Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

domingo, 24 de abril de 2011

TODOS SOMOS DIFERENTES

“A reação psíquica determinada pela experiência com a morte, ou mesmo diante de um diagnóstico médico associado com a perspectiva de vir a morrer, foi descrita por Elisabeth Kubler-Ross como tendo cinco estágios (Berkowitz, 2001): Negação, raiva, barganha, depressão e aceitação.”

Por Mario Sales, FRC.:; S.:I.:;M.:M.:

Foi considerando os estágios psicológicos ligados a doenças terminais que comecei a considerar se não podem existir estágios semelhantes na “morte” de uma personalidade para dar lugar a uma nova manifestação espiritual. Todos nós atravessamos pequenas mortes psicológicas ao longo da vida.
Mudanças implicam a morte de certas compreensões para dar lugar às novas.
Sempre que evoluímos, evoluímos não de forma gradual e suave, mas por sucessivas rupturas com perspectivas que durante muito tempo foram a base psicológica de nossa forma de ver o mundo.
Matar o velho é a expressão.
Em misticismo usamos uma expressão menos dramática e violenta, mas nem por isso deixando de representar uma forte mudança de foco: passar por uma iniciação.
A cada iniciação, dá-se uma pequena morte, um pequeno ensaio de transformação, e já que hoje é Domingo de páscoa, o dia da ressureição, um renascimento, que está representado didaticamente na metamorfose da lagarta.
A literatura já explorou este momento muitas vezes, mas talvez seja em Richard Bach (Ilusões) que encontremos a síntese mais poética: “O que a lagarta chama de morte, o Mestre chama de borboleta”, diz ele.
Sim, uma intensa e significativa transformação, mas em se tratando de seres humanos, não tão indolor assim.
Por isso merece uma análise mais demorada, até para gerar marcos ou bóias que possamos deixar para facilitar o caminho a outros na senda mística. É isto que aqueles como eu, que envelheceram neste caminho, devem fazer: deixar sinais para os que passarão pela mesma senda.


