algumas reações
foram mesmo de desconforto e este é o papel da reflexão verdadeiramente
desassombrada, descompromissada com qualquer preconceito, em busca apenas da
contemplação da realidade possível de ser contemplada.
Possível, porque como alguém comentou, tudo tem dois lados,
e obviamente análises, sejam favoráveis ou desfavoráveis ao analisado, são
sempre parciais.
Então, sinto-me bem por ter exposto "o outro lado da
lua", para muitos que a admiram apenas como o "astro dos
enamorados". A Lua, vista de perto, é cheia de crateras e rochas mortas. A
sua indiscutível beleza em nosso céu, à noite, tem a ver com uma luz que não é
propriamente sua, mas foi roubada do Sol, e nos é refletida de forma que seu
verdadeiro dono não recebe o crédito.
As Ordens de Cavalaria também são assim. Recebem uma
importância ao longo de séculos que tem mais a ver com nossos próprios ideais
de perfeição romântica, e como com a Lua, esquecemos que estas Ordens tem um lado escuro, por serem
parte de um exército, existiam para combater; e para vencer, era preciso que
destruíssem seus inimigos, tirando-lhes a vida.
Mesmo aqueles que saíram de sua zona de conforto ao lerem
aquelas linhas, por serem pessoas diferenciadas intelectualmente, como sei que
são, concordarão que, como naquela época, na nossa é moda corrente tratar os árabes
como bárbaros sem alma, seres no mínimo não civilizados. Esta é a história
contada pelo Ocidente, sobre um tipo de povo ao qual o Ocidente deve
praticamente toda a sua ciência e conhecimento.
Devemos aos árabes nossa matemática e astronomia (Al
Biruni), nossa medicina e filosofia (Averróis e Avicena).
Os números que usamos em nossos cálculos são conhecidos como
algarismos arábicos.
A Tábua de Esmeralda (ou Tábua Esmeraldina) ,
"o texto que deu origem à Alquimia islâmica e ocidental", foi
primeiramente publicado em árabe , para ser traduzido apenas no século XII para o Latim e aí sim
começar a influenciar a Europa. Surgiu primeiramente nos textos seguintes: Kitab
Sirr al-Khaliqa wa Sanat al-Tabia (c.650 d.C.), Kitab Sirr al-Asar (c.800
d.C.), Kitab Ustuqus al-Uss al-Thani (século XII), e finalmente,
no Secretum Secretorum (c. 1140). É lá, na Tábua, que encontramos a frase tão
decantada por maçons e rosacruzes: "Quod est inferius est sicut quod est
superius, et quod est superius est sicut quod est inferius, ad perpetranda
miracula rei unius", traduzida como "O que está embaixo é como o que
está em cima e o que está em cima é como o que está embaixo, para realizar os
milagres de uma única coisa.”
São estes mesmos árabes que conquistam Jerusalém e que são
combatidos por Ordens de Cavalaria ocidentais, comandadas por Roma. É desses
inimigos, chamados bárbaros, mas muito mais naquela época do que na nossa,
representantes de uma civilização altamente refinada, que estamos falando.
Por outro lado, existe o aspecto literário. Como foram uma
Ordem em princípio gerada no seio da chamada "Santa Madre Igreja",
os Templários tiveram sua história banhada por textos que a enalteciam, escritos exatamente
pelos únicos intelectuais e escritores que eram funcionários públicos com
estabilidade no emprego e direitos trabalhistas assegurados, em uma época em
que comer todos os dias não era para todos: os padres. E entre eles, São
Bernardo de Claraval, que escreve sobre eles: "Um Cavaleiro Templário é
verdadeiramente, um cavaleiro destemido e seguro de todos os lados, pois sua
alma é protegida pela armadura da fé, assim como seu corpo está protegido pela
armadura de aço. Ele é, portanto, duplamente armado e sem ter a necessidade de
medos de demônios e nem de homens."
Ora, isto tem um impacto no imaginário de qualquer nação.
Ainda mais quando descrito e repetido em meio as missas que ocorriam a todo
momento em todas as partes da Europa cristã.
Mas são os templários apenas um engodo, produto do marketing
e da propaganda de Roma, ou teriam dentro de suas fileiras algum valor espiritual
real?
É preciso, para ser sensato, lembrar que nenhuma Ordem, seja
religiosa, esotérica ou de Cavalaria é totalmente homogênea. Mesmo entre os
grupos mais cruéis encontramos lampejos de nobreza.
O que não quer dizer que não possamos falar em uma Ordem dos
Templários AJM e PJM (antes de Jacques de Molay e pós Jacques de Molay).
O martírio do Grão Mestre arquitetado por Felipe IV e pelo
Papa Clemente V teve um papel de divisor de águas na vida da Ordem.
