Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sábado, 29 de outubro de 2016

ESPIRITUALISMO MATERIAL

Por Mario Sales

“Nós não podemos ir além
Se não conseguirmos sentir o amor comum
Nós não podemos ir mais alto
Se não conseguirmos lidar com o amor comum

U2, in “Ordinary Love”







Meus anos dedicados ao Misticismo e ao Esoterismo me deram, no início, a falsa impressão de que conseguir distância das coisas da Terra fosse o caminho para encontrar as coisas de Deus.
Foram necessárias várias décadas para que eu percebesse o erro conceitual de minha premissa, um traço romântico e fantasioso de minha personalidade, difícil de aperfeiçoar.
Hoje minha jornada está na mesma direção, mas em sentido inverso.
Eu imaginei que o caminho para o espírito fosse olhar para dentro saltando por cima do corpo. Hoje entendo que se não vivenciar minha experiência corpórea jamais chegarei a entender a minha natureza espiritual.
A falsa dualidade platônica denunciada por Espinoza me iludiu, confundiu e constrangeu minha capacidade de perceber a santidade existente nesta manifestação física que ora habito.
Negar a mim mesmo enquanto corpo não me tornará mais refinado, percebo agora, algo óbvio do ponto de vista intelectual, mas não tão óbvio do ponto de vista existencial.
Hoje suponho ter percebido este simples fato: é mantendo com carinho e cuidado minha casa, minha morada, que crio as condições externas adequadas para quem a habita, ou seja, eu mesmo. E cuidar da morada, do corpo, não é apenas garantir a satisfação de suas necessidades básicas como ar, água, alimento e abrigo. É preciso cuidar do afeto, com tanta ou mais importância que os outros quatro itens anteriores.
Precisamos amar o corpo e as coisas do corpo, sem que isso signifique tornarmo-nos escravos do corpo. É dar a César o que é de César, fator sem o qual a equação estará desbalanceada.
Com certeza ninguém elevará sua alma pela negação de sua própria carne. Só tolos como eu, poderiam cometer este terrível equívoco.
Alguns pensadores já mostraram os perigos implícitos na expressão “amar a humanidade e odiar o próximo”. E ninguém é mais próximo de nós do que nosso próprio corpo.
Da mesma maneira é estúpido supor que nosso amor será mais espiritual e elevado se não conseguimos lidar com o Amor Comum. Toquemos a nós mesmos. Sintamos nossa pele.
Ela tem, com certeza, muitas lições a nos ensinar.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

TEMPO

Mario Sales


“Na candente manhã de fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que em nenhum instante se rebaixou ao sentimentalismo ou ao medo, notei que os porta-cartazes de ferro da praça Constitución tinham renovado não sei que anuncio de cigarros; o fato me tocou, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que aquela mudança era a primeira de uma série infinita.”    
 
“O Aleph”, um conto de Jorge Luis Borges (1949), Companhia das Letras, 2008





energia fugiu de mim, 
como a corça do leão e do guepardo
Ideias ou inspirações, nenhuma,
Só esse silêncio na cabeça e na alma
Que me preenche
Como só o vazio pode preencher alguém.

Mas o tempo lá fora não se importa e segue em frente
Fluxo inexorável, implacável, inesgotável,
Que antes de impressionar, causa inveja.

Queria para mim, esta imperturbabilidade
Essa incapacidade de se desviar ou distrair do foco
Do horizonte a alcançar
Determinação inabalável e rítmica
Que só o tempo tem.

Nada, nem ninguém 
é capaz de impedir que flua
Livre, perene, indiferente.

Mesmo que os eventos 
tenham significado,
quer sejam de vida
ou de morte
Não são capazes de abalar,
em um segundo, a sorte
e o passar incontrolável das horas,
O Devir contínuo
Do qual somos, tão somente,
Espectadores passivos.
Ou não.
O tempo segue em frente,
Célere, Inconsciente 
daqueles que o preenchem
E aos quais atravessa.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

