Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

A LEI ESTÁ EM NOSSOS CORAÇÕES

 

Por Mario Sales,FRC



E disse-lhes: O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado.

Jesus, no Evangelho de Marcos 2:27


 

O Shabat é sagrado.

No Zohar, ainda nos textos preliminares, antes da primeira parashat, da primeira parte ou porção, conhecida por Bereshit, existe uma longa digressão sobre a natureza sagrada do Shabat.

Lá é dito que a razão da sacralidade deste período, que vai do pôr do sol na sexta feira até o pôr do sol no sábado, está no fato de que especificamente naquelas horas, as portas do céu estão abertas, e a inspiração divina flui livre para que os Justos, os Tzadikin, possam recebe-la.

Deve-se guardar, respeitar o Shabat, pois o Shabat é mais do que um dia e uma noite: o Shabat é uma porta dimensional, que é tão sutil e delicada, que será perturbada pela mínima manifestação de desarmonia, seja por ansiedade, indisciplina ou luxuria.

O que possa perturbar o vínculo com o sagrado deve ser evitado: as coisas da carne, os assuntos mundanos, o vinho, a voz elevada, a cólera, a exaltação.

É preciso comportar-se com pudor, temor e tremor, pois o Santo, Bendito Seja, estará atento aos nossos pensamentos e atitudes.

Em função disso, o trabalho deve ser suspenso, deve-se mergulhar em oração, meditando sobre a Torah, a lei, procurando a compreensão de seus segredos e de sua iluminação.

Esta é a tradição, estes são os parâmetros que qualquer judeu, fiel a sua fé, conhece e pratica.

Jesus era judeu. Jesus conhecia bem a Torah.

Mesmo assim relata o Evangelho de Marcos, capítulo 2:

“E aconteceu que, passando ele num sábado pelas searas, os seus discípulos, caminhando, começaram a colher espigas.
E os fariseus lhe disseram: Vês? Por que fazem no sábado o que não é lícito?
Mas ele disse-lhes: Nunca lestes o que fez Davi, quando estava em necessidade e teve fome, ele e os que com ele estavam?
Como entrou na casa de Deus, no tempo de Abiatar, sumo sacerdote, e comeu os pães da proposição, dos quais não era lícito comer senão aos sacerdotes, dando também aos que com ele estavam?
E disse-lhes: O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado.
Assim o Filho do homem até do sábado é Senhor[1].”

Peca aquele que vive por sua consciência, que transcende as regras e age de acordo com seu coração e sensibilidade?

Devemos guardar o sábado, mas o que é guardar o sábado?

Um conjunto de normas e proibições, um ritual rígido que, se esquecido, incorrerá em terríveis prejuízos espirituais?

Onde reside nossa santidade, dentro ou fora de nós?

Quem pode ver nossa pureza e nossa sinceridade a não ser HaShem, o Deus de nossos corações e de nossas compreensões? E onde está este Deus que tanto veneramos e adoramos senão dentro de nós mesmos?

Jesus sabia todas estas coisas e com seu gesto, incomum, simples e despreocupado, mostrou que ele estava em harmonia com estas simples verdades, que não fazia aquilo que a tradição mandava, mas sim o que seu coração ditava. E isto se chama a liberdade verdadeira ou a prisão da consciência.

Nossa consciência nos autoriza certos comportamentos em função de sua autoridade sobre nós, já que nossa consciência, nossa guardiã, é também a presença de Deus em nós.

Nós somos extremamente complexos.

Estamos vivos e a vida é extremamente dinâmica. Nenhum texto, por mais belo e sagrado, consegue nos definir ou circunscrever. Nenhum livro pode ser maior que a própria existência.

“A idéia de verdade é um modo, fundamentado em um método, de conferir estabilidade a determinados discursos, não uma instância neutra detentora da essência das coisas, mesmo porque não há essência nem coisas neutras senão na linguagem. As palavras dão identidade a coisas distintas; sob a palavra permanece a vida em sua pluralidade e potência; não é possível reduzir a vida a um discurso”[2]

Temos que ir além do discurso, além da lei, sem ferir a lei. E isto é possível.

Todas as regras e normas foram criadas para representar uma noção de valor, algo que ajudaria a criar Ordem no Caos. Nenhuma lei foi criada com o intuito de prejudicar quem quer que seja, no mundo religioso ou secular. As normas visam o melhor para o convívio de muitos, como boias de sinalização ou mesmo cancelas, que impedem os acidentes e as tragédias desnecessárias. Mas para quem foram feitas? Para aqueles que não possuem discernimento próprio, que são desprovidos de senso coletivo.

Não é preciso dizer a alguém altruísta da necessidade e conveniência de se preocupar com o bem da coletividade. Sua consciência fará isso sozinha. Este homem ou esta mulher estarão para além do bem e do mal, serão membros da elite espiritual da humanidade, que traz em si a marca de muitas vidas, de muitas encarnações. São as almas antigas, que socorrem e ensinam, que estudam a sabedoria de todas as tradições religiosas identificando as semelhanças entre elas ocultas nas palavras e nas convicções nacionalistas.

Estas almas sabem que o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado.

Sabem que as portas do céu estão abertas todos os dias e que a chave para entrar por estas portas é a elevação espiritual e mental.

Não são os dias que são sagrados por si, mas são as pessoas que tornam seus dias sagrados, que fazem do seu cotidiano uma oração permanente, abençoando o mundo com suas simples presenças.

Deus está em nós, nós estamos nEle.

Assim, se percebermos que a luz já está em nós e permitirmos que ela se manifeste, não só santificaremos a noite de sexta feira, mas também a de quinta feira, como também as terças e os domingos pela manhã.

O céu aguarda ansioso nossa visita. Basta que nos deixemos levar pelos ventos da espiritualidade e subiremos mais alto que os pássaros e sem que percebamos estaremos conversando com os santos e com os anjos, enquanto os Iluminados, a nossa volta, nos revelarão os segredos do espírito e da evolução.

E voltaremos deste encontro encharcados de inspiração e êxtase, por termos passado alguns minutos na companhia daqueles que como nós, sabem que tudo que está a nossa volta é sagrado e que o mundo inteiro é nosso templo, nosso sanctum sanctorum, onde podemos vigiar e orar enquanto aprendemos as estratégias da misericórdia e do serviço.

Não, não precisamos de leis. Nossa lei está gravada a fogo em nossos corações, não em livros, não em textos; somos os filósofos de fogo, como nos classifica Blavatsky na Doutrina Secreta.

Somos os filhos da consciência, os buscadores incansáveis da luz e do Cálice Sagrado.

Somos os rosacruzes.


[1] Marcos 2:23-28

 [2] Viviane Mosé, in “Nietzsche Hoje” editora Vozes, 2ª reimpressão, 2019

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