A Ordem que reverenciamos não é aquela das batalhas na Terra
Santa, nem a que acumulava tesouros indescritíveis, nem mesmo a que se dizia
"pobre" e "casta", mas que gerava expressões como até hoje
de diz na Alemanha: "beber como um Templário". A Ordem que
reverenciamos, às vêzes de modo excessivo, era o que eu dizia no outro ensaio,
é a Ordem Templária PJM.
Perseguidos, desmoralizados, sem a proteção de outrora da
chamada "Santa Madre Igreja", eles são obrigados a fugir e mergulhar
na clandestinidade, conhecendo o que os rosacruzes chamam de "a noite
negra da alma".
Porque da mesma forma que hoje muitos se iludem julgando
nobres e probos homens que primavam pela violência e às vêzes barbárie, como parte
de seu cotidiano, também os próprios templários foram iludidos pelo mesmo discurso
que os criou e alimentou sua existencia AJM.
De cavaleiros cuja "alma,
é protegida pela armadura da fé, assim como seu corpo está protegido pela
armadura de aço" passaram a ser fugitivos perseguidos, humilhados pela
própria Igreja que antes os idolatrava.
A desilusão que se seguiu (desilusão - perda da ilusão) deve
ter tido, como teve, um forte impacto psicológico em suas vidas pessoais e este
novo período da Ordem foi, provavelmente, uma busca de novos valores, mais
perenes, menos católico-romanos e mais humanos, não mais baseados na literatura dos
padres, em seus discursos de ódio contra os árabes, que antes de serem homens
sem Cristo eram concorrentes da política expansionista das Igreja que deveriam
ser destruídos a qualquer custo.
Os Templários PJM eram agora homens mais lúcidos, menos
embalados por fantasias e mais conscientes de que o poder corrompe e o poder
absoluto corrompe absolutamente.
Não há mais a vontade de conquistar e destruir um inimigo
contra o qual foram lançados como cães adestrados por um treinador malicioso.
São agora senhores de sua vontade, sem rédeas ideológicas,
sem uma bandeira de intolerância religiosa, sem ódios pré programados em suas
mentes.
Começam um novo tipo de existência, muito semelhante a
outras Ordens que conhecemos, discretos, voltados para a sua própria evolução
como homens dignos, quase como um período de expiação de culpas pelas
barbaridades da guerra, que com certeza foram muitas, pois não existe guerra
que não seja bárbara.
É neste contexto de renascimento das cinzas, com a espada
agora sendo mais um símbolo do que um instrumento de morte, que eles atravessam
os séculos seguintes, do XIII até o XVIII, quando aparecem em meio a reorganização
da Maçonaria na França, na pessoa do Cavaleiro de Ramsay (1686-1743). O trecho
a seguir é retirado de "Maçonaria: a descoberta de um mundo
misterioso" de Angela Cerinotti, Ed. Globo: "André Michel de Ramsay,( ... )
havendo se transferido para a França e se tornando "Grande Orador da
Ordem" ( um cargo criado pela maçonaria francesa, não contemplado na
Inglaterra), preparou para o dia 12 de março de 1737, em ocasião de um encontro
entre expoentes de várias lojas, um discurso destinado a ter repercussão,
depois de sua publicação. Na verdade, Ramsay não propôs, como muitos acreditam,a
criação de graus suplementares, mas limitou-se a afirmar a superioridade da
Maçonaria Escocesa quanto à pureza da tradição.(...) Muito provavelmente Ramsay
não tinha consciência de quanto as implicações de seu discurso se revelariam
determinantes para as novas feições da Maçonaria na Europa Continental.(...)
Mas o modelo ético de que ele se serviu para traçar o retrato do maçon ideal não
era mais o do "pedreiro-livre", e sim a do "cavaleiro"; e o
contexto não era mais o canteiro de obras da catedral gótica e sim o campo dos
Cruzados, onde haviam lutado, juntos, a fidelidade a uma elevada tarefa
religiosa e a honra do exercício das armas. Ramsay sustentou que o apelativo
free-mason não deveria ser entendido pelos Irmãos "em sentido literal e
grosseiro", como se "os fundadores da Ordem tivessem sido simples
trabalhadores de pedras ou do mármore ou gênios curiosos que queriam
aperfeiçoar as artes" ou
"apenas hábeis arquitetos que queriam dedicar seus talentos e seus bens à
construção de templos exteriores". Os verdadeiros fundadores da Maçonaria
tinham sido, segundo Ramsay, "príncipes religiosos e guerreiros que
queriam", de acordo com a definição dada por São Paulo, "iluminar,
edificar e construir os Templos vivos do Altíssimo".
Por esta longa citação, que foi apoiada no texto
"Simbologia Maçônica, Graus Escoceses" de U. Gorel Porciatti, citado
no texto de Angela Cerinotti, pode-se concluir que a chamada ligação
Maçônica Templária nasce, e esta é a conclusão mais óbvia, de uma construção
literária do cavaleiro de Ramsay, com o único intuito de estabelecer parâmetros
de nobreza que envaidecessem os membros da Ordem Maçônica em França, geralmente
provenientes da Aristocracia.