MAIS LEITURAS E REFLEXÕES


Por Mario Sales




Estou lendo agora no e-reader da Livraria Cultura, o Kobo, a biografia de Carlos Chagas Filho,(“Um Aprendiz da Ciência”) que cheguei a ver em vida, em uma visita de minha turma de faculdade à Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Lembro-me de um homem alto e de cabelos muito brancos que me disseram ser o eminente, depois vim a saber, cientista, que por sua biografia descubro foi por toda a vida emaranhado (para usar um termo da Mecânica Quântica) com a Biofísica, e com pesquisas com o peixe elétrico brasileiro.
Este descendente do mesmo Carlos Chagas que dá nome a doença tornou-se uma autoridade científica respeitada internacionalmente, mas se eu não lese este texto jamais saberia disso. Faleceu no ano 2000, coroado de láureas e títulos de Doutor Honoris Causa de dezenas de Universidades em todo o mundo, além de ter sido a pedido de Paulo VI presidente da Academia Pontifícia de Ciências em Roma.



Um cientista, um homem da pesquisa, que participou ativamente da fundação do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPQ) e mesmo assim, sem pertencer ao clero, um homem da religião.
Acabei de ler A Ilha do Conhecimento de Gleiser, e lá também encontrei vários momentos em que, às vezes de modo sutil e em outros momentos, de forma não tão sutil assim, o físico e palestrante brasileiro, professor da Universidade de Dartmouth, (em Hanover, New Humpshire), flerta com a espiritualidade.
Ao que parece o fenômeno é mais difundido do que supõe a vão filosofia de racionalistas extremados como o biólogo evolucionista Richard Dawkins.
Não há certos ou errados nesta questão.
O que Dawkins chama de crença irracional para muitos é algo natural como a fome ou a sede. Para pessoas assim, como eu mesmo, a percepção do divino em nada afeta a razão ou a sensibilidade à argumentos lógicos.
Cretinos e idiotas existem em ambos os campos, sejam crentes ou ateus.
O que deveria se combater isto sim era a estupidez e a ignorância e não a sensibilidade de certas pessoas que independente de sua formação intelectual sólida (Carlos Chagas Filho lia Goethe no original aos 10 anos) são capazes de abraçar uma crença de modo sereno e sincero.
Dawkins e outros revoltados como ele não estão errados ao elencar os problemas ligados à crenças religiosas extremadas e que tem uma história nefasta em relação a liberdade de pensamento e à ciência em si. O problema é que, se existiam, repito, cretinos entre os crentes que queimaram pensadores e mataram homens de ciência, lembro as palavras do professor Karnal que, como bom historiador e estudante das religiões, embora diga-se ateu, alerta que assassinos existem entre religiosos e ateus, lembrando sempre que “o homem mata porque gosta de matar e não em nome de seu Deus”.
Penso sempre nisso quando lembro o destino de Frater Lavoisier, químico guilhotinado pela junta do período pós revolução francesa, a época conhecida como Terror.
Não, não é a fé ou a percepção da existência de algo superior a nós, uma inteligência que tudo governa e administra, que faz de nós cretinos assassinos. Ou mesmo maus cientistas.
As coisas não são tão simples. Lutar contra a religião e o senso do divino entre seres humanos é tentar segurar o vento entre as mãos e faz de qualquer um como Dawkins ou o escritor Christopher Hichtens, um cruzado ridículo.
Todos têm direito a crer ou não no que queiram. Ninguém, no entanto, tem o dever de tentar convencer de modo acintoso alguém de seu ponto de vista.
Mesmo homens de ciência sabidamente distantes de problemas como a religiosidade pensam assim, considerando este proselitismo, mesmo que feito por ateus uma coisa extremamente chata e desconfortável.
O próprio Dawkins sofreu na pele a conhecida ironia de ninguém menos do que o professor Hawkins, que de sua cadeira de rodas zombou dele pela sua obsessão antirreligiosa. Confiram o vídeo do link abaixo em 3’ e 29”.
Este debate hoje é no mínimo ridículo, e a insistência dos entrevistadores e de alguns intelectuais de forçarem este tipo de questão primária e superficial me irrita profundamente.
Newton era profundamente ligado a alquimia e um home de crenças em uma divindade inabaláveis. Nada disso afetou seu brilhantismo, suas contribuições a ciência ou seu papel no enriquecimento do conhecimento humano na ótica, nos estudos gravitacionais e na criação do Cálculo, em matemática.
Não porque Newton fosse um crente, mas porque ele não era um cretino. A inteligência não é nem nunca foi incompatível com a sensibilidade às coisas de Deus.
Eu já usei a palavra cretino várias vezes e pode parecer que estou tomado de fortes emoções ao fazê-lo.
Não é bem assim. A palavra define um estado de deficiência mental característicos de portadores de hipotireoidismo congênito e é por extensão a todas as pessoas limitadas intelectualmente.
É nesse sentido que uso o termo.
A luta não foi entre o bem e o mal mas entre o conhecimento e a ignorância. E a humanidade não tem, na sua maioria, pessoas da estirpe intelectual de um Marcelo Gleiser ou de Carlos Chagas Filho.
É de se lembrar aqui que existem espíritos antigos e sábios fora da academia, fora da ciência e da filosofia.
Longe de mim achar que a razão é o que garante a qualidade das almas e das mentes, bem como dos comportamentos.
Não, a razão já mostrou que pode causar muito mal, que ode ser tanto uma geradora de luz como também um monstro perigoso. A razão, de per si, não merece confiança.
Mas é uma ferramenta importante que se manipulada com destreza e sabedoria pode ajudar muito a sociedade e aos seres humanos.
Oxalá superemos a ignorância, a fome e a miséria material. Que nossas vidas possam ser apenas a busca por um nível de espiritualidade maior e mais profundo.
E que então debates estúpidos e inúteis sejam substituídos por diálogos sérios em busca de soluções objetivas para os reais problemas que afligem nossa espécie, como um todo.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