Quando estamos próximos de um novo patamar evolucional certos acontecimentos denunciam sua proximidade. A cultura mística japonesa fala de um estado de bem aventurança que surge apenas, e somente apenas quando atingirmos o mais profundo desespero. Os rosacruzes também se referem a um período de angústia pré iluminação, não a noite negra da alma, mas outro período, que será atravessado pelo iniciado com mais consciência do que a noite negra, o qual nem por isso deixará de ser difícil.
Mas a questão é: existirão fases internas discerníveis na experiência iniciática, para além destas duas fases, desespero e despertar, treva intensa imediatamente antes da luz ofuscante?
Primeiro, sigamos algumas etapas neste raciocínio psicológico: qual aspecto da vida humana é o mais difícil de combater na busca pela iluminação? O budismo nos diz a resposta: o apego, a sensação de que somos donos de alguma coisa ou ainda, capazes de reter com nossas mãos o fluxo das mudanças.
Em Buda, lemos: Existe a Dor; a fonte da Dor é o apego; desfazendo-se o apego, desfaz-se a Dor.
Simples assim. Psicologicamente falando, entretanto, extremamente complexo.
Somos criados, educados para crer nas relações de apego. Falamos de modo mais ou menos despreocupado, todo os dias de nossa vida em “minha mulher”, meus filhos”, “minha posição social”, “minha cultura intelectual”, ou quando queremos demonstrar mais espiritualidade “meu Deus”. São clássicas expressões de apego disfarçadas de identificação. Eu não estou falando do “meu carro”, ou da “minha casa”, ou do “meu dinheiro”. Não. Isto é banal. Falo de coisas mais sutis, coisas que não são coisas, mas pessoas, sentimentos, crenças.
Aí mora o perigo.
Quando algo nos atinge às vezes é mais fácil administrar do que quando atinge alguém que amamos e que por isso, esperamos que goze de uma proteção mística de tudo que possamos considerar nefasto ou doloroso. Só que as coisas não são assim, e o livro de Jó, simbolicamente, fala sobre esses momentos.
O salmo 91 não corresponde aos fatos, mas a um compreensível desejo humano de segurança e estabilidade, de uma época em que a negociação com a Divindade fazia parte do cotidiano. Aliás, até hoje faz, dependendo do nível espiritual da pessoa.
A Divindade só é interessante e merecerá nosso louvor se nos cobrir de graças. Nenhum mal poderá nos suceder já que isto não é condizente com nosso desejo.
Queremos saúde, física e mental, prosperidade material para nós e para os nossos familiares. Se apenas uma dessas condições não for contemplada, perdemos nossa confiança na Divindade que minutos antes louvávamos. Ou podemos ir para o outro extremo: o ceticismo não metodológico, mas como princípio, uma outra forma de religião, só que às avessas. Nada referente ao Divino deve ser verdade e a religião, considerada a única expressão da religiosidade, com seus erros e injustiças, com seus fanáticos e fundamentalistas, deve ser vista como fonte do mal e da ignorância e por isso, deve ser combatida como uma abominação supersticiosa num mundo abençoado pelo conhecimento científico.
Todos sabemos que ambas as posições são falhas.
Primeiro, a experiência mística nada tem a ver com a negociação de favores materiais presente em todas as épocas; e o ceticismo absoluto nega-se a admitir a sensibilidade interna como imanente ao ser, parte importante do indivíduo, e que tem na religião uma de suas expressões, mas não a única.
Deus é testemunha que por vários motivos não nutro simpatia pelo trabalho histórico da Igreja de Roma, mas isto nada tem a ver com a religiosidade presente neste ou naquele santo católico, neste ou naquele homem ou mulher que deposita nesta linha religiosa suas crenças e esperanças. Somos, frente a vida, livres para sentir Deus, cada um ao seu modo, desde que sejamos capazes de uma experiência autêntica, pessoal, algo que não pode ser ensinado ou explicado, nem intermediado, mas que pode ser sentido.
Voltemos ao nosso raciocínio. O apego é o grande problema para o místico, em qualquer linha em que ele esteja. Não apenas para o místico ocidental, mas também para o oriental. É tão difícil experimentar o desapego para quem é como para quem não é Budista.
No Ocidente, no entanto, por causa do apelo consumista, tudo fica muito mais complicado.
E aí entram aquelas fases que falamos antes: Negação, raiva, barganha, depressão e aceitação.
Quando confrontados com alguma perda, atravessamos também fases semelhantes.
Primeiro tentamos negar (“Não pode ser verdade!) depois a raiva, a revolta (Por que eu? Por que meu pai, ou minha mulher, ou minha filha?); depois a barganha: ( se você Deus desfizer magicamente tal situação, prometo que farei isto ou aquilo) .
Vamos analisar estas três fases: do ponto de vista místico as coisas não são bem assim. Principalmente por que o místico, em geral, segue uma linha panteísta, melhor dizendo, não há alguém, em algum lugar, com quem negociar ou contra quem se revoltar.