A negação da origem da maçonaria nas Guildas Inglesas de
construtores, a suposição de que na verdade os maçons fossem produto do esforço
de Nobres de construir uma Ordem de Cavalaria, tudo isto brota das tintas de um
texto e não de fatos históricos.
A reunião entre maçons e templários do período PJM só se sustenta
na necessidade de proteção e abrigo no segredo daqueles que, tendo sido antes
poderosos, eram agora apenas e tão somente fugitivos sem pátria.
Ao contrário do que Ramsay diz, todas as evidências
históricas apontam para um início da Maçonaria em moldes de humilde
relacionamento entre pedreiros, que eram obrigados a conviver por séculos, já
que uma catedral levava dezenas de anos para ser construída ( a de Barcelona
levou duzentos anos). Em dois séculos, os construtores iniciais morrem e
transmitem seus legados aos seus filhos que continuam seu ofício, e as ligações
entre as famílias se aprofundam, com um alto grau de solidariedade entre os que
estão expostos aos riscos de uma engenharia sem as medidas de segurança que
hoje conhecemos. Uma única pedra que caísse, mataria dezenas de homens. Um tal
grau de risco comum cria laços, não os laços da Guerra, como propunha Ramsay, mas
os laços de um destino comum de trabalho e amizade.
Quanto ao fato de originalmente os Templários serem assim
chamados por terem erigido sua sede sobre as ruínas do Antigo Templo de
Salomão, simbolismo este que até nossos dias é consagrado entre maçons, isto
não quer dizer que o simbolismo bíblico fosse fundador da Ordem Maçônica, mas
sim que , a posteriori, estes fatos foram alçados ao imaginário e transferidos
arbitrariamente ao passado como fato fundador. A Maçonaria Simbólica é
posterior a Maçonaria Operativa, portanto o valor de símbolos como o Templo de
Salomão só é consagrado em nossa Ordem quase ao final da Maçonaria
Aristocrática, nos século XVII e XVIII.
O Incêndio de Londres
A maçonaria sempre foi uma Ordem Esotérica, no sentido do
segredo, mas o tipo de segredo que guardou e guarda mudou ao longo dos séculos.
No início, este esoterismo serviu a preservação de técnicas profissionais de
corte das pedras, no intuito de manter a reserva de mercado, o que sustentou a
Ordem até o incêndio de Londres, de 2 a 5 de setembro de 1666, quando a
destruição da cidade foi tão grande que foi necessário chamar pedreiros de
outros países, quebrando o monopólio da Guilda ou Sindicato Londrino de
Construtores, os primeiros maçons. É neste contexto que a Maçonaria, unicamente
no sentido de buscar sua própria sobrevivência, acelera o fenômeno dos maçons
aceitos, o qual já ocorria desde o século XIV, com a entrada na Ordem de pessoas
que não tinham em princípio vínculos com a Arte de Construir Catedrais ou o que
quer que fosse, mas eram, isto sim, membros da Aristocracia, fascinados com o
apelo de pertencerem a uma sociedade secreta. Entre os séculos XIV e XVIII, a
maçonaria se transformaria, agora sim, de uma Ordem Secreta Profissional, em
uma Ordem Esotérico-Simbólica, com uma metamorfose progressiva de seus ritos, a
adoção de um ritual de Iniciação no lugar do Banquete de Aceitação que
acontecia antes para os que nela ingressavam. É neste período, provavelmente
sob a influência dos rosacruzes que se tornaram membros de suas fileiras, que a
Bíblia passou a ser a fonte das reflexões maçônicas, e não mais apenas e tão
somente a camaradagem entre os Irmãos.
Não surgimos como filósofos, nem mesmo como Cavaleiros, mas
como pedreiros proprietários de uma técnica única de corte de pedras ensinada,
mais uma vez , por padres arquitetos na virada do século X, quando começa a
reconstrução da Europa após a Guerra de Cem Anos, humildes e acostumados ao
trabalho braçal e à cerveja, mas com um forte senso de pertencimento a um grupo
solidário e leal.
Existiram templários dentro da maçonaria sim, mas no período
PJM. Eram já outro tipo de templários, mais preocupados em construir do que
destruir, talvez até mais templários maçonizados do que maçons templarizados,
dada a influência positiva de uma convivência com seres pacíficos e solidários,
tendo pouco a ver com aqueles templários AJM, que matavam e saqueavam árabes.
Para estes templários, a batalha real tornou-se apenas uma lembrança, nas
sombras do anonimato forçado.
A conotação de origem templária da maçonaria e a construção
de um passado imaginário de lutas e glórias associada àquela Ordem, AJM, está,
como demonstramos, dentro de um contexto literário e discursivo, algo do qual
fomos convencidos em uma noite de março de 1737, pela habilidade retórica de um
poderoso orador.