O MISTICISMO NO HUMANO, DEMASIADO HUMANO

Ou de como as canções de Pink Floyd ainda me emocionam

por Mario Sales, FRC, SI, MM




"Como eu queria que você estivesse aqui 

Nós somos apenas duas almas perdidas 
Nadando num aquário 
Ano após ano 
Correndo sobre o mesmo velho chão 
O que nós encontramos? 
Os mesmos velhos medos 
Eu queria que você estivesse aqui” 

“Wish You Were Here”, Pink Floid


“O tempo passa, em meio a momentos 
que maquiam um dia monótono
Você perde tempo 
gastando as horas de modo descuidado
Perambulando por aí, em sua terra natal
Esperando alguém ou algo 
que te mostre o caminho” 

“Time”, idem




Talvez o que marque a diferença entre mentes infantis e outras, amadurecidas pela convivência mais serena e respeitosa com as emoções e por uma reflexão mais equilibrada, é a impressão, que aquelas primeiras têm de serem de alguma forma especiais, independente do cotidiano demonstrar-lhes, insistentemente, a monotonia das personalidades e dos comportamentos ditos tipicamente humanos; mais que isso: chegam a supor que esses auto denominados "seres especiais", dotados de algum talento particular, artístico ou intelectual, por terem este referido talento, tenham desejos menos comuns, errem menos ou mesmo nunca, e suas conclusões sejam sempre sensatas e corretas.
O que me parece hoje claro é que se até Anjos podem rebelar-se e se o céu, em suas lendas, descreve, dentro de suas portas, uma luta por poder e liberdade, nós, pobres humanos, somos capazes apenas de falhar, miseravelmente, todos os dias, em busca de uma perfeição espiritual imaginária.
Se alguma dignidade temos como raça, como espécie, é sermos o que somos, nada além, nada aquém.
Ponte para algo além do homem, como lembrava Nietzsche, mas não o “Übermensch”[1] em si.
Em nossas buscas a sensação não é de progresso ou de alivio; ao contrário, sentimos como se estivéssemos “nadando num aquário, ano após ano, correndo sobre o mesmo velho chão. 

(E) o que nós encontramos? Os mesmos velhos medos. ”[2]
Assim se comportam  esoteristas românticos e fantasiosos, supondo-se no domínio de forças imaginárias que jamais utilizaram, das quais só conhecem o que ouviram falar ou leram em textos obscuros, supondo, vaidosos, que são homens melhores por causa do que leram. Ou ocultistas, voltados para o passado, transformados em estátuas de sal como a esposa de Ló.[3] 

Enquanto os místicos, esses devotados homens e mulheres, seguem esquecidos de que de nada necessitam além de sua capacidade de orar com sinceridade. 
E isto qualquer pai, que não seja iniciado em nenhuma ordem secreta, com um filho ou filha doente, sabe fazer.





