Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

O ESCULTOR


Início do Outono de 2009



PREFÁCIO


“Nada mais degradante do que as contínuas preocupações com os meios de subsistência. As pessoas que desprezam o dinheiro só me inspiram desdém. São hipócritas ou idiotas. O dinheiro é como que um sexto sentido, sem o qual não podemos usar de modo completo os outros cinco. Sem uma renda decente, metade das possibilidades da vida ficam perdidas para nós. O único cuidado que se deve tomar é não pagar mais de um xelim pelo xelim que se ganha. Há quem diga que a pobreza é o melhor aguilhão para o artista. Esses nunca lhe sentiram a ponta nas carnes. Não imaginam o quanto a pobreza rebaixa. Expõe-nos a humilhações sem fim, corta-nos as asas, corrói-nos a alma como um cancro. Não é riqueza o que se pede, mas o necessário para manter-se a dignidade, para trabalhar sem embaraços, ser generoso, franco e independente”


(Diálogo entre dois artistas plásticos. O primeiro, jovem, inseguro em relação ao seu talento. O segundo, mais velho e prestigiado, é quem está falando.)


Somerset Maugham em Servidão Humana










Antes de começar a falar sobre o trabalho de um artista é preciso que se saiba pelo menos quanto custa um pincel, a tinta de um quadro, uma resma de papel para um poeta ou o preço de um cinzel ou da lixadeira do escultor.


É no mínimo falso supor que a arte é produto de um estado de percepção anormal e que todos os artistas deliram em seus ateliês ou estúdios, distantes do comum dos mortais.


O processo artístico é um dos campos de atividade humana e, portanto, feito por seres humanos, como eu e você que me lê, pessoas com problemas materiais e psicológicos como qualquer pessoa comum.


Sua arte será seu instrumento de intervenção neste mundo que o cerca, do qual ele faz parte e o qual almeja tocar.


Sim é verdade o que Nietzsche diz : “algumas pessoas já nascem póstumas”, mas o que ele não disse é que isto não é voluntário.


Pois em sã consciência, nenhum homem produz beleza para ocultá-la, mas sim para mostrá-la e vê-la admirada, pois o outro alimento do artista, além do pão, é o aplauso.


Todos queremos seduzir, como lembra Foucault, e o artista almeja fazê-lo através de sua arte.


Se isto não ocorre, grande será seu sofrimento, dada sua enorme sensibilidade, pois tudo aquilo que ele consegue captar e que ele expressa em seus quadros, textos, música ou escultura, será conhecidos por muitos poucos os quais nem sempre serão a melhor platéia.


Não se trata de vaidade, se bem que todos aqueles que se orgulham de seu trabalho gostariam de ser reconhecidos por ele.


Trata-se de fluxo, pois o artista precisa dar o que recebe a alguém. Ele é apenas um amplificador por onde ecoam os sons da criação e, claro, o som que se produz tem um objetivo: chegar ao ouvido do maior número de pessoas.


Quando este reverbera no silencio de uma caverna vazia ou se perde no deserto, a sensação de frustração é inevitável.


E embora a beleza, para ser produzida, muitas vezes dependa do silêncio e da solidão, ela não é senão uma dádiva para a sociedade e o artista seu portador, como um mensageiro das musas.


Ele intermedeia o encontro entre o que é invisível e o visível, entre o mundo da beleza e o mundo das formas materiais, sólido, no qual os pés do mensageiro estão apoiados.


Seu corpo é seu instrumento mais precioso porque é através dele, seu cérebro, seus braços, seus ouvidos, que ele faz a alquimia estética íntima dos acordes universais e os transmuta em algo perceptível, palpável, em resumo, transforma uma percepção pessoal em uma sensação coletiva.


Ele vive em seu corpo, trabalha dentro de seu corpo, portanto necessita deste corpo para produzir a beleza que constrói ou ajuda a desvendar aos olhos menos elaborados.


