Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

CONHECIMENTO E CONFORTO


por Mario Sales


“Examinem alguns fragmentos de pseudociência e encontrarão um manto de proteção, um polegar para chupar, algo a que se agarrar. E o que nós (cientistas) oferecemos em troca? A incerteza, a insegurança.”
Isaac Asimov





Tenho orgulho de minha ordem, tanto pela sua história quanto por seu esforço secular em busca da preservação de um conhecimento que, não fosse isso, teria desaparecido nas areias do tempo.
Principalmente me envaideço de participar da mesma Ordem que homens de visão como Lavoisier, Renée Descartes e Isaac Newton também participaram.
Se bem que a Ordem é aquilo que todos os seus membros são, seu prestígio sempre foi aquilatado pelos mais nobres entre nós. Seja pelo aspecto espiritual ou pelo científico, pelo aspecto místico ou filosófico.
Talvez por isso, por tentar espelhar esses nobres representantes do pensamento ocidental, minha tristeza seja tão grande ao ver o obscurantismo invadir nossas confrarias, disfarçado de esoterismo e de mistério.
O fenômeno é compreensível. É mais fácil para um racionalista e materialista distinguir entre mito e realidade, apegar-se ao comprovável, ao verificável, e não às impressões subjetivas. Mesmo alguns psicólogos tentam evitar a subjetividade, tentando escapar sob a égide do behaviorismo, da interpretação da mente sob o ponto de vista de conceitos como consciência e vida interior. Embora Skiner, pai do comportamentalismo, não goze mais do prestígio que já conheceu, seus experimentos são deveras interessantes, se bem que, na minha opinião, generalizar conclusões sobre o comportamento humano a partir de testes de condicionamento com animais, como ele o fez, é inadequado frente a complexidade humana.
Rosacruzes estão, ao contrário, mergulhados no subjetivismo até os cabelos. E, ao contrário dos budistas, não tem a mesma disciplina e treinamento mental que deveriam ter.
Hoje somos uma legião heterogênea de personalidades, que tem como única semelhança entre si a curiosidade. Não há nos nossos estudos nem mesmo um filtro, um critério de separação entre conhecimentos significativos e aqueles que não trazem nenhuma contribuição séria a consolidação do espírito.
Embora Spencer Lewis tenha feito um gigantesco esforço para dar direção experimental ao trabalho rosacruciano no século passado, bastou duas décadas para que esquecêssemos de suas recomendações, aposentássemos nossos laboratórios, tornados apenas uma lembrança desde a morte de George Buletza, responsável pelo departamento de pesquisas da antiga Suprema Grande Loja, na Califórnia.
Hoje dedicamo-nos, tanto nas monografias como na Universidade Rosacruz Internacional, apenas ao que não implique experimentalismo estrito senso, como as ciências humanas, que não demandam estruturas de pesquisas dispendiosas e mesmo assim não perdem o status de cientificas.
O mais perto que chegamos do positivismo sonhado por Lewis é a arqueologia, área em que não temos um investimento direto, mas com a qual dialogamos com frequência.
Ao contrário, talvez por influência do trabalho da Tradicional Ordem Martinista, que diferente da AMORC é uma ordem de caráter declaradamente cristão, vejo muitos fratres e sorores confundirem rosacrucianismo e religião.
Isto, no entanto, não seria grave, caso não significasse uma porta de entrada para o obscurantismo.
Enquanto a fé une o homem ao Altíssimo, desenvolve sua sensibilidade as coisas do espírito, ela é uma forte aliada do místico. Quando, entretanto, fé implica desconfiança e mesmo menosprezo pela ciência, pelo esforço de conhecer, através de um método consagrado de verificação passo a passo do que é obtido pela experiência, nesse caso fé passa a ser algo perigoso e danoso ao trabalho místico e esotérico.
Como disse antes, nosso ambiente é altamente heterogêneo e é cômico pensar que algumas décadas atrás a Ordem nos convidava a comparecer aos nossos corpos afiliados no intuito de encontrar mentes afins.
Hoje, nada é tão incorreto quanto isso. Nossas confrarias podem ser qualquer coisa, menos homogêneas e harmônicas, mesmo com um aumento substancial de discursos éticos em nossas reuniões, em detrimento de exercícios mentais, termo que prefiro ao consagrado experimento.
Citei acima os budistas, e isto porque, envolto em um manto de religiosidade, o Budismo é uma escola para a mente e para o aperfeiçoamento do comportamento mental. Ou seja, tudo o que a rosacruz AMORC deveria ser. 
Os budistas, com sua postura de respeito as evidências cientificas externas, ao mesmo tempo que respeitam as evidencias internas, provenientes de uma pratica meditativa persistente, causam inveja.
É triste ver um irmão de Ordem de Newton, pai da mecânica, valorizar informações que não tem sustentação ou fundamento. Ou fascinar-se pelo discurso da CIENTOLOGIA, uma linha de autocondicionamento, de fundamento behaviorista, como se a AMORC não tivesse fornecido elementos melhores e mais elevados de melhoria da determinação e do desempenho mental.
Esta benevolência com tudo e com todos, conduta aliás que não encontra reciprocidade em outros ambientes, fizeram os rosacruzes de AMORC, dentro da ideia de tolerância, acatarem com entusiasmo tudo que não fosse rosacruciano, mas que parecesse interessante, atitude que gerou em determinado momento uma intervenção administrativa da Grande Loja, solicitando que os Grande Conselheiros e seus monitores regionais ficassem mais atentos aos temas discutidos em ambiente de corpos afiliados, filtrando com bom senso e sem censura, aqueles que fugissem ao escopo da pratica rosacruciana ortodoxa.
Lembro-me, na época que exerci o cargo de mestre do capítulo rosacruz da minha cidade, do desconforto do palestrante e de alguns membros quando, cumprindo apenas o protocolo, citei que a fala do palestrante não representava a opinião oficial da Ordem, sendo apenas a posição do palestrante.
Além de abrirmos nossas portas para estudos não necessariamente ligados aos nossos trabalhos, como por exemplo as revisões de graus, lidamos algumas vezes com a arrogância daqueles que não compactuam com o espírito de tolerância de nossa Ordem.
Isso infelizmente não é tudo.
Em tempos de crenças absurdas (como o medo infundado de vacinas, responsáveis pela melhoria da saúde e pelo aumento exponencial da população, ou do movimento que defende que a terra é plana, fazendo com que revirassem de revolta em seus túmulos Copérnico e Eratóstenes de Cirene, que entre os séculos III e II A.C. conseguiu estabelecer a circunferência do planeta com grande precisão), os membros de AMORC não estão imunes a este obscurantismo inexplicável em uma época aparentemente de tanto avanço tecnológico.
Tudo isso era, ao que parece, previsível, e Carl Sagan, antes de morrer em 1996, já alertava que nos encaminhávamos para um terrível paradoxo, que unia a ignorância do homem comum sobre os métodos e os conceitos científicos contemporâneos com a alta tecnologia que caracteriza nossa vida atual.
O homem moderno, como em outras épocas, tem medo. 
Medo da miséria material, do sofrimento e da morte.
Exatamente os três aspectos da existência que causaram forte impacto no jovem Sidarta Gautama, mais tarde conhecido como o Buda.
O problema é que mesmo que a sociedade goze de uma riqueza e um conforto que jamais conheceu, não extinguimos totalmente as disparidades sociais e econômicas, e bolsões de miséria e violência persistem, o que é hipervalorizado por espíritos intelectualmente pouco elaborados, que consideram a exceção como regra.
Os rosacruzes de AMORC são membros da sociedade e como disse, não estão isentos das dúvidas que assolam muitos espíritos, nem estão livres, magicamente, de vicissitudes do próprio carma, como a doença, o sofrimento, a dor.
Pessoas incultas ou imaturas creem em soluções fáceis e rápidas para problemas complexos. Pior: supõem que as técnicas, que hoje parecem simples, não foram objeto de dezenas ou centenas de anos de pesquisas, testes e verificações, e tratam-nas como uma desconfiança descabida.
Alguns rosacruzes também.
Assim, estes rosacruzes confundem o estudo da Magia com o “pensamento mágico”. Aceitam informações sem verificação e não são capazes de aplicar o Ceticismo Metodológico instituído como técnica de aquisição de conhecimento pelo Frater Renée Descartes. O esforço de Lewis, sua preocupação em destacar termos como “técnica”, “confiança na experimentação e verificação de resultados” em vez de fé cega, aos poucos de dilui.
Se lermos as monografias, alguns destes conceitos estão lá, mas agora ocultos, misturados com fortes componentes religiosos. Um sinal disso foi a mudança da primeira monografia do sexto grau de templo, que fazia referência ao Buda e que agora faz referência ao Cristo. Embora não haja dúvida de que o ministério de Jesus foi marcado principalmente pelos atos de cura, a função desta introdução era marcar a importância do equilíbrio para a perspectiva rosacruz de saúde, enquanto que ao citar o Cristo arranhamos perigosamente um dos três principais universos religiosos do ocidente, dando margem a interpretações equivocadas, como supor que a técnica rosacruz de terapia, esse legado tanto egípcio como essênio, possa ter alguma conotação de caráter religioso e não essencialmente técnico.
Cristãos talvez não vejam assim, mas a AMORC não é formada apenas por cristãos. Como sou hinduísta, vejo esta situação com muita clareza.
Não podemos, não devemos permitir que nosso corpo de conhecimento dê margem a equívocos interpretativos o que é facilitado pelo discurso que descuidadamente permite a confusão entre esoterismo e religião. Sendo como é o Cristo um personagem de enorme importância na história da espiritualidade, mas também base para várias linhas religiosas as mais díspares, a prudência deveria evitar usá-lo como símbolo de nosso sistema terapêutico.
O medo e a insegurança geram a busca por estabilidade e conforto psicológico, exatamente as duas coisas inexistentes na vida humana.
Estamos flutuando em cima de uma rocha suspensa no vazio do espaço. Nada me parece mais instável do que isso.
Por outro lado, fisicamente somos finitos, fadados ao gradual desgaste físico e ao envelhecimento, não só do nosso corpo, mas também de nossos entes queridos.
Veremos morrer quem amamos além de também morrermos, na carne. Não existe tal coisa como a estabilidade ou o conforto físico ou psicológico permanente.
Descartes dizia que “tudo o que o homem faz é em busca da felicidade”.
Discordo mais uma vez, pois na minha opinião tudo que buscamos é a serenidade, e não a felicidade.
A felicidade, como descrita, é estável; a serenidade, dinâmica.
A felicidade é polar, um dos pratos da balança; a serenidade é a própria balança.
É para esta vida tecnológica, insegura, instável e incerta que a ciência nos prepara. Ela nos ensina a conviver em paz com a incerteza, com a ignorância e com o fracasso, três das companhias mais constantes do cientista. Só os religiosos e os ignorantes têm certezas; cientistas vivem mergulhados na dúvida.
E isto os faz viver melhor.
O curioso é que esta dúvida, mãe da ciência e filha do conhecimento, é considerada um defeito por aqueles que tem dificuldade para pensar ou pensam com muita simplicidade.