Tantos rituais e códigos e apertos secretos de mão só nos afastam de nós mesmos e daquilo que realmente importa: vivermos nossa humanidade, “ano após ano”, dia após dia, pagando nossas contas, trabalhando, e desfrutando de conversas na cozinha, com o marido ou com a esposa, ou dividindo uma taça de vinho com um bom amigo.
A vida comum, desde que aceita como a verdadeira vida, é a única garantia de não gastar “as horas de modo descuidado”, supondo que exista algo diferente em algum lugar ou época que não fizemos ainda.
Fantasias ameaçam nossa Imaginação tanto quanto nossa Realidade.
São nossas falsas idéias de mundo que militam contra a Luz dentro de nós, a Luz que brota dos dias comuns e simples.
O que precisamos, para avançar em nossa espiritualidade, é reencontrar nosso corpo, e os corpos daqueles que amamos ou que não amamos, contatos que nos enriquecem e humanizam.
Precisamos reencontrar o foco no cotidiano, nas pequenas delícias de estar neste plano, no gosto do café, no sabor de um pão quente, e de apreciar o jeito como a manteiga derrete e se espalha em sua superfície pela manhã.
Amar nossa casa, amar estar “em casa, novamente em casa, (e dizer em alto e bom som): Eu gosto de estar aqui quando posso; quando chego em casa cansado e com frio
É bom ... esquentar meus ossos ao lado da lareira, (enquanto)
Bem longe, do lado de lá do campo, o badalar do sino de ferro, chama os fiéis, de joelhos, para ouvir o encanto suave de ... palavras”, mas eu não me importo. 

Esta casa é meu templo e as únicas palavras que me importam são as palavras da mulher que eu amo e que está aqui ao meu lado.
É o som de sua voz, sua entonação, que me abençoa e acalma.
Este amor, esta convivência, são o verdadeiro e mais profundo esoterismo, a mais importante magia.



[1] Além-Homem é o termo originado do alemão Übermensch, descrito no livro Assim Falou Zaratustra (Also sprach Zarathustra), do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, em que explica os passos através dos quais o Homem pode tornar um 'Além-Homem' (homos superior, como no inglês Beyond-Human a tradução também pode ser compreendida como Além-do-humano).
[2] Pink Floyd, em epígrafe.
[3] Gênesis, 19-26

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

TEXTOS, ESOTERISMO E UTILITARISMO



Por Mario Sales,FRC,SI,MM

 