Portanto, a arte não é nem nunca foi descolada da materialidade do humano e por isso, toda fantasia sobre a importância do sofrimento e da miséria na elaboração da beleza é falsa e disparatada e só atende aos valores de uma religião sabotada em sua pureza por interesses políticos os mais devassos e que pregou por séculos que a pobreza era um caminho de salvação.


A única filha da miséria material é a indignidade.


E pessoas em condições indignas e com grande sensibilidade, tendem a enlouquecer.


Nesta equação não há equilíbrio entre seus componentes.


O motor da criação artística é a inspiração que uns tem e outros não, por motivos kármicos, genéticos, ou ambos, e não a pobreza ou riqueza material.


Artistas precisam comer, beber, dormir.


E criarão melhor se tiverem condições materiais adequadas para tal.


É disso que trata este texto. O equilíbrio. A pedra gerando reflexões espirituais e psicológicas; as reflexões levando a melhora da escultura, dando-lhe contornos mais suaves, mais suaves.


Este equilíbrio também depende de talento artístico.


Não é produto de um intelecto elaborado, mas de um espírito sensível ou amadurecido, como o velho artista que conversa com o jovem artista no texto em epígrafe, retirado do Livro de Somerset Maugham. Queira Deus que todos nós possamos ter a mesma maturidade para dar a nossas vidas um balanço equilibrado, entre as coisas do céu e da terra, como está representado na estrela de Salomão.


Suzano, 7 de abril de 2009






Capítulo 1


O Atelier






É outono, já, e os dias se tornam mais amenos no hemisfério sul do planeta.


Para aqueles que apreciam a luz e suas variações, os céus de outono têm muito a revelar em nuances de claridade e cor.


Talvez o Sol mais distante nos traga uma luz mais fria, mais racional, e isto inspire o raciocínio e a calma.


Se bem que a arte necessita da paixão, ela necessita também da estabilidade que garante a possibilidade de expressão da instabilidade estética, como um vulcão que garante o espetáculo de sua erupção pela forma de sua boca que canaliza o caos da lava quente por seu diâmetro.


A arte é a loucura expressa na razão, na forma, na linha que tenta traçar o invisível, que procura dar visibilidade ao imaterial.


A pedra, que libertará eventualmente a beleza, antes do início da obra e do trabalho artístico de lapidação é apenas caos e potencial.


Lá, para os olhos dos não iniciados, não existe nada, apenas uma condição amorfa, que deverá pela mão do artesão, revelar contornos absolutamente inesperados.


Para o artista, no entanto, trata-se apenas de desbastar o excesso, pois em sua mente a obra já está pronta.


Suas mãos são as chamas desta forja criativa.


O fogo da criação brota da mão do artista e incendeia a matéria à sua frente, guiado pela sua sensibilidade, como a boca do Dragão dirige o jato para onde a Besta desejar.


Isto é força, canalizada com sabedoria, na busca da beleza.


E para que a sabedoria possa brotar necessário se faz o silêncio, matéria prima do artista.


O som do cinzel ferindo o mármore não deve competir com qualquer outro som, para que cada ruído possa traduzir e expressar a voz interior do artista.














O silêncio.


Este é o material mais abundante neste salão branco, amplo, com janelas grandes e generosas com a luz do sol outonal, a Luz fria da Razão.


Poucos são os móveis dispostos aleatoriamente no ambiente.


Um sofá de couro branco, de três lugares, em um canto, coberto com uma manta xadrez, jogada displicentemente sobre ele.


Uma poltrona pequena, mas confortável, em frente a pedra.


Uma pia com dois ou três copos em outro canto, com uma mesa pequena em frente a ela com duas cadeiras, coberta por uma toalha vermelha.


Sobre a mesa pão, uma peça de queijo já parcialmente consumida, e uma garrafa de vinho.


Ao centro, imponente, um monolito de mármore, paralelepepidal, mas ainda em condições rústicas, com aproximadamente 2 metros de altura, apoiado em um platô baixo de madeira.