Talvez seu sofrimento seja mais intenso justamente por causa da consciência que possui, por sua formação mística, de que as coisas que ocorrem estão dentro da lei de ação e reação, o Karma, que tem sempre suas razões para desencadear este o aquele contexto situacional. O místico, por ser panteísta, pensa como Espinosa.
E conclui: fatos são fatos e não se pode lutar contra eles ou tentar negá-los, apenas administrá-los. Mais: a formação mística ensina que tudo tem uma razão e esta razão visa algum bem para nós ou para aquele que foi atingido por qualquer evento particularmente triste.
Não quer dizer que devemos agradecer sorridentes pela dor ou pela desdita, mas que, na verdade, deveríamos, porque atrás de cada problema existe uma bênção oculta, como a pérola dentro da concha. Só que devemos reconhecer que este não é um movimento fácil para ninguém que foi criado em valores ocidentais, ou que esteja mergulhado na ilusão da estabilidade ou do conforto material. E hoje isto vale para algumas regiões orientais também, diga-se de passagem.
As pessoas tendem,  de maneira ingênua filosoficamente, a supor que coisas constantes são eternas e que nunca se modificarão. A começar por sua própria existência física.
Todos têm uma estranha sensação de eternidade física e ficam embaraçados e desconfortáveis ao discutir sua própria morte. Ninguém, como o filósofo, após beber a cicuta, lembraria de dívidas banais, tomados pelo pavor da morte e do aniquilamento.
Ninguém levantaria o lençol da cabeça para dizer: “Não esqueça que devemos um Galo a Asclepíades” como Sócrates faz, descrito por Platão no diálogo Fédon.
Não. Não discutimos nossa morte, apenas nossa dor. Como se falar dessas mazelas normais da existência fosse uma prova de que nossa vida é particularmente original.
Não é. Todas as nossas existências, com suas pequenas iniciações, dificuldades, com nossos erros e acertos, suas perdas e ganhos, são extremamente banais e monótonas.
Místicos e filósofos concordam com isso.
Não há nada de especial em nós apenas por sermos humanos e passarmos por problemas que todos os seres humanos passam, todos os dias, independente das crenças ou dos valores ou do país em que estejam, nesta ou em outras encarnações.
Místicos e filósofos são estóicos e espartanos, e não podem ser de outra forma.
Não somos donos de nada, não possuímos nada; tudo que temos hoje não teremos amanhã; tudo que não temos agora, estará em nossas mãos mais a frente, se assim for interessante para o nosso crescimento. Esta é a Lei. Somos forças em ação fluindo por um universo em movimento. Sem estabilidade, sem imobilidade.
Vida é movimento. Parar é a morte.
Já que sabemos disso, nós místicos substituímos os três primeiros passos da Dra Kubler Ross por um apenas: tristeza e busca de aceitação interior, baseado no nosso modo de ver a Vida. Sabemos que devemos aceitar e administrar os fatos, mas isto não implica que não soframos com eles, que não tomemos providências para diminuição dos danos, que não façamos a coisa certa. Cumpriremos nossa função de socorrer quem precisar, e atender as necessidades de quem a tiver, mas procurando, por dentro, isso sim, manter a mente quieta e atenta aos acontecimentos, tentando ver aonde está o aprendizado ou a lição a se extrair desta experiência, que é o papel de qualquer experiência que atravessemos, gerar conhecimento, gerar mais evolução, mais consciência.
Segundo a Dra Ross, ainda existem duas fases: depressão e aceitação. A Aceitação, do ponto de vista místico, já aconteceu. Quanto a Depressão, se a reconhecermos como a sensação do desespero antes da luz surgir, esta fase, concedo, os místicos também experimentarão, humanos que são.
A Oração ajuda, mas não diminui a tristeza e a Dor. Faz parte da experiência e é legítimo que passemos por isso. Nada de considerar a Dor como algo a ser tratado. Não se trata de uma doença. É tão legítimo e mesmo saudável chorar por nossas perdas como comemorar nossas vitórias, já que não estou falando de Iluminados, mas de pessoas comuns que abraçaram a causa do misticismo.
Podemos concluir que a experiência do sofrimento é tão difícil para aqueles que tem formação mística como para aqueles que não a tem. A diferença talvez esteja na serenidade ao atravessar estas fases que a formação mística nos proporciona, não a serenidade dos santos , ainda, mas a serenidade das pessoas que sabem que tudo passa e que qualquer que seja a nossa Dor , um dia ela termina, do mesmo modo que começou.
As fases da Dra Kubler Ross são válidas sim , mas dependem das crenças e dos valores daqueles que as atravessam e não podem, a meu ver, serem consideradas universais.
Pode-se sofrer de várias maneiras e morrer de modos os mais variados. Ninguém atravessa a doença ou a morte ou a Dor da mesma maneira. Isto é certo sobre nós, seres humanos: todos somos diferentes.

Um comentário:

  1. Lindo texto estimado Mário.
    Gostaria de questionar, apenas para fins de esclarecimento e até de enriquecimento, pois sabemos o quão importante é o uso de expressões, em especial nesse âmbito.
    Quando utilizas a expressão panteísmo, não seria correto utilizar, ao invés dela, a expressão panenteísmo?
    Um fraternal abraço.

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