por Mario Sales, FRC.: ,S.:I.:, M.:M.:
A maior garantia de liberdade possível é a de pensamento e imaginação. Não o corpo, mas a mente livre é o que garante a estabilidade do espírito e o respeito à individualidade humana. Estas são as conclusões a que chegou a humanidade após séculos de elaborações sobre a liberdade em si. Imaginar é ser livre.
Faço estas considerações pensando na matéria que foi publicada no jornal O Estado de São Paulo, no caderno Sabático, de nove de abril próximo passado.
Trata-se de uma resenha sobre a tradução do volume de ensaios do pensador franco-búlgaro Tzvetan Teodorov, A Beleza Salvará o Mundo,(frase extraída de um conto de Dostoievski, “O Idiota”), publicado pela editora Difel, onde o autor analisa a obra de três grandes escritores, (Oscar Wilde,inglês; Rainer Maria Rilke, alemão; e Marina Tsvetaeva, russa) a título de defender a tese de que “se cabe a nós decidir o que é verdadeiro e o que é ficção, também é nossa atribuição encontrar um caminho que conduza a um estado de plenitude num mundo sacudido pela obsessão materialista e a descrença”, no comentário de Antonio Gonçalves Filho.
Tzvetan Teodorov
Não há nenhuma conotação mística em seus comentários. Apenas uma ênfase na importância da Arte como atenuadora da Dor e fonte de sentido na existência. Por que a beleza de que fala a frase título não é a beleza cosmética, mas a beleza do espírito humano que se realiza em sua produção artística: seus romances, seus poemas, sua pintura, sua música.
Ao longo de seu artigo, Antonio Gonçalves Filho relembra que “Teodorov não prega o sacrifício pelo “belo ideal”. Para ele”, continua Gonçalves, “a arte seria a continuação do sagrado por outros meios, parafraseando o filósofo francês Marcel Gauchet” (professor do Centre de recherches politiques Raymond Aron na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) em Paris).
Marcel Gauchet
Concordo.
A beleza proveniente da Arte é indiscutivelmente um atenuante num mundo caótico e às vezes, sem brilho.
É nestes momentos que encontramos a marca dos momentos importantes de nossa vida ou de nosso dia, pelo menos.
É o que acontece com a música. É ela, música, que atenua nossa monotonia e nos enriquece, de modo gratuito e generoso. Sabemos o que a música nos dá embora não possamos lhe dar nada.
Ela nos envolve e identifica certas emoções e épocas, lembranças, enfim. Nossa memória, via de regra, é orientada por certas canções e músicas que nos trazem as imagens marcantes de nosso passado recente ou distante.
Existe, no entanto, outras músicas, sem instrumentos a não ser nossa boca e sensibilidade, as poesias, que nos cercam com seus versos e nos inundam de prazer estético.
Marina Tsvetaeva
Viver não é uma experiência apenas prazerosa. Este é o mundo da dualidade. A Arte serviria de compensação às vicissitudes que a existência nos traz, e é nesse contexto que o livro de Teodorov trabalha.
Basta lembrar que Wilde foi preso por ser homossexual, Marina Tsvetaeva teve o marido fuzilado pelo governo comunista e viu a filha morrer de fome, tendo vivido sempre em extrema pobreza. Rilke sempre teve uma vida errante, tendo vivido sempre à custa de amigas, mas dos três talvez tenha sido o que tenha atravessado menor numero de dramas pessoais concretos.
Sua arte lhes trará sustento moral para atravessar seus dissabores, mas é preciso lembrar que, embora a arte compense a Dor, não quer se dizer com isso que a Dor seja fundamental a arte.
O prazer e o equilíbrio também produzem arte e basta lembrar Rodin, de quem Rilke foi secretário em Paris, em 1905 e 1906, artista consagrado, e ao que se sabe sem grandes crises pessoais, que teve grande influência na poesia do escritor alemão.Tudo isto, penso, tem a ver com a busca do equilíbrio pessoal na vida cotidiana.
Oscar Wilde
Alguns místicos advogam que só através da religiosidade é possível um fortalecimento do caráter e do vigor espiritual que nos dê o alento para atravessar os problemas e as tribulações. Mas se esquecem de que a “Arte é a continuação do sagrado por outros meios”, bem como a vida cotidiana em si. O que nos leva a outra formulação: o profano é sagrado em si, tornado sagrado por nossos pensamentos e nossa conduta.
Não me parece que haja dúvida de que o estado de equilíbrio é dinâmico e que a beleza não está apenas nos olhos de quem a vê, mas também na interação com o que é contemplado. E o artista, inspirado pelo universo em seu trabalho, garante com a beleza que produz o estímulo necessário para ativar nossos melhores sentimentos e nossas melhores emoções.
Rainer Maria Rilke
É possível distinguir uma arte inspiradora de outra da qual não podemos dizer o mesmo, mas os critérios para essa separação são difíceis de estabelecer sem que se escorregue para o preconceito.
O que é certo é que a religiosidade é um assunto complexo demais para ficar apenas nas mãos da religião. É preciso que vejamos possibilidades de sagrado em tudo que vivenciemos, mesmo na arte e na expressão da beleza de cada ser humano tocado pelo dom de produzir prazer estético. Gerar beleza com a Arte é um trabalho abençoado, e seus produtores são, da mesma forma, pessoas abençoadas pelas quais devemos sentir uma imensa gratidão.
Não só pelo bem que nos fazem, mas pela generosidade de sua dádiva, tão universal quanto mais bela puder ser.
No fundo, como místico, creio que o que faz estas pessoas especiais não é o fato de que produzam beleza, mas o baixo grau de interferência entre a fonte de toda a beleza e aqueles que delas desfrutarão. Pois artistas como místicos e santos, são antes de tudo seres profundamente intuitivos e captam, antes de todos, as emissões constantes e ininterruptas do cosmos a nossa volta.
É a tradução destas emissões que os torna produtores de beleza, ou melhor, decifradores e retransmissores da beleza que está ao nosso redor. Por que fazer arte é deixar-se invadir pelo fluxo desta mesma beleza que nos atravessa de modo consciente, assistindo ao seu desfile por dentro de nós, e depois descrevendo este cenário contemplado com nossas possibilidades, sejam palavras, sejam instrumentos musicais.
O universo é, na minha humilde opinião, em última análise, o único produtor de toda a beleza que existe e nosso papel é não interferirmos com este fluxo para usufruir o melhor possível dele.
Nem toda a beleza que captamos conseguimos traduzir. Imaginem o que desfrutaríamos em prazer estético se o conseguíssemos. Enfim, o que não devemos é interromper este fluxo. As correntes têm suas próprias razões.
Viver é desfrutar de uma viagem em uma destas correntes. Fazer arte também. Cada vida é um rio com seu próprio fluxo, sua própria corrente, à qual devemos ficar atentos para que a viagem seja a mais frutífera e enriquecedora.
O artista é aquele que seguiu sua corrente pessoal, que não lutou contra ela, que percebeu que cada rio tem sua corrente própria e que a nossa nunca será a mesma daquele que está ao nosso lado.
O mapa de nosso percurso, o trajeto da corrente de nosso rio, está em nosso coração.
É nele, sejamos ou não místicos, que devemos, portanto, prestar atenção, para encontrar nosso destino. E este é o mais importante papel da arte: lembrar-nos da importância de nossos sentimentos para a realização de uma vida realmente bela.
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