O teto não tem forro e o telhado é aparente, com os caibros tratados e envernizados, com algumas telhas de vidro deixando a luz entrar pelo alto, e aumentando a luminosidade do ambiente.


Do local têm-se uma vista privilegiada da natureza em volta da casa, localizada em uma encosta, de frente para o mar.


Este é o ambiente em que o dragão do bem lançará suas chamas transformadoras sobre a peça de mármore, imóvel, ainda inocente do destino que lhe aguarda.


O monolito, resignado, aguarda a iminente transformação, a qual cursará com desgaste, e com perda de substância.


É uma pedra. Daí não se poder falar em dor. Mesmo assim serão mudanças drásticas e baseadas em traumas.


Ao final, serão as marcas destes traumas, exatamente elas, que darão a antiga pedra um aspecto estético mais elaborado.


Sem os golpes do martelo e do cinzel, a peça de arte não surgirá, a harmonia não brotará.


Imóvel, ela aguardará que o artista esteja satisfeito.


Dos movimentos iniciais mais bruscos até o acabamento, levará tempo, o tempo que for necessário para a transformação, que ocorrerá pouco a pouco, dia após dia.


O que nos leva a conclusão de que a beleza, para ser alcançada, precisa de força, determinação e tempo. Tudo testemunhado apenas e tão somente pelo silêncio do atelier, o templo desta transformação.










O artista, no entanto, está quieto.


Sentado na poltrona colocada estrategicamente em frente ao mármore, ele apenas observa a pedra, degustando sua imagem, saboreando sua imobilidade e a luz que se derrama oblíqua sobre ela.


A pedra assim exposta, nua, não cora.


Não percebe o olhar do artista nem a profundidade com que ele a penetra.


Ou por outra, reflete-o. Pois a obra e o criador são, na verdade, pólos e imagens especulares um do outro. Não podemos criar uma beleza que não esteja já em nós.


O mundo é nosso reflexo; mais que isto: nosso mundo nos reflete e duplica.


Um pensamento, uma realidade; outro pensamento, outra realidade, complementar ou antagônica, sinérgica ou neutralizante da anterior.


Se neutralizante, nem conseguimos saber de nossa obra, abortada por pensamentos antagônicos entre si.


Só quando acumulamos condições mentais sinérgicas entre si suficientes, pelo tempo suficiente, teremos energia em qualidade e quantidade adequada a materialização do que é denso.


A coisa sólida só pode ter existência se possuir suficiente estabilidade.


Assim, criamos aquilo que somos, pois isto que realmente somos é mais que uma impressão, é um modo consolidado de ver o mundo, uma perspectiva peculiar das coisas que temos, e que não é alterada com muita facilidade.


Tais transformações peculiares de percepção pessoal acontecem unicamente por dois modos : lentamente, pelo tempo, que consolida novas estruturas que mostraram a constância necessária a manifestar-se; e rapidamente, pelo trauma, que enterra fundo em nosso ser um conceito, com a lâmina da emoção, que rasga a pele de qualquer resistência que ensaiemos diante dos acontecimentos que desfilam ante nossos olhos.


Não são fáceis e tranqüilas as mudanças fundamentais.


Só um cinzel e um malho psicológicos podem nos desbastar adequadamente porque como o mármore, nosso material psíquico também não é flexível.






Foi assim, fazendo considerações sobre as transformações que provocaria em si e no mármore que o artista ficou ali, deixando a tarde entrar, passear pelo ateliê e por dentro dele mesmo, consolidando dentro de si as formas que gostaria de ver naquela pedra inocente, cheia de possibilidades, mas que gerará apenas uma delas, aquela que lograr conseguir mais atenção de todas as imagens que desfilarem por sua cabeça, enquanto o sol morre lá fora.


Contemplar assim, cuidadosamente, o objeto, é permitir que o próprio objeto fale, que diga o que deseja de nossas mãos.


Assim o artista espera, em sua poltrona, que o mármore lhe diga como quer ser transformado.


Pedras falam muito devagar.


Por isso é necessário paciência, dias se necessário antes do primeiro golpe, antes do primeiro corte.