ISAAC ASIMOV (1)


Como lembra Asimov na frase em epígrafe, o homem comum quer algo para se agarrar, alguma certeza, e a ciência lhe dá apenas “incerteza e insegurança”.
O místico moderno precisa recuperar o espírito alquímico, experimental, paciente, perseverante. Devemos, nós rosacruzes, deixarmos as igrejas e os templos e voltarmos aos laboratórios que abandonamos nas últimas décadas. É lá, nestes laboratórios, com um trabalho persistente e paciente que honraremos o todo poderoso, que prestaremos ao Deus de nosso coração, ao Deus de nossa compreensão nossa homenagem com nosso labor e oração.
O que caracteriza o rosacruz de AMORC não é sua fé em Deus e na espiritualidade, mas acima de tudo isso, o seu perfil de pesquisador do Oculto, de investigador minucioso e criterioso dos fenômenos naturais, porém incomuns, ligados as capacidades desconhecidas e por isso não desenvolvidas em todos os homens e mulheres da humanidade. Nós temos dons maravilhosos não manifestos, que em muito facilitariam nosso cotidiano se desenvolvidos fossem. Esse é nosso objetivo, como Ordem. Isso, não devemos ou podemos esquecer.
Muitos de nós pagaram com a vida seu amor a este conhecimento, a essa busca, como foi o caso de Cagliostro.
Muitos perderam a vida mesmo tendo este conhecimento, mostrando que ele apenas nos diferencia, mas não afasta de nós as atribulações do carma, como no caso de Lavoisier.
A vida dos homens e mulheres é instável e insegura pela própria natureza da sua fragilidade. Mesmo a existência da raça humana, como lembra o físico Marcelo Gleiser, é um fenômeno raro e delicado, que representa um acontecimento biológico a ser comemorado e preservado; mas segurança e conforto não é nossa característica.
Para usar uma frase comum na internet “tempos difíceis geram homens fortes, homens fortes geram tempos fáceis (confortáveis); tempos fáceis geram homens fracos.” É isso que estamos testemunhando, o surgimento de uma sociedade infantil, mentalmente preguiçosa e por isso, perigosamente obscurantista, olhando com desconfiança para a única razão pela qual atingimos este grau de conforto e civilização: a ciência.
Esta situação me faz lembrar do Faroeste americano.
O pistoleiro de maior fama era exatamente o maior prêmio dos pistoleiros menores. Quem matasse em duelo aquele que era o mais rápido, tornava-se o mais rápido. Atacar a ciência é demonstrar sua importância como referência, e mesmo os que a atacam gostam de usar expressões como “isto está provado” ou “isto é científico”.
Perigosos tempos os nossos, como de resto foram todas as épocas antes desta.
Nós, como rosacruzes, somos por definição “Portadores da Chama”, “Guardiões da Luz”. E de que Luz estamos falando? A luz do conhecimento.
Que nossas portas e mentes estejam sempre fechadas ao demônio do obscurantismo e da ignorância.
Como todos os demônios, ele tem uma fala macia e promete tesouros a quem lhe dá ouvidos.
Cuidado. Não existe prêmio para quem faz o Bem.
Servir à humanidade, e servir bem, já é a própria recompensa de quem serve.
Lembremos desta fala: “Acautelai-vos contra a Ignorância, ela é destruidora da Luz”.

(1) Isaac Asimov (em russo: Исаак Юдович Озимов; transl.:.: Isaak Yudavich Azimov; Petrovich, Russia Soviética, atual Russia, período entre 4 de outubro de 1919 e 2 de janeiro de 1920 — Brooklin , 6 de abril de 1992) foi um escritor e bioquímico americano, nascido na Russia, autor de obras de ficção científica e divulgação cientifica.

sábado, 21 de setembro de 2019

O USUÁRIO DO COMPUTADOR, O SOFTWARE E O HARDWARE.