Ainda estou sob o impacto das palavras de Luiz Felipe Pondé, em seu monumento ao ceticismo chamado “Filosofia para Corajosos”, Editora Planeta, na 4ª edição.
É um discurso veemente contra o senso comum, a favor de uma reflexão radical sobre o papel do desejo de ascensão material e psicológica na sociedade, esta mesma sociedade que ele denuncia como fundada nos Direitos e não nos Deveres.
Sete bilhões de almas, querendo ser felizes em um mundo onde nada, absolutamente nada é certo ou garantido.
Sete bilhões de almas querendo igualdade em uma realidade social ou biológica que nos contempla apenas e tão somente com a desigualdade, com a heterogeneidade.
Dizem que é preciso ter muita coragem ou uma profunda inocência para mencionar-se o óbvio.
O livro, portanto, não é para corajosos, apenas, mas feito por um pensador corajoso, já que inocente não é um adjetivo adequado a alguém com uma formação intelectual tão sólida quanto bem construída.
A força de seus argumentos só rivaliza com a razão pela qual escreve o livro, já que sua faca nos dentes oculta a preocupação com o futuro daqueles que ele ama, algo denunciado na dedicatória a neta Amélie, no início do texto.
Estamos, concordo com ele, naquela calmaria que antecede a catástrofe. Não vejo com bons olhos o estado infantil com que as pessoas (ou eu mesmo) lidam com suas existências, supondo docemente que abraçar árvores ou cultuar a rúcula vá tirar da fome e da miséria esses milhares de refugiados sírios que morrem todos os dias no mediterrâneo.
Estamos em uma época como todas as outras da humanidade, muito romântica e pouco objetiva, embora pareça que o capitalismo nos transformou a todos em idiotas do sucesso, como diria Pondé.
Não é o meu caso, espero. Sinto este mesmo desalento que ele em relação ao estado atual da sociedade, por motivos semelhantes e dessemelhantes, ao mesmo tempo.
Pondé é um agnóstico e eu creio em coisas invisíveis.
Ele ri de termos como Cabala e Energia, coisas que eu estudo com seriedade. Entendo, entretanto, sua birra com termos vagos e imprecisos. Eles dão margem ao surgimento de charlatães e desequilibrados, que criam legiões de seguidores entre outros tantos desequilibrados que não faltam pelo mundo afora.
O perigo de termos vagos é exatamente sua maior qualidade: como os símbolos, eles permitem uma livre interpretação, e nisso dão a impressão que ao usarmos estes termos estamos falando da mesma coisa, a mesma língua, o mesmo assunto.
Eu tenho a mesma ira santa com a imprecisão. Ela me aborrece e me atrapalha, até nos meus solilóquios.
E por isso aprecio tanto a didática, que não garante que o que está sendo ensinado seja correto, mas que garante uma forma correta de transmitir o que está sendo ensinado.
Desde que exponhamos nossas idéias com clareza, podemos até descobrir nestas mesmas idéias suas inconsistências, suas contradições internas, e recusá-las como absurdas se assim o for.
Mas só poderemos fazer esta autocrítica se soubermos exatamente o que estamos discutindo, ou exatamente do que estamos falando.
Palavras e conceitos vagos não permitem um foco nítido no sentido da palavra e isso inviabiliza a operação de analisar o que foi dito ou pensado.
Por isso, em termos intelectuais, clareza é tão fundamental.
Pela mesma razão tem uma profunda antipatia pelo esoterismo, no sentido que costumo usar o termo.
Ele é construído com signos e sinais confusos e pasmem, de modo proposital às vezes. Como sempre digo, qual a função de uma informação que não pode ser compreendida, ou pior, que corre o risco de ser compreendida de modo equivocado?
O conhecimento esotérico é assim, para minha tristeza e desespero, utilitarista no estilo de John Start Mill que sou como um homem contemporâneo normal.
Gostaria de ver resultados práticos no estudo desses textos, mas a promessa não é essa. E nisso o esoterismo é profundamente egoísta, e se opõe de certa forma ao misticismo, como eu emprego o termo.
Porque esoterismo é um caminho de intelectos e leituras solitárias, que visa o desenvolvimento pessoal de habilidades transcendentais ou o domínio de compreensões incomuns. Só que os objetivos desta conquista intelectual são absolutamente particulares, não visando o compartilhamento. Lembrem-se do que eu disse, interpretar textos esotéricos é para os fortes, leva tempo e dá trabalho, e não há que eu saiba, muitos empreendimentos de didatização deste conhecimento, ou por incompetência nossa, esoteristas, ou por desinteresse voluntario de compartilhar algo que só é entendido a duras penas. A ponto de que, ao fim e ao cabo, quando se entende o que está descrito ali, se é que isso é possível, estamos tão cansados e somos tão egoístas que ninguém tem mais energia ou generosidade para traduzir em linguagem contemporânea aquilo que estava oculto pelo manto dos séculos, das línguas e dos significados ocultos.
Chega a ser uma maldade.
Toda vez que leio esoteristas eles falam da importância de preservar o conhecimento esotérico dos olhos dos “profanos”. Que existe um perigo imenso nas revelações que estes textos ocultam.
Nunca tive a coragem necessária para dizer isto que vou dizer, mas Pondé e seu livro me inspiraram: isto, de haver riscos ocultos, é uma profunda bobagem.
Talvez o maior risco prático é a decepção de perceber que por baixo de todos estes cobertores não existe nada, a não ser uma enorme quantidade de informações sem sustentação e que jamais se transformarão em coisas práticas e palpáveis.
Penso como médico e como cidadão do mundo.
Não vejo como os textos de Eliphas Levy ou de René Guénon possam dar origem a algum antibiótico novo ou a uma tecnologia que nos liberte da dependência dos combustíveis fósseis.
Ou seja, falemos de um neo-utilitarismo, que além dos princípios de Stuart Mill (fugir da dor e buscar o prazer) inclua também o seguinte mote: isto serve pra quê? O que vou fazer com este conhecimento em minha vida prática?
Se o Misticismo, como eu o entendo, faz um bem enorme a quem o pratica, melhorando sua espiritualidade e sua conexão com o Deus de seu coração, o esoterismo põe o foco no que está fora, em textos e informações que enchem a cabeça da vítima sem explicar bem no que este conhecimento vai se transformar.
Porque a lei do Yetzirah, da Criação, é passar do muito pouco denso ao denso, progressivamente; é imaginar, planejar, consolidar a estrutura e lançá-la ao mundo de Assiah, Malkut, como existência sólida, sólida, aliás, entre aspas.
Como uma casa que surge como uma idéia na mente do arquiteto, vaga e imprecisa (Atziluth), e que ganhará contornos mais definidos ao desenhar sua planta e fazer um modelo (Briah), e será aos poucos construída pelos operários seguindo as especificações do arquiteto e de seu projeto (Yetzirah) para então ser desfrutada pelos moradores (Assiah) além de fotografada para a revista Casa e Jardim.
Esoterismo, como texto cru, sem tradução para a contemporaneidade, é estéril. Precisa receber um tratamento de atualização, para que mais e mais pessoas possam compreender o que está ali descrito, e principalmente, possamos averiguar a veracidade do que foi dito, que existe sim algo de profundamente importante ali, ou se estamos apenas perdendo nosso tempo.
Por isso, como esoterista, meu foco é a tradução. Primeiro a compreensão, depois a tradução, como fiz no trabalho sobre as forças do Universo como descritas por Jacob Boheme. É a única coisa que dá sentido ao esforço de interpretar esses textos, ou seja, torna-los mais acessíveis ao maior número de pessoas possível, em linguagem contemporânea.
Nos próximos anos, este é o meu projeto com a Doutrina Secreta. Não fazer um resumo como o de Michael Gomes, mas elencar de forma organizada, os conceitos ali expostos, para que uma vez expostos possam ser analisados de maneira mais fácil por um maior número de pessoas.
Este é um viés esoterista altruísta, não egoísta, já que minha intenção não é aprender para mim mesmo, mas para compartilhar.
E isso nada tem a ver com generosidade pessoal, é apenas algo que eu faço porque gosto. E precisamos fazer coisas que gostamos para passar o tempo entre o nascimento e a nossa morte. Se for algo útil, para a maioria das pessoas, melhor. Mesmo que não fosse não poderíamos resistir, se fosse esse nosso foco na existência.
E todo mundo tem o seu, com o qual não deve discutir. Ir contra sua tendência pessoal, sua Physys, como dizia Platão, é buscar uma vida medíocre e de muito sofrimento.
Já basta nossa imensa ignorância sobre tantas coisas no Universo, não precisamos de mais nenhuma dor.
E por falar nisso, vamos ao próximo livro, “A Ilha do Conhecimento”, de Marcelo Gleiser, que ainda não terminei.
Acho que agora vai.
Bom fim de semana a todos.

sábado, 1 de outubro de 2016

GRUPO DE ESTUDOS MARTINISTAS: CABALA LEITURA DO SEPHER YETZIRAH O LIVRO DA CRIAÇÃO - A ORAÇÃO


(Flavio Bazzeggio FRC , MM e SI; Wilson Hackmey FRC e SI; e Mario Sales FRC e SI)

por Mario Sales


 


“Nos dias de hoje não lhes dê motivo
Porque na verdade eu te quero vivo
Tenha paciência, Deus está contigo
Deus está conosco até o pescoço”

"Cartomante", de Ivan Lins e Vitor Martins,
imortalizada na voz de Elis Regina

A discussão começou no terceiro parágrafo da página 200 da Edição comentada pelo rabino Arieh Kaplan, do Sepher Yetzirah (Editora e Livraria Sepher, 3ª edição revisada de 2005).
Lá está dito por Kaplan que “de grande importância são as relações entre as letras, os dias da semana, os planetas e as sete características primárias: Sabedoria, Riqueza, Semente [fertilidade], Vida, Domínio, Paz e Graça.”
Comentei que esta última virtude, a Graça, tanto pode ser entendida como Beleza física quanto como espiritual, (principalmente lembrando do eixo central da Árvore, Malkuth, Yesod, Tifereth, Daat, Kether), e que a Oração Verdadeira, Cardíaca, a que vem do interior e se aprofunda ainda mais em nós chega assim direto ao altíssimo, sem intermediários.
Flavio ponderou que existem limites para a expansão da consciência e que tinha dúvidas sobre a possibilidade desse contato ser assim, transcendente a todos os portais e níveis que nos separam do Alto da Criação.
Do meu ponto de vista este é o único momento em que os portais são atravessados sem necessidade de parada, sem alfândega espiritual, já que, a meu ver, o que sobe degraus é a Consciência e não a Prece.
A prece, quando sincera e às vezes desesperada, mobiliza energias de contato muito poderosas, que evidenciam a conexão nunca ausente entre nós e a Fonte de Toda a Vida.
Flavio alegou que existem muitos níveis até para a própria manifestação da árvore e que talvez esta conexão de que eu falava não seria Malkuth – Kether mas sim Malkuth de (Assiah) com Kether de Assiah e não Kether de Atziluth, dada a inexorável limitação de nossa consciência. (Ver esquema abaixo)


Slide de Reginaldo Leite no Curso que ele deu na Morada intitulado a Mística das Letras Hebraicas


Contra argumentei novamente que a Oração é conexão com a fonte e que sim, existem níveis e véus e portais a serem atravessados, mas que a conexão em todo esse trajeto em direção a Luz é a mesma e que só existem portais para a Consciência espiritual e não para a Conexão que a Oração possibilita.
Depois que desligamos o Skipe, me veio à mente a seguinte imagem: consciência é como a visão, que pode ser bloqueada por anteparos e véus, ao contrário de um sinal de rádio, que atravessa as mesmas paredes e obstáculos e chega aos nossos ouvidos ou, ao contrário, pode levar nossa voz espiritual ao Altíssimo, como na Oração.
Existe bom senso em expor-se a visão aos poucos à Luz de Deus, já que a visão direta de Deus seria, com certeza, não maravilhosa, mas devastadora. É prudente que como Ícaro, em nossas asas de cêra, não voemos muito perto do Sol.
Quanto a ouvir Suas divinas orientações, isto o fazemos em nosso coração todos os dias, aqui, aonde dizem estamos no mais baixo dos níveis da evolução, afirmação com a qual, já disse, não concordo.
Foi com isso na cabeça que, antes de deitar, abri o Zohar preto, página 145, (Edição da Polar, 2006), com passagens escolhidas pelo rabino Ariel Bension. Fui direto no capítulo 13, que fala sobre as “Revelações sobre a Oração" e lá li este trecho primoroso que sintetizava meu pensamento:
“Todas as portas do céu estão fechadas, menos a Porta das Lágrimas”.
Perfeito.
Era isso que eu tentava argumentar.
A Oração feita com o coração, principalmente aquela feita altruisticamente, procurando a bênção para os que amamos, algumas vezes é marcada pelo desespero.
É ele que dá o tom de profundidade da prece.
O texto do Zohar citado continua:
“Os que guardam as portas do Céu abrem-nas para admitir as lágrimas derramadas durante a Oração e coloca-las diante do Santo Rei, já que Deus participa das penas do homem.”
Este trecho é particularmente comovente e profundo.
Foi então que lembrei do trecho da canção em epígrafe.
O artista é sem dúvida a antena da raça.
E continua o Zohar:
“Os mundos de cima sentem pela região das lágrimas o mesmo desejo que o macho sente pela fêmea. Quando o Rei se aproxima da Senhora e a encontra triste, Ele lhe concede tudo que ela deseja. E como sua tristeza é o reflexo da do homem, Deus se compadece.”
E conclui:
“Feliz o homem que chora enquanto está orando! Cada uma das portas do Céu se abre para a Oração: ‘Oh Senhor, abre Tu meus lábios e minha boca declarará Teu louvor!’

Consciência gradualmente mais clara sim, mas conexão permanente sempre direta, sem intermediários: este é o conceito.