Pois quando este for dado, a obra já estará pronta mental e fisicamente, dentro da mente do artista, do artesão.






No atelier a Luz dança nas paredes de variadas maneiras, com múltiplos estilos, numa velocidade constante, com perfeita noção de ritmo.


O Escultor, quieto em sua poltrona contempla este espetáculo de música silenciosa, harmonizando-se com este ritmo, enquanto se harmoniza com a pedra. O Mármore, o homem que o contempla,e a luz mesma que permite a contemplação, aos poucos se tornam um.


Quando isto acontecer a obra poderá começar.


Os três pontos de um sagrado triângulo estarão preenchidos.


Só então a manifestação tornar-se-á possível.


A noite chega.


O artista, extenuado, vai repousar e aguardar que a luz retorne para que possa reiniciar seu exercício.






O trabalho, por hoje, acabou.




Capítulo 2


O Plano da Obra






O dia renasce.


O café é sorvido aos poucos e os jornais da manhã são folheados displicentemente, como é comum em horas tão jovens como estas.


Um pedaço de mamão, saboreado aos poucos; depois um iogurte, outra xícara de café com um pedaço de pão e queijo branco. Agora mel, que vai adoçando a mente para a reflexão que se seguirá


Para o escultor, é preciso ter um roteiro que o auxilie no trabalho.


A contemplação, após o desejum, portanto, recomeça.






Súbito, numa epifania, tudo lhe vem a mente com clareza e simplicidade.


O processo será o óbvio: começará pela cabeça e pelo pescoço e descerá aos poucos: tórax, braços, abdômen e pernas.


Por último, os pés.


Vê à sua frente, a imagem pronta.


Não existem dúvidas quanto às dimensões e às proporções.


A imagem será metafórica: não apenas uma forma humana, mas um corpo que se esculpe a si mesmo.


O homem na escultura estará recurvado sobre o abdômen, numa flexão pouco confortável, bem ao estilo de Rodin.


Terá em suas mãos um malho e um cinzel e estará desbastando a si mesmo.


Uma reflexão em pedra sobre a autoconstrução do ser humano.


Haverá no rosto da estátua um leve sorriso, como se o trabalho lhe trouxesse satisfação.


Seus músculos estarão tensos, mas não demasiadamente.


Na verdade terá um ar quase relaxado enquanto executa seu esforço.


Seus cabelos serão grandes o suficiente para caírem pela testa, enquanto a cabeça se curva para trabalhar os pés.


Fazendo considerações sobre esta imagem, em que os extremos do corpo praticamente se encontram, o escultor reflete sobre o simbolismo deste círculo que se fecha que tanto lembra o Oroboro, o termo grego que designa a Serpente que engole o próprio rabo.


A cabeça encontra seu limite de flexão nos seus próprios pés, o que visto de modo mais amplo mostra que o homem tem a medida exata de quão baixo ele pode chegar.


Menos que isso, não irá.


O corpo do ser é o seu próprio limite, estabelece seus próprios limites, tanto na vida como na criação da Vida.


Sua cabeça, uma vez erguida, parece elevada em relação às suas pernas, mas na verdade faz parte de um mesmo conjunto integrado, como a serpente do símbolo circular.


A sabedoria é feita de obviedades.


As coisas banais: destas é que não podemos nos esquecer, quase em uma filosofia do comum e do banal, que substituiria com galhardia as grandes questões da existência.


E o corpo e seus limites, físicos e psicológicos, não é de forma alguma uma questão banal.


Contra ele, corpo, no entanto, está a sua ostensiva e ao mesmo tempo ignorada presença. O corpo, por estar sempre conosco, é um eterno desconhecido.


Quantos sabem onde está seu próprio fígado, seu baço, seus ossos, ou mesmo suas artérias?


Onde é meu cerebelo?


E os músculos que dão contornos ao meu ventre, ou às minhas costas?


Esses não são conhecimentos de menor importância. Conhecimentos sólidos acerca do que é sólido auxiliam o exercício da imaginação.