Por Mario Sales





Os três ensaios sobre a visão espinozana (1º e 2º de 30 de junho e o 3º de 6 de setembro) das razões do comportamento emocional não foram suficientemente claros em suas assertivas e conceituações. Em parte, é bem verdade, por causa do que eu disse em “Palavras” (3 de agosto de 2019) “quando falamos, falamos com nossa própria boca. Os outros nos escutam com seus ouvidos”; por outro lado, entretanto, tudo pode ser dito sempre de modo mais claro.
No terceiro ensaio, eu deixei claro que a minha concordância com a visão atual, a qual vê inegáveis sinais do papel do instinto e do corpo em muitas das manifestações mentais não significa que eu tenha deixado de acreditar na existência de um “escafandrista” dentro do “escafandro”. Mente, para mim, não é o espírito, mas outro órgão de percepção do real, uma estrutura de intermediação entre nós e o que nos cerca, alimentada pelas demandas do corpo e usando o cérebro como estrutura, não de produção de ideias e pensamentos como hoje acreditamos, mas sim de recebimento e sublimação de impulsos corpóreos em processos mentais, como lembrava Schopenhauer, ou de transformação de percepções externas em conceitos e idéias, como postulou Immanuel Kant.
O cérebro não produz pensamentos, mas traduz em pensamentos as sensações que percebemos através dos sentidos, tanto fora do corpo, por exemplo através da visão e audição, como dentro do corpo, via medula espinhal. A função de transformação de idéias em impulsos mecânicos, realizada pela ação do sistema límbico sobre a neuro hipófise, e desta sobre o corpo pela adenohipófise, mostra um sentido do movimento de densificação em atitudes do que, antes, era apenas uma imagem ou desejo. Da mesma maneira, em sentido contrário, existem nervos aferentes que trazem até o cérebro o que antes foi a percepção de uma deficiência de potássio ou de hidratação, causando o irresistível desejo de consumir bananas ou de tomar água.
Uma outra imagem possível é supor o corpo, o hardware do “escafandro”, e a mente, o software, enquanto o escafandrista está por trás de ambos, indicando o rumo da pesquisa e da caminhada no fundo deste oceano material.
Embora posamos demonstrar a existência do escafandro de muitas maneiras, a presença de um escafandrista dentro dele segue indemonstrável, a ponto de supormos que tal coisa não exista.
A ausência do escafandrista não é a visão que eu abraço. Não é a minha crença.
Embora não possamos ainda individualizá-lo por completa falta de tecnologia para isso, o que somos em verdade está lá, dentro de nós.
Não é nosso cérebro portanto, complexo e sofisticado, que nos dá nossa condição de indivíduos, embora sem ele não pudéssemos, aqui, nesta dimensão, nos expressar adequadamente.
Existe o indivíduo sim, mas por detrás de todas estas estruturas, usando-as e às vezes confundindo-se com elas, cometendo equívocos que só podem ser evitados quando o conhecimento estabelece com alguma clareza os limites de cada parte deste conjunto que formamos com nossa mente e corpo.
A época em que estas coisas ficarão mais claras ainda não chegou, mas chegará. E talvez aí sim, possamos entender que estamos apenas vestindo este corpo, absolutamente fundamental à nossa experiência terrestre, mas não somos o corpo, assim como o escafandrista não é o escafandro, mas está nele, em uma relação de interdependência intensa, de tal forma que pode parecer que são uma coisa só.
E para o bem da experiência da en-carnação, ou “escafandrização”, é bom que seja dessa forma.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

CRENÇAS



Por Mario Sales





“Recapitulando: a Doutrina Secreta foi a religião universalmente difundida no mundo antigo e pré-histórico. As provas de sua difusão, os anais autênticos de sua história, uma série completa de documentos que demonstram o seu caráter e a sua presença em todos os países, juntamente com o ensinamento de seus grandes Adeptos, existem até hoje nas criptas secretas das bibliotecas pertencentes a Fraternidade Oculta.”

Doutrina Secreta, volume 1, Cosmogênese, pág 57, Ed Pensamento.

É preciso crer para o estudo esotérico. Não necessariamente saber, mas navegar em meio as informações que nos chegam de vários textos acerca de feitos extraordinários e pessoas incomuns que viveram e andaram neste planeta como nós andamos.
É comum lermos em textos considerados iniciáticos as expressões “isto prova…” ou “com isso demonstramos…” e outras, que visam dar um ar de credibilidade a estes mesmos textos, como se por um passe de mágica, afirmar passasse a ser provar.
Já comentei em relação a Isis sem Véu, um texto importante de Helena Petrovna, a ingenuidade presente em suas afirmações ao descrever como verdadeiros relatos de pessoas que, segundo ela, “gozam de reputação ilibada”, digamos assim.
Ou seja, naquele século, o XIX, ainda se considerava prova irrefutável não o que fosse demonstrado, mas o que fosse testemunhado por alguém que no consenso da sociedade tivesse uma reputação respeitável.
Eram outros tempos e o ceticismo cartesiano não tinha ainda ganhado a importância que recebeu no final do XIX e em todo o século XX. Ou por outra, o esoterismo ainda achava que a expressão provar podia ser usada de modo retórico, sem a necessidade de ser acompanhada da descrição do experimento ou expressão matemática que a sustentasse como tal.
Assim, nós, esoteristas, vivemos ingenuamente de crenças. Nos últimos séculos o exercício esotérico aproximou-se perigosamente da religião, tecendo lentamente um conjunto de afirmações que não são acompanhadas das necessárias e tão desejadas demonstrações que a maioria dos neófitos em escolas iniciáticas gostariam de ver.
Fala-se inclusive de um tipo de atitude que é considerada a mais adequada quem quer se aventurar neste campo, qual seja, “na ciência, ver para crer e no misticismo, crer para ver”.
Isso realmente me preocupa.
Este é o nosso maior pecado, enquanto místicos rosacruzes e esoteristas sinceros. Nossa erudição não vem acompanhada de um esforço determinado em criar as condições que permitam uma experiencia comum de fatos e conhecimentos palpáveis que sustentem nossas afirmações.
Lewis lembrava que a verdadeira prática rosacruz era baseada na confiança e não na fé, da mesma forma que “confiamos que o sol vai se levantar amanhã porque vimos este fenômeno acontecer em todos os outros dias de nossa existência.”
Lewis é e deve continuar a ser nossa referência contemporânea para sabermos o que é verdadeiramente rosacrucianismo. Quanto a este fato, suponho, deve existir um indiscutível consenso.
E se assim for, não são a fé ou as crenças que temos que devem guiar nosso comportamento e pensamento, mas a CONFIANÇA em experimentos que mostram que as técnicas rosacruzes funcionam.
Experimentos e fatos demonstráveis.
Sim, podemos sentir em nossos ossos que certos axiomas esotéricos são verdadeiros sem que tenhamos provas externas disto. Ato contínuo, no entanto, devemos ir em busca da demonstrabilidade desses axiomas, de experimentos que os comprovem e consolidem sua realidade.
Ciência é buscar tornar real aquilo que sentimos na alma que deve ser real. Antes que isto ocorra, no entanto, nossas crenças são, como o nome diz, apenas crenças, sem a sustentação dos fatos, o que não quer dizer que tenham menos valor para nós, mas que devemos cuidar com carinho e prudência e não querer arrogantemente que o mundo não iniciático aceite nossas afirmações sem ceticismo.
Em nome do bom rosacrucianismo, e considerando que Renée Descartes era membro de nossa ordem, o ceticismo cartesiano deveria estar primeiro em nós, e não naqueles que não são iniciados em nossa sublime fraternidade.
E o que vemos em nosso meio? Discutimos crenças, narrativas, somos estudantes não de fatos demonstráveis, mas de ideias.
Nada contra. Só que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.
Por isso é desperdício de tempo e pura retórica falar em diálogo com a ciência sem que tenhamos sério empenho em produzir condições experimentais que sejam passíveis de serem usadas nesse diálogo.
Da mesma forma que os rosacruzes não são obscurantistas ou contra a ciência, da mesma maneira a ciência não é contra nós.
O que ela espera, e nós deveríamos abraçar esta posição, é que apresentemos alguma coisa palpável, compartilhável, testemunhável por muitos, independente de nossa mera e simples fé.
A fé como conexão com o divino, no eixo vertical, pode e deve ser estimulada como uma virtude. Já no relacionamento estre pessoas, no eixo horizontal, deve ser substituída pelas ideias fundamentadas em fatos e demonstrações.
E se existem poderes verdadeiramente incomuns que sejam demonstrados e que abandonemos esta época das narrativas sem provas e passemos, finalmente, a um período de “contar e mostrar”, como se faz nas escolas primárias dos estados unidos.
Como a afirmação de que existem livros em cavernas secretas, em algum lugar inacessível do Himalaia. Ou que certas coisas não devem ser reveladas porque são extremamente perigosas “no atual estágio de evolução da humanidade”.
Sinceramente o homem sempre foi, e infelizmente por algum tempo ainda será um indivíduo perigoso, para outras espécies e para si mesmo, tendo ou não acesso a esses ditos “delicados conhecimentos ocultos”.
O conhecimento revelado, já disponível, é suficiente para realizar grandes estragos no tecido social e na civilização.
Pra terminar, tenho Fé que este texto seja profético, e que até aqueles que tem escondido coisas entendam que precisamos começar a revelá-las, precisamos compartilhar informações e fatos, pelo menos entre os chamados “iniciados”, já que nem entre estes últimos os fatos são uma mercadoria abundante.
Ciência não é opinião ou crença.
Ciência é conhecimento baseado em evidências.
Livros secretos e ocultos, que não podem ser lidos por ninguém, são absolutamente inúteis.
Da mesma forma que é inútil uma crença que não se sustenta em fatos.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

COMO LEMBRAVA ESPINOZA “O CORPO HUMANO É MAIS FORTE E MAIS POTENTE QUANTO MAIS RICAS E COMPLEXAS FOREM SUAS RELAÇÕES COM OUTROS CORPOS”. 3ª PARTE



por Mario Sales





Mandei os primeiros dois ensaios para alguns amigos para colher suas reações.
Foram as mais variadas.
Os mais ligados ao discurso científico destacaram a coerência do texto com a compreensão atual da neurociência. Os com formação científica tão sólida quanto espiritualista demonstraram um certo embaraço diante das propostas, que não poderiam em sã consciência contestar, mas que, embora não tenham dito de odo explicito, deixaram uma impressão incomoda materialista.
E finalmente, os de formação essencialmente espiritualista, disseram com todas as letras que um raciocínio peca por relegar os aspectos espirituais a um plano secundário ou mesmo inexistente.
O fato é que, no meu entusiasmo e paixão, esqueci de dizer que de forma alguma, nego a complexidade da alma, a sua existência, ou afirmo a preponderância do corpo sobre o espírito.
Minha concordância com Espinoza e com a visão neuro científica contemporânea advém de que, simplesmente, não posso desprezar o aperfeiçoamento de nossa compreensão dos mecanismos químicos e hormonais de nosso veículo de evolução, o corpo.  
A alma continua lá, intocável, em minha mente. Continuo a crer, rosacrucianamente, que somos uma alma com corpo e não um corpo com alma.
O que evidencio, entretanto, é que uma vez que melhore nossa compreensão de nosso mais importante instrumento, podemos da mesma maneira transcender uma serie de equívocos que fazem com que suponhamos nossos impulsos que são do corpo, ou que encaremos com embaraço e vergonha pensamentos absolutamente naturais considerando nossa condição peculiar de existência.
Em um ensaio antigo (O Mergulho) usei a metáfora do escafandro para o corpo. Compreender nosso escafandro pode ser vital a nossa sobrevivência no fundo do oceano da existência. Como o instrumento, o escafandro não pode ser considerado uma limitação, embora seja limitado. Ele nos possibilita a exploração das profundezas do mar como a roupa do astronauta o protege da falta de oxigênio no espaço. Da mesma forma o corpo precisa ser compreendido, não porque o espirito não importe, mas porque ele, corpo, importa tanto quanto a alma, já que, em termos de existência, um não sobreviveria sem o outro e a própria razão da existência, existir para aprender, seria inviabilizada.
Não me torno um espiritualista pior se me empenho em aumentar meu conhecimento sobre a natureza que nos envolve, e cuja manifestação mais próxima é nosso próprio corpo.
Munido dessas informações que o método cientifico acumula, ano após ano, eu posso compreender melhor minhas atitudes e, principalmente, olhar para mim mesmo com mais misericórdia, incapaz a partir daí de ter um viés moralista ou marcado pela culpa. Uma das frases mais interessantes de Spencer Lewis é aquela que diz “todos os instintos foram colocados em nós por Deus; portanto, todos os nossos instintos são santos”.
Conhecer o corpo, as razões do corpo, seus mecanismos, é entender suas motivações e as consequentes alterações que provoca em nossa mente e comportamento.
Muitas foram as escolas que lidaram com o comportamento humano; infelizmente todas limitadas por uma postura parcial do comportamento, ora compreendendo-o como somente uma consequência da biologia, ora supondo-o derivado apenas de opções espirituais e éticas, sem compreender que são universos interpenetrantes, que colhem um do outro energias e realizam uma condensação das mesmas em resultantes psicológicas e físicas, a um só tempo.
Uma importante geneticista brasileira usou em uma fala uma expressão que me causou grande impacto na época. Ela disse: “Genética não é destino.” De fato. Existe um genótipo sim, uma herança, que terá de dialogar, entretanto, com um fenótipo, com um ambiente e uma dada situação psicossocial, diálogo do qual resultará o individuo como o conhecemos.
Da mesma forma, pela própria natureza da relação íntima entre alma e corpo, nosso comportamento também será afetado tanto por nosso karma quanto por nossos movimentos bioquímicos que Espinoza tão brilhantemente antecipou e que a neurociência hoje evidencia.
Não são, no entanto, conhecimentos excludentes.
O autoconhecimento não é apenas de natureza espiritual. Conhecer o corpo para usar e relacionar-se melhor com o corpo é tão importante para o espírito quanto o estudo e o aprimoramento filosófico.
Por isso os yogues não falavam em apenas meditar, mas elaboraram uma serie de práticas físicas, respiratórias e digestivas na intenção de encontrar o equilíbrio entre o veículo e seu usuário.
A alma não é a mente, mas antes tem na mente a resultante dos processos eminentemente espirituais somados aos impulsos sublimados das demandas essencialmente orgânicas (fome, sede, desejo sexual, reflexo de defecação, frio, etc).
Nossa compreensão deste processo de relacionamento evolui século após século e embora intuamos muito de sua natureza, ainda estamos longe de compreendê-lo plenamente e usá-lo a nosso favor, sem transformar em culpa o que é legítimo ou em vergonha o que é , em princípio, santo, como lembrava Lewis.
Todo conhecimento que recusar um de nossos aspectos em detrimento do outro é falso e incompleto.
Precisamos integrar em um único tecido toda a realidade, o que alias sempre foi o sonho do nobre pensador holandês citado em epígrafe.



sábado, 3 de agosto de 2019

PALAVRAS



Por Mario Sales



Infelizmente quando falamos, falamos com nossa boca.
Os que nos ouvem, ouvem-nos com seus próprios ouvidos. Por causa desta simples constatação, não é possível uma comunicação sem equívocos, sem enganos, sem mal-entendidos.
As palavras são seres de comportamento instável.
Se estão sós, comportam-se através de suas significações.
Quando acompanhadas, assumem conotações que as modificam, as enriquecem e multiplicam seu sentido ou sentidos.
Nesse aspecto, palavras e pessoas são idênticas. As influências dos que nos circundam nos modificam e seria triste e lamentavelmente limitante não termos os outros para mudar nossas compreensões, desafiar nossos padrões, contestar nossas crenças.
Vivemos para modificar os outros, nos modificar e sermos modificados.
A modificação não é, necessariamente, evolução, mas toda evolução é, com certeza, uma mudança.
Portanto, se nos voltarmos para o papel do diálogo, do falar e do ouvir, da mesma maneira encontramos este confronto de contrastes entre narrativas, descrições, interpretações, que ao se encontrarem, aí sim, necessariamente se modificam e se adaptam.
Existe a nossa fala, na nossa privacidade, nos nossos solilóquios. E existe outra fala, a fala possível diante do outro, aquele que nos intimida ou inspira, que nos motiva ou constrange, se bem que, certas vezes o que nos inspira também nos embaraça ao mesmo tempo.
Esta é a descrição do complexo fenômeno do diálogo, que julgamos ingenuamente tão simples e que esconde sutilezas e mistérios tão profundos.
Somos incapazes de acompanhar em tempo real a alquimia dos sentidos da nossa fala e das nossas compreensões. E assim, diante do desconhecido, devemos nos recolher a nossa humildade e aceitar nossa incapacidade de manter sob controle todas as coisas que nos sucedem, ou que sucedem ao nosso discurso, à nossa fala.
Nossas palavras, uma vez pronunciadas, não são mais nossas; pertencem aos ouvidos de outros, das pessoas que nos ouviram e sabe lá o que e como compreenderam do que dissemos.
Imagine então nossas ideias, descritas por nossas palavras. O que sabem os outros de nossas crenças?
O que de fato conseguimos transmitir das imagens que vão em nossa mente, dos conceitos e valores que abraçamos?
Existe entre nós hinduístas uma prática chamada o ensinar pelo silêncio.
Certos mestres são capazes de ensinar apenas com sua presença, sem pronunciar qualquer som, qualquer silaba. Isso é belo e transcendente.
Quem sabe será o próximo passo da evolução? Quem sabe, no futuro, como os amantes e os apaixonados, saberemos o que vai no coração do outro sem necessidade de diálogos ou explicações, mas apenas pela percepção do olhar do outro, ou por uma contração na pele?
Isso, no entanto, dependerá de avançarmos no relacionamento entre todos nós, de forma a que nos amemos da mesma forma, todos nós, membros da raça humana.
E o amor, o verdadeiro, não é algo dado, mas uma conquista, uma mudança e uma evolução, a manifestação de um estado de refinamento que ainda não temos, mas tenho esperança, conheceremos um dia, todos nós, mergulhados neste contexto de relacionamentos.

domingo, 30 de junho de 2019

COMO LEMBRAVA ESPINOZA “O CORPO HUMANO É MAIS FORTE E MAIS POTENTE QUANTO MAIS RICAS E COMPLEXAS FOREM SUAS RELAÇÕES COM OUTROS CORPOS”. 2ª PARTE


por Mario Sales





Em “Amor para corajosos”, Pondé não analisa esses detalhes biológicos de que falei, mas traça, como filosofo, um perfil dos acontecimentos e comportamentos de pessoas vítimas da “doença do pensar”. Não tenta, corretamente, estabelecer as causas desse comportamento, mas apenas descrevê-lo, com sua característica objetividade e em capítulos marcados pela coloquialidade, com títulos como “O Amor pelas “novinhas: gosto mais de mim quando estou com ela” ou o divertido “Como saber se você é um canalha ou uma vagabunda”.
Ao longo de 188 páginas e 36 capítulos ou ensaios como ele diz, ele apenas descreve a miséria que nos impõe a fantasia do amor romântico, criação da literatura e do cinema americano até o início da segunda metade do século XX. Os fatos psicológicos e sociais não sustentam, segundo ele, a tese de que casa-se e vive-se com alguém por causa de um amor intenso, duradouro e eterno. Não que não possa acontecer, mas é mais raro, e por isso precioso, do que sonha nossa vã filosofia.



Existem vários motivos para uma relação durar muitos anos e sobreviver as rotinas e aos protocolos do afeto e necessariamente não estão ligadas a afetos positivos, como diria Espinosa.
Pode-se ficar com alguém apenas por um cálculo simples: a separação traz sempre graves prejuízos psicológicos e financeiros, fora as rupturas afetivas inerentes a esta situação.
Evitando-se o rompimento também consegue-se escapar de problemas sociais desagradáveis, que não deveriam, mas que tem grande impacto sim no nosso equilíbrio psicológico e bem-estar espiritual.
O discurso de que “eu não me importo com que os outros pensam” é mais frequente e menos sincero do que a maioria das pessoas gostariam de admitir.
A grande maioria das pessoas quer viver em paz, de preferência uma vida kantiana e não nietzschiano, como lembra Pondé.  Friedrich Nietzsche era um autor romântico e por isso via na vida audaciosa e apaixonada uma vida bem-sucedida.
O problema é suportar esta escolha com brio e satisfação porque tamanha liberdade tem um preço.
Se o indivíduo ou individua acha que pode e quer pagar este preço muito bem.
Isto, no entanto, não é o mais comum. Porque a coragem, como vimos na primeira parte, não foi distribuída pela natureza de modo equânime, entre todos os seres humanos. Pelo contrário, os covardes são a maioria, refletindo a primeira lei da vida biológica, a da autopreservação.
O medo que alimenta nossa covardia e hesitação em decidir por rupturas as vezes difíceis e que trariam grande e duradouro sofrimento por um lado, em busca de uma felicidade possivelmente passageira, mas atraente, é o mesmo medo que nos preserva de atitudes potencialmente auto destrutivas, como passar ferias no Afeganistão ou no Iraque sendo judeu ou entrar em um bairro violento tarde da noite, apenas para ver o que acontece.
Esse medo, esse receio, recebe o nome de prudência. Não é necessariamente algo errado ou certo, mas biologicamente é um reflexo correto, como coçar o lugar do corpo que foi picado, ou urinar quando se sente vontade.
A noção de que a vida melhora com o heroísmo e arroubos quixotescos é uma das nefastas consequências da visão romântica do mundo e das paixões.
Por isso o medo do amor cada vez maior, já que a população mundial hoje, graças aos recursos e facilidades tecnológicas consta, segundo o ponto de vista Freudiano, de pessoas histéricas e infantis.
Infantis no sentido de não aceitarem com facilidade os inevitáveis revezes da existência, o fracasso, a rejeição afetiva e a morte, o que revela um alto grau de imaturidade emocional, caso para psicoterapia, com certeza. E histéricas no sentido psiquiátrico da palavra[1], sendo hiper-reativas, sendo incapazes de ter, em uma palavra antiga, mas adequada, fleugma diante da desdita. Uma unha quebrada é motivo para desespero.
Lembrando épocas não tão distantes em que a água demandava dias de caminhada para ser conseguida e o alimento era escasso, o certo é que a nossa atual riqueza material (sim, mal distribuída, mas que nunca foi tão grande em nenhum período da história humana) é também a nossa maldição.
O conforto nos tornou fracos e manhosos.
E isso se reflete nos relacionamentos.
O amor e o relacionamento não são, pois, matéria para principiantes. Não falo de sexo, mas de todo o conjunto de situações que envolvem a intimidade, o relacionamento entre duas pessoas de sexo oposto. Como diz Pondé, não falo de assuntos homossexuais porque não os conheço. Só posso falar, como ele fala, da minha experiência como ser humano heterossexual, o que implica enfrentar as diferenças inerentes aos sexos. E isso não é fácil, muito menos prazeroso.
Lembremos de outra coisa. A beleza física passa, independente de nossa vontade, em outra demonstração da primazia do biológico sobre o psicológico. A perda das formas e as vezes da libido é algo duro de conviver. Envelhecer não era para os fracos, como lembra Rita Lee, cantora de rock septuagenária.
O que fazer com nosso desejo e com nossos relacionamentos? Pondé não responde porque não existe uma resposta para todos os casos.
Via de regra, a decisão é particular e pessoal, para além dos clichês de “canalha” ou “vagabunda”.
Pessoas são arrastadas pela paixão devido a inúmeras situações e nem sempre porque não tem caráter, mas sim porque tem instintos, sustentados pelas suas glândulas sexuais, endócrinas, colocadas ali pela natureza e não pela igreja ou pela sociedade.
Cada um deve assumir sua própria decisão, que não será tão livre como se pensa, já que o corpo tem suas próprias razões.
Sim, haverá consequências, mas que fazer?
Se agimos, sofremos.
Se não agimos, também sofreremos.
Só a experiencia pode nos auxiliar, já que o amor nunca é uma experiencia teórica, como Pondé lembra no início do livro com uma citação de Søren Kierkegaard: “O amor só se conhece pelos seus frutos”.
Portanto, antes de nos atirarmos a uma paixão é impossível saber se estamos mergulhando no inferno ou no paraíso. A experiência, a prudência, podem, no entanto, diminuir nossa taxa de erro e de dor, mesmo que nos arrisquemos a parecer covardes.
O importante é viver e viver é procurar relacionar-se com todo e qualquer tipo de pessoa, externamente, e da mesma forma, contemplar com serenidade e coragem todas as nossas emoções, internamente, sem censura.
Só por uma grande quantidade de encontros, podemos nos preparar para a existência.
Porque como lembrava Espinosa “o corpo humano (e a mente humana) são mais fortes e mais potentes quanto mais ricas e complexas forem suas relações com outros corpos”.
[1] A histeria (do francês hystérie e este, do grego ὑστέρα, "útero") faz referência a uma hipotética condição neurótica e psicopatológica, predominante essencialmente nas mulheres. O termo tem origem no termo médico grego hysterikos, que se referia a uma suposta condição médica peculiar a mulheres, causada por perturbações no útero, hystera em grego. O termo histeria foi utilizado por Hipócrates, que pensava que a causa da histeria fosse um movimento irregular de sangue do útero para o cérebro. Segundo a Psicanálise é uma neurose complexa caracterizada pela instabilidade emocional. Os conflitos interiores manifestam-se em sintomas físicos, como por exemplo, paralisia, cegueira, surdez, etc. Pessoas histéricas frequentemente perdem o autocontrole devido a um pânico extremo. Foi intensamente estudada por Charcot e Freud.

COMO LEMBRAVA ESPINOSA “O CORPO HUMANO É MAIS FORTE E MAIS POTENTE QUANTO MAIS RICAS E COMPLEXAS FOREM SUAS RELAÇÕES COM OUTROS CORPOS”.




por Mario Sales




“Desafiando seus pares, Espinosa recusou a concepção antropomórfica de deus, concebido como um “super-homem transcendente, monarca, juiz, legislador do mundo e dos homens”; inserindo a visão de deus enquanto “substância infinita” que “existe em si e por si mesmo” e sem a qual “nada existe e nem pode ser conhecimento”. Frente a esse princípio, ele se opôs à tradicional separação entre alma e corpo. Como os seres são expressões dessa substância infinita (deus), “a natureza física e a natureza psíquica se dão simultaneamente e não podem ser separadas, porque trata-se de campos de realidade que exprimem sempre a mesma substância”. Neste sentido, detalha a professora Chauí, “ideia e corpo são um só”, “exprimem a mesma coisa de maneiras diferentes” e produzem “regiões diferenciadas da realidade” (psíquica e física). Disso advém a premissa: “o corpo humano é mais forte e mais potente quanto mais ricas e complexas forem suas relações com outros corpos”.
O contrário também é válido: “o corpo humano é mais pobre e mais fraco quanto mais isolado se mantiver em relação a outros corpos. A inter-corporeidade [relação entre os corpos] é a condição da nossa força vital”, ensina Marilena. Isso posto, ela aponta que, segundo Espinosa, “quanto mais se mergulha no corpo, mais capacidade cognitiva a mente tem. E quanto mais apto o corpo, mais apta a mente estará para perceber as coisas”, daí o equívoco dos que defendem que o “conhecimento verdadeiro tem como pré-condição que a mente se afaste do corpo e opere no campo puramente intelectual”.
Marilena Chauí in https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Marilena-Chaui-Liberdade-e-afastar-as-paixoes-tristes-/4/36877



Só conheci realmente Espinosa no curso de graduação em Filosofia.
Antes, como era de meu costume, eu lia trechos aqui e ali da sua obra, me alimentava de citações esparsas, falava com outras pessoas na ânsia de que alguém soubesse mais do que eu sobre o assunto e assim se transformasse em meu mestre.
Eu buscava alguém disponível, um bom encontro, como o próprio Baruch diria; mas isso era apenas procrastinação.
Eu deveria ir à obra, ler a Ética, o Tratado Teológico Político, o Tratado sobre a Reforma do Entendimento, mas havia em mim uma ansiedade tão intensa que me paralisava. O que eu começava a estudar, a ler, me provocava o desejo do desenlace o que me cansava antes que eu concluísse dois terços da leitura.
Na época eu não entendia que se tratava de uma neurose, problemas ligados ao ambiente familiar com uma mãe vitima do que hoje se classifica de transtorno bipolar e que ficou sem diagnóstico por toda a vida, até que para tratar minha própria filha acabei descobrindo o nome da patologia que tinha me transtornado infância e adolescência.
Anos mais tarde, após a faculdade de Medicina e depois a de Filosofia, anos de Yoga e meditação e o auxílio de seis anos de terapia em Carl Rogers eu tinha resgatado pelo menos uma autonomia psicológica e intelectual que melhoraria pouco a pouco.
E talvez a coisa mais agradável deste processo de cura foi conseguir finalmente ler os pensadores que me fundamentaram a caminhada, que me mostraram que eu não estava só como supunha em minhas elucubrações e intuições e que, sim, mentes muito mais argutas e poderosas que a minha haviam chegado a conclusões semelhantes.
Espinosa foi um deles. Principalmente a Ética, escrita como ele dizia ao estilo de Descartes, com o mais cuidadoso rigor logico, na intenção de construir um documento irrefutável, estruturado e longe de ser um texto romântico acerca de crenças de um holandês sonhador.
Não. Espinosa quer com seus textos contrapor a visão analítica de Descartes, unir o que ele separou, mostrar a integridade do tecido do real, antecipando em quinhentos anos a moderna neuropsiquiatria.
Alma e corpo eram para ele não duas coisas separadas, mas uma única continuidade com densidades diferentes, interinfluenciáveis, como de fato hoje constatamos.
Bastariam os conhecimentos contemporâneos da neuroquímica das emoções para validar o que antes foi um exercício essencialmente racional e reflexivo.
Espinosa não foi apenas brilhante em suas colocações, mas assustadoramente avançado para sua época. A pobreza em que viveu e a simplicidade que marcaram sua existência mostram o poder de uma mente diferenciada.
Existe, entretanto, um debate ainda pendente.
O da falácia do livre arbítrio, este engenhoso conceito agostiniano que marcou e marca o comportamento e o pensamento humano.
Ainda hoje, com a força das evidencias que se acumulam sobre as razões biológicas das alterações de humor e de comportamento, supomos ter, sim, liberdade para decidir nossos atos, escolher opções ditas soberanas e que, na verdade, são motivadas por complexas reações bioquímicas que interagem com o meio ambiente, com as condições alimentares e respiratórias do indivíduo e até refletindo a intensidade de seus exercícios físicos.
Todas estas interações, caracteristicamente espinosanas, são as causas reais do pacifismo ou da agressividade, e até da crença ou do ceticismo. A construção do pensamento não é produto apenas da elaboração intelectual, mas sim do encontro entre estas reflexões mentais com as condições sociais e psicológicas, e espinosanamente falando, neuroquímicas, daquele que reflete.
E claro aí se insere, a meu ver, o desejo e a paixão.
No fenômeno do amor, manifestações hormonais e neuroquímicas são tão importantes quanto as chamadas projeções, transferências e contratransferências psicanalíticas.
A coragem, dita uma virtude; a determinação e a capacidade de concentração, ingenuamente supostas como produto de esforço e da vontade, pressupõem antes de tudo condições neurológicas capazes de permitir suas manifestações.
Não é fácil para um amante da música tornar-se um pianista. Ou para um ator aperfeiçoar sua performance. Demandará estudo e prática ininterruptas, por anos.
Porém existe a necessidade de, antes da prática, ter o indivíduo a potencialidade para praticar e a saúde neuroquímica para a perseverança.
Nenhuma mente que não seja minimamente saudável, nenhum cérebro minimamente competente pode realizar o mesmo que cérebros que trazem uma herança e um resultado biológico peculiar fadado ao sucesso. Esse determinismo biológico parece um retrocesso no conceito ético de responsabilidade humana pelos seus atos. Ledo engano. As pessoas continuam crescendo enquanto cometem seus enganos e equívocos, mas dentro da sua própria capacidade, dentro da sua escala própria de possibilidades.
As interações são dinâmicas e ininterruptas e ao erro, nas pessoas comuns, sucede a culpa e a vontade de corrigir, desde que estejamos falando de pessoas com amígdalas cerebrais normais. Pois naqueles em que este pequeno detalhe anatômico é minúsculo, quase imperceptível, não haverá possibilidade de caráter, culpa ou remorso pelo erro.




Estamos no campo da psicopatia, do assassino frio e sem possibilidade de reabilitação. Pessoas capazes de tanto mal que melhor seria se não tivessem nascido.
Portanto, antes de falarmos das virtudes do esforço, da importância do esclarecimento através da leitura e do estudo, lembremos que os mecanismos físicos por trás do comportamento influenciam decisivamente os afetos, como Espinosa chamava, e esses, por sua vez, moldam o comportamento ou a estratégia do uso do saber e do intelecto.
Do mesmo modo são influenciados nossos sentimentos e o modo como os administramos.
De há muito sabemos que não é a técnica ou a ciência que nos transforma em pessoas melhores, mas a qualidade de nossa saúde mental e de nossos afetos.
Espinosa falava em afetos ativos e passivos (paixões) que marcam a vida de grande parte da humanidade, dizendo que “Por afeto compreende-se as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída”. Ele supunha que todo encontro, todo evento de contato entre o ser e outro ser ou o mundo trazia um aspecto positivo ou negativo. Se eu recebo um beijo, trata-se de um encontro gerando um afeto positivo, que aumenta minha potência. Se tropeço e machuco meu pé em uma pedra, trata-se de um encontro de aspecto negativo, que diminui minha potência.
Talvez a sua falha, que seria, quem poderia imaginar, enriquecida e aperfeiçoada por Schopenhauer, tenha sido supor os encontros como algo sempre externo ao ser, quando, pela brilhante ideia schopenhaueriana de sublimação das demandas do corpo, percebemos graças ao filosofo alemão que também temos encontros internos entre os aspectos físico(químicos) e mental(pensamentos, emoções, desejos) da substancia contínua espinosana, nos quais as percepções mentais são apenas o reflexo de situações biológicas como o pesadelo daquele que dorme com fome, ou o sonho com rios e mar daquele que bebeu líquidos demais antes de dormir e sente durante o sono a bexiga pedindo atenção.
Mas estes são exemplos banais e mecânicos ainda.
Minha tese e de alguns neurocientistas é de que até o que chamamos opções não são mais do que comandos do corpo sobre a mente, que acontecem milésimos de segundos antes de alguém pensar em fazer alguma coisa, a clássica vontade.
Sempre se supôs que o ser desejava e depois ia em busca do desejo. Ao que parece o corpo deseja, lança um estímulo para a mente que então elabora um estado de desejo e um objeto deste desejo para aí sim, o corpo partir para a ação de ir em busca do desejado.
Pelo jeito não escolhemos nem quem amamos, mas amamos aqueles que nosso corpo e mente nos ordena desejar e amar.
Muita calma nessa hora. Não é reprimir-se perceber esse jogo de espelhos e pisar no freio da paixão para ponderar as consequências de um arroubo inesperado.
Porque os estados de paixão e desejo de natureza sexual e romântica passam, como uma virose.
Mesmo os medievais, como lembra Pondé[1] em “Amor para Corajosos” (Planeta, 2017) já chamavam a paixão de “maladie de pensée”, uma doença do pensar, ou melhor, simplesmente uma doença, “páthos”.
Foi seu livro que me motivou estas reflexões.
Continuaremos esta análise em outro ensaio.



[1] Luiz Felipe de Cerqueira e Silva Pondé (Recife, 1959) é um filósofo e escritor brasileiro, doutor em filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e com pós-doutorado pela Universidade de Tel Aviv, em Israel. Escreveu, dentre outras obras, o Guia Politicamente Incorreto da Filosofia e Marketing existencial. É colunista da Folha de S. Paulo, escrevendo semanalmente no jornal.


domingo, 9 de junho de 2019

UM APELO AO BOM SENSO



“Não basta delirar e achar que está filosofando”
Luis Roberto Salinas Fortes,
professor de filosofia da USP,
citado por Mario Sergio Cortella em
“Filosofia, e nós com isso?”, 2019


“Diz o teólogo: Um filosofo é parecido com um cego 
procurando em um quarto escuro um gato preto que não está lá. 
E o Filósofo refuta: Sim, pode ser, mas com certeza um 
Teólogo teria achado esse gato”
Julian Huxley, biólogo e pensador britânico, em “O Homem no mundo Moderno”






Esta é a frase por excelência, que resume toda a minha angústia como ouvinte de discursos os mais absurdos, os mais fantasiosos, porém relatados com uma calma e suavidade que supõe serenidade na insensatez, equilíbrio onde existe apenas loucura.
"Não basta delirar e achar que está filosofando". Da mesma maneira "não basta delirar e achar que é um mistico". Todos temos que pensar com lucidez.Pensar com lucidez, com Luz, exige cuidado, método, embasamento. “São demais os perigos desta vida para quem tem paixão” dizia o poeta. A razão precisa fazer o balanceamento da equação, seja aonde for que se faça necessária. Mesmo na Arte, que não prescinde do coração e do instinto para manifestar a beleza, a razão ali está no método, na combinação das cores de um quadro, nos contornos de uma escultura ou na harmonia ou desarmonia dos sons de uma composição.
Portanto não me venham dizer que “eu prefiro ser essa metamorfose ambulante”. Isso, na verdade, é apenas o Caos e a preguiça de estabelecer padrões de pensamento, que não vão engessar o raciocínio e a percepção, mas construirão, isso sim, a habilidade de recolher com mais habilidade e eficácia as imagens, os sons e os estímulos com os quais a realidade nos presenteia todos os dias, horas e minutos.
Se eu conheço as notas musicais e sei tocar um instrumento, representarei a beleza das águas em um rio, ou das florestas a minha volta em uma linda sinfonia, como fez Beethoven ou o nosso saudoso Vila. Mas se não tenho este conhecimento, este domínio da técnica musical, mas domino a habilidade da pintura, serei capaz não só de tentar reproduzir o que contemplo e eternizar aquele momento, aquele por de sol, aquelas montanhas, aquela mulher, transformando-os, todos , em estímulo e inspiração para os que vierem a contemplar meu trabalho.
A “metamorfose” em movimento não é a oscilação de posições ao sabor das emoções momentâneas e fugidias. Um indivíduo equilibrado deve ter, sim, princípios que o guiem na caminhada da vida. Não se constrói uma personalidade apoiado na Doxa, a opinião descompromissada com o real, a filha do Achismo, mas sim com a ajuda da Episteme, o conhecimento fundamentado na experiencia ou na matemática, ou em ambos de preferência. Tudo deve ser testado e verificado.
Toda declaração deve ser averiguada quanto a sua confiabilidade. E se aquele que a fornece é um indivíduo equilibrado, terá não só presteza, mas também prazer em apresentar seus argumentos e suas evidências.
Só o tolo se ofende com a crítica e o questionamento. Só o tirano e o estúpido não podem ser contestados, sem que isso pareça uma agressão de quem pergunta.
O homem do conhecimento, o filosofo, o cientista, e mesmo o místico mostrará satisfação em ser indagado, estímulo em que o interroguem, expressando sua noção de que só é útil aquele que pode servir a alguém ou ao grupo que pertença. Lembrando a frase do “Venerável Beda”, o monge britânico do século VIII, também lembrado por Cortella em seu texto, “há três caminhos para o fracasso: não ensinar o que se sabe, não praticar o que se ensina; não perguntar o que se ignora.”
E para ensinar é preciso saber, de modo seguro e fundamentado, aquilo que se sabe.
Ninguém, em sã consciência, passaria uma virose altamente mortal sabendo-se transmissor de tal mal. Da mesma maneira, nenhum ser humano de boa índole passaria adiante informações sem fundamentação, sem confiabilidade, reservando àqueles que deseja servir o conhecimento de excelência, aquele que resistiu ao teste dos séculos, sobre o qual repousam a cultura e o gênio de tantos homens e mulheres que trabalharam de modo obstinado para construí-lo.
Nenhum de nós, homens e mulheres de boa vontade, tem permissão para chamar o delírio, puro e simples, de conhecimento ou arte.
Temos o compromisso de analisar e aperfeiçoar o que foi recebido, melhorando nosso conhecimento a partir do ponto em que nossos ancestrais foram interrompidos, pela morte física ou pela incapacidade mental.
E isto vale para artistas, cientistas, filósofos e místicos.
Sem distinção.

domingo, 5 de maio de 2019

CONSIDERAÇÕES SOBRE SER RIDÍCULO


por Mario Sales







POEMA EM LINHA RETA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


Fernando Pessoa , Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática. 1944 (imp. 1993). p. 312.



Falamos dos nossos embaraços como se fossem experiências raras e por isso, desconcertantes. Como se a maioria de nossos atos e falas fossem coerentes e adequadas.
Pensando bem, pelo menos no meu caso, estou sempre cometendo gafes e equívocos.
Sexagenário que sou, ainda gaguejo diante de certas falas, ainda me sinto inseguro diante de certos desafios. E estou sendo vago e impreciso por vergonha de dar detalhes sobre minha própria e ridícula vida.
Afinal, todos somos vítimas das nossas próprias fantasias, das nossas crenças pessoais sobre o quanto somos belos, atraentes, sábios, justos, elegantes. Levados por nossa vaidade e ausência de discernimento, temos idéias pessoais acerca de nós mesmos exageradamente positivas, e não entendemos como outros não conseguem, a não ser por má vontade ou inveja, ver o quanto somos dignos, espiritualizados, cultos e, além disso, possuidores de um corpo belo e sexualmente atraente.
Talvez não exista, entretanto, área do comportamento onde sejamos mais vítimas do autoengano do que no discurso, na fala. Se somos capazes de nos enganarmos ao contemplar o mundo e a nós mesmos, imagine quando narramos a descrição deste mesmo mundo a nossa volta.
Pensamos, quase sempre, que dissemos o que deveríamos ter dito, que fomos compreendidos da maneira como desejávamos ser entendidos.
Os diálogos de que participamos são para nós absolutamente satisfatórios, e nossos interlocutores, na nossa nada humilde concepção, entenderam com certeza aquilo que queríamos dizer ou insinuar.
Via de regra, só percebemos tardiamente, a posteriori, o quão ridículos e imprecisos fomos em nossas palavras e silêncios. E nesses raros momentos de iluminação e consciência, percebemos que o momento adequado para dizer o que se queria dizer já está no passado, perdido na linha do tempo. Não há como voltar, nem como corrigir. Ser ou parecer ridículo é um evento irreparável, fica como uma nódoa histórica preservada, exatamente na memória das pessoas as quais não desejaríamos que guardassem de nós quaisquer lembranças desagradáveis, desabonadoras.
Até agora, falei apenas das relações sociais.
Não me ative a área de alta periculosidade do afeto, dos sentimentos. E se, sem amar, somos tolos, amando somos ainda mais tolos e estabanados.
Toda nossa elegância e equilíbrio se desfazem, como areia no vento. Difícil é saber o que é mais doloroso: a frustração de não se conseguir falar ou calar o que se quer na presença do ser desejado ou o desgosto de se ter dito o que se disse, ou se deixou de dizer. E aí, o tempo segue seu rumo, e o momento passa, a janela se fecha, e mais uma decepção vai para nosso depósito de fracassos.
Fracassos que, como lembra Fernando Pessoa, só ocorrem conosco, pois aparentemente “todas as outras pessoas são príncipes” ou princesas, enquanto que a nós sobra o papel de bobos da corte oficiais e permanentes.
De tal forma que textos como esse, que se destinam a discutir a banalidade da existência e das nossas existências, são rejeitados como manifestações particulares e estranhas que não correspondem a vida da grande maioria dos leitores, já que “nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.”
E se houver sentimento envolvido, então, tudo piora, pois “poderão as mulheres não os terem amado, podem ter sido traídos - mas ridículos nunca! E eu, (desorientado pelo sentimento) que tenho sido ridículo sem ter sido traído, como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que venho sido vil, literalmente vil, vil no sentido mesquinho e infame da vileza?”