Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

COMO LEMBRAVA ESPINOZA “O CORPO HUMANO É MAIS FORTE E MAIS POTENTE QUANTO MAIS RICAS E COMPLEXAS FOREM SUAS RELAÇÕES COM OUTROS CORPOS”. 3ª PARTE



por Mario Sales





Mandei os primeiros dois ensaios para alguns amigos para colher suas reações.
Foram as mais variadas.
Os mais ligados ao discurso científico destacaram a coerência do texto com a compreensão atual da neurociência. Os com formação científica tão sólida quanto espiritualista demonstraram um certo embaraço diante das propostas, que não poderiam em sã consciência contestar, mas que, embora não tenham dito de odo explicito, deixaram uma impressão incomoda materialista.
E finalmente, os de formação essencialmente espiritualista, disseram com todas as letras que um raciocínio peca por relegar os aspectos espirituais a um plano secundário ou mesmo inexistente.
O fato é que, no meu entusiasmo e paixão, esqueci de dizer que de forma alguma, nego a complexidade da alma, a sua existência, ou afirmo a preponderância do corpo sobre o espírito.
Minha concordância com Espinoza e com a visão neuro científica contemporânea advém de que, simplesmente, não posso desprezar o aperfeiçoamento de nossa compreensão dos mecanismos químicos e hormonais de nosso veículo de evolução, o corpo.  
A alma continua lá, intocável, em minha mente. Continuo a crer, rosacrucianamente, que somos uma alma com corpo e não um corpo com alma.
O que evidencio, entretanto, é que uma vez que melhore nossa compreensão de nosso mais importante instrumento, podemos da mesma maneira transcender uma serie de equívocos que fazem com que suponhamos nossos impulsos que são do corpo, ou que encaremos com embaraço e vergonha pensamentos absolutamente naturais considerando nossa condição peculiar de existência.
Em um ensaio antigo (O Mergulho) usei a metáfora do escafandro para o corpo. Compreender nosso escafandro pode ser vital a nossa sobrevivência no fundo do oceano da existência. Como o instrumento, o escafandro não pode ser considerado uma limitação, embora seja limitado. Ele nos possibilita a exploração das profundezas do mar como a roupa do astronauta o protege da falta de oxigênio no espaço. Da mesma forma o corpo precisa ser compreendido, não porque o espirito não importe, mas porque ele, corpo, importa tanto quanto a alma, já que, em termos de existência, um não sobreviveria sem o outro e a própria razão da existência, existir para aprender, seria inviabilizada.
Não me torno um espiritualista pior se me empenho em aumentar meu conhecimento sobre a natureza que nos envolve, e cuja manifestação mais próxima é nosso próprio corpo.
Munido dessas informações que o método cientifico acumula, ano após ano, eu posso compreender melhor minhas atitudes e, principalmente, olhar para mim mesmo com mais misericórdia, incapaz a partir daí de ter um viés moralista ou marcado pela culpa. Uma das frases mais interessantes de Spencer Lewis é aquela que diz “todos os instintos foram colocados em nós por Deus; portanto, todos os nossos instintos são santos”.
Conhecer o corpo, as razões do corpo, seus mecanismos, é entender suas motivações e as consequentes alterações que provoca em nossa mente e comportamento.
Muitas foram as escolas que lidaram com o comportamento humano; infelizmente todas limitadas por uma postura parcial do comportamento, ora compreendendo-o como somente uma consequência da biologia, ora supondo-o derivado apenas de opções espirituais e éticas, sem compreender que são universos interpenetrantes, que colhem um do outro energias e realizam uma condensação das mesmas em resultantes psicológicas e físicas, a um só tempo.
Uma importante geneticista brasileira usou em uma fala uma expressão que me causou grande impacto na época. Ela disse: “Genética não é destino.” De fato. Existe um genótipo sim, uma herança, que terá de dialogar, entretanto, com um fenótipo, com um ambiente e uma dada situação psicossocial, diálogo do qual resultará o individuo como o conhecemos.
Da mesma forma, pela própria natureza da relação íntima entre alma e corpo, nosso comportamento também será afetado tanto por nosso karma quanto por nossos movimentos bioquímicos que Espinoza tão brilhantemente antecipou e que a neurociência hoje evidencia.
Não são, no entanto, conhecimentos excludentes.
O autoconhecimento não é apenas de natureza espiritual. Conhecer o corpo para usar e relacionar-se melhor com o corpo é tão importante para o espírito quanto o estudo e o aprimoramento filosófico.
Por isso os yogues não falavam em apenas meditar, mas elaboraram uma serie de práticas físicas, respiratórias e digestivas na intenção de encontrar o equilíbrio entre o veículo e seu usuário.
A alma não é a mente, mas antes tem na mente a resultante dos processos eminentemente espirituais somados aos impulsos sublimados das demandas essencialmente orgânicas (fome, sede, desejo sexual, reflexo de defecação, frio, etc).
Nossa compreensão deste processo de relacionamento evolui século após século e embora intuamos muito de sua natureza, ainda estamos longe de compreendê-lo plenamente e usá-lo a nosso favor, sem transformar em culpa o que é legítimo ou em vergonha o que é , em princípio, santo, como lembrava Lewis.
Todo conhecimento que recusar um de nossos aspectos em detrimento do outro é falso e incompleto.
Precisamos integrar em um único tecido toda a realidade, o que alias sempre foi o sonho do nobre pensador holandês citado em epígrafe.



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