Graças aos seus conhecimentos anatômicos e a sua capacidade de observação, o Escultor pode, mentalmente, contemplar com detalhes a obra pronta.


Ele conhece o corpo do homem.


Isto já é um bom começo na prática da visualização.






Conhecer nosso corpo é conhecer nossa casa nesta vida passageira


Não só nossa mente, mas também nosso corpo têm ainda muitos segredos a nos revelar, a nós que julgamos conhecê-lo tão bem.Intuímos isto, se bem que não temos ainda como demonstrar esta certeza, mas sabemos em nossos ossos que nossos ossos e carne não são tudo que somos.


Somos mais, sim, física e mentalmente, mas o que somos?


Temos glândulas que reagem à luz, temos secreções que dependem da noite, ritmos circadianos que já estavam em nós antes de sabermos falar.


Por que somos como somos?


Não importa.


O mistério, graças a Deus, está garantido e estamos longe de saber tudo que precisamos sobre nossos corpos, quanto mais sobre nossas mentes.










A mesma cabeça cujo limite de flexão está nos pés, possui dentro dela algo sem limites possíveis de serem estabelecidos.


E esta coisa ilimitada, pode, eventualmente, tornar o corpo aparentemente limitado em algo ilimitado , de modo que, aquilo que conhecemos como seus “limites” sejam transcendidos pela intervenção deste elemento intensificador: a mente.


Daí a dúvida: este corpo que temos tem limites ou recebeu um conjunto de comandos mentais e culturais de modo a crer que tem esses limites?


Sabemos que a flexibilidade do corpo como a da mente pode ser melhorada, respectivamente, pela prática do esporte e pela educação intelectual.


Então, de novo indagamos: temos limites ou vivenciamos os limites que estabelecemos para nós, ou que alguém estabeleceu para nós e que aceitamos como reais?


Crenças pessoais: estes são nossos limites.


Esses são os limites de nosso espírito e de nosso corpo.


Em situações extremas o homem demonstra capacidades que na ausência da necessidade e do desafio jamais manifestaria.


O que somos, portanto, é desconhecido, já que tanto a mente como o corpo são plásticos o suficiente para nos surpreender com desempenhos insuspeitos desde que estes sejam solicitados pelo medo extremo ou por condições muito adversas.


Uma plasticidade muita vezes maior do que a dessa estátua de mármore que será feita e que, por enquanto, está na mente do artista, mas que pode em sua imobilidade simbolizar, sinalizar, como uma placa de trânsito mostra, imóvel, a direção do fluxo de uma estrada.


Estátuas são sempre metáforas em mármore ou granito.


Feitas estas considerações, o dia promete.


A obra, agora já pode começar.




Capítulo 3


A Cabeça


Uma cabeça se divide em duas partes artísticas distintas e com graus de dificuldade diferentes: o crânio e a face.


Moldar o crânio é infinitamente menos complexo do que dar formas à máscara expressiva.










Não que o crânio seja um trabalho menor ou que exija menos perícia, mas a calota craniana tem função de guardar e proteger seu conteúdo contra a ação dos agentes externos, ou seja, ela precisa ser sólida e estável, pétrea se me permite o trocadilho.


Já a face, pela missão de servir de instrumento de inter-relação social, tem que ter flexibilidade e mutabilidade e por isso a sua riqueza muscular é exuberante.






Arrancar da pedra esta potencialidade de expressões é talvez o milagre da escultura.


Braços, pernas e abdomens serão dóceis na mão do artista como a face jamais será.


É preciso decidir qual das milhares de expressões possíveis mais se adequará ao resto do corpo da estátua, por que é disso que se trata: capturar um momento de expressão do homem dentro de um movimento contínuo de combinações em número infinito e congelá-lo em pedra.






Em torno de dez músculos são do crânio enquanto trinta estão na face.


Em que cena, em que tipo de máscara, deverá o artista se deter?






A máscara da comédia, da tragédia, do sarcasmo, da dor, do desdém, da soberba, da humildade, do êxtase físico ou espiritual?


Por fim, o artista opta pela máscara da atenção, do interesse, do cuidado.


Este ser representado manifestará a importância da concentração em um trabalho prazeroso, por que construir-se é crescer, não fenecer; melhorar, não piorar; algo que deve trazer satisfação e dedicação e que deve ser, em uma palavra, recompensador.


A vida deveria ser plena de realização e não faz sentido que nos dilaceremos com questões insignificantes como é hábito entre seres humanos.










Aliás, atordoamos o criador com nossas queixas e lamentos como se nossos problemas cotidianos fossem os mais importantes, ou melhor, como se fossem fundamentais para o andamento do universo, mas não são.


Nossa vida é absolutamente comum e monótona embora vivamos a fantasia da originalidade, da peculiaridade, e nos deixemos levar pela ilusão de outros que pensam viver também uma experiência ímpar.


Todo tolo diz, grandiloqüente: “Minha vida daria um livro!”, quedando-se em seguida em um silêncio teatral ou um olhar dramático a divisar um horizonte distante, deixando ao interlocutor a oportunidade de preencher aquela lacuna com sua imaginação.










Na verdade o drama humano, no seu conjunto, é redundante, circular, repetitivo.


Esta monotonia, esta circularidade, entretanto, não determina o tédio, não implica em morte, ou pelo menos ausência de vida.


Todas as variações que conhecemos todas as manifestações ditas originais e únicas estão sobre uma plataforma de estabilidade. Neste colchão de ritmo constante, de freqüência estável, a vida salta, e gira, e torna a cair e saltar, para retornar de novo por gravidade para este solo macio que a sustenta como em uma cama elástica.


Podemos executar muitos movimentos durante o tempo exíguo de nosso salto, (uma encarnação ou um dia de vida) variando as posições e as expressões de nossa face, mas lucra mais quem se conscientiza de que o retorno a este colchão é inevitável e usa este conhecimento a seu favor, valendo-se deste retorno para preparar um impulso maior e melhor, que permita mais tempo, digamos assim, no ar, em aparente liberdade de ação.


A inevitabilidade deste retorno para impulso é talvez o mais difícil


ensinamento para esta civilização ateísta e racionalista, que se julga absolutamente livre para decidir seu destino, sem levar em consideração as vicissitudes da existência, da cultura, da genética, da tradição antropológica e por fim, das crenças e convicções que tudo isto nos infunde.


Talvez, caso se percebesse a inevitabilidade destes retornos cíclicos, o senso comum, antes de tentar entendê-lo, o amaldiçoasse.


Só que o pulsar é da natureza da existência: pulsa o coração, ciclam os pulmões, até o humor oscila, ao longo de um simples dia.


Dias e noites se alternam na demonstração do óbvio: a vida é, num ritmo estável, alternância.


Esta é a fórmula que explica a unidade disfarçada na diversidade.


Crenças. A cabeça está cheia de crenças, de pré-conceitos, pré-ocupações.


E como um projetor de cinema os olhos projetam o que a cabeça imagina e vemos um mundo compatível com nossas convicções.


É preciso silenciar a mente para que os olhos possam enxergar o nada que nos cerca, a tela branca ofuscante em que a realidade se transforma para aquele que dominou sua própria cabeça.


Porque nada que já não estiver em nós, aparecerá fora de nós embora ninguém goste de pensar assim.


Afinal, isto quer dizer que projetamos inclusive nossos próprios dramas, nossas próprias amarguras e que elas não nos caem no colo acidentalmente.


Ninguém quer tal responsabilidade.


Toda cabeça gosta de atribuir aos outros, sejam seres humanos ou deuses, a culpa pelo que nos acontece.


Pois a cabeça não vê o que as mãos, do mesmo corpo ao qual pertence, fazem.


A cabeça tem vida própria, às vezes própria por demais, desconectada do corpo do qual deveria fazer parte.


Na maioria das vezes, é o corpo que parece fazer parte da cabeça e não o contrário.


Por isso, talvez, a escultura tenha começado por aí, pelo alto, de onde vêm as ordens, as determinações neurológicas e filosóficas, de onde saem as crenças, para criar mundos, para delimitar contornos em uma realidade mais plástica do que o crânio.


Tão plástica como a face que se relaciona com ele e que auxilia na sua criação.


Afinal um sorriso ou uma face de rancor geram reações significativas e podem designar a qualidade de um dia inteiro de nossa existência.










Os crânios são materiais, mas as faces são espirituais.


Faces oscilam com o vento, como bandeiras, e assim deve ser, para que possam cumprir seu papel.


Dizem que os olhos são os órgãos mais expressivos, mas a face é um contexto, em que eles, olhos, estão inseridos, juntamente com outros elementos, lábios, músculos da face, cílios, como bailarinos que dançam um balé complexo para transmitir uma mensagem ou uma idéia.


E uma desprezada sobrancelha também pode ter se bem usada, no devido contexto, seu dia de olho.


Nada, na face, pode ou deve ser desprezado na compreensão de um indivíduo, ou de uma reação.


Quanto mais franco um indivíduo, mais plástica será sua face; quanto mais pétrea for a face, mais longe de sua humanidade este indivíduo estará.










Conhece-se um mestre por sua face, pois a sua característica é dizer muito com poucos músculos.


Existem homens e mulheres que por mais que se esforcem e manipulem seus trinta músculos, pouco expressarão.


Já o mestre dirá muito com um simples sorriso.


Será um sorriso sereno, mas expressivo.


Serenidade não é insensibilidade, ou inexpressividade, nem ausência de plasticidade.


Serenidade é suavidade, mas ainda assim, movimento.


É como comparar a corrida de um elefante com o vôo de uma gaivota.


O vôo de um pássaro depende de pequenas correções de posição, que geram incríveis mudanças de rumo.


Assim é a face de um mestre: poucos movimentos, muito significado.


Por isso a face é uma obra de arte à parte e o Escultor deve garantir que a expressão correta esteja lá, indicando um sentimento específico, um estado de espírito ou uma atitude diante dos fenômenos em torno daquele ser.


É na face do homem que reconhecemos suas crenças, as mesmas crenças que estão em seu crânio, em sua cabeça.


Para olhos treinados, nada mais é necessário para se conhecer alguém.








Capítulo 4


Os Braços










Braços são extensões. Ampliam nosso campo de ação.


São sinônimos de ação. Não tem a autonomia, no entanto, que o cérebro tem. Não decidem o que fazem, apenas cumprem determinações mentais.


Braços são escravos da vontade da cabeça. São obedientes, silenciosos.


O artista, olhando para os braços enquanto os esculpe, pensa nas suas possibilidades metafóricas.


Força: braços expressam a força necessária para a modelação do mundo.


Intervenção: braços competem com a língua e a palavra na capacidade de intervir no real; entretanto, braços não falam, agem.


Nisto, talvez a mente tenha algo a aprender com seus servos, os braços.


Apreensão: braços e suas extensões, as mãos, sabem como agarrar o que desejam, com firmeza, com determinação.


Nem todos os seres dominam a lição dos braços, das mãos. Poucos seres são capazes de intervir em suas próprias vidas e transformá-las, silenciosa e determinadamente, agarrando suas oportunidades de modo firme para que ela não lhes escape pelos dedos.


Vidas não podem ser menosprezadas, todas são preciosas. Todas devem ser agarradas, abraçadas e trabalhadas com entusiasmo de um padeiro faminto, preparando a massa do pão.


Todos os seres humanos devem ser dignos de seus braços e, como eles, serem obedientes as suas cabeças, em vez de resistirem às instruções que lhes vem do íntimo do seu ser.


Em poucas palavras: harmonia interna é uma estrada sem desvios entre desejo e ação.


Braços doentes são braços que pensam. Braços não podem e não devem pensar, só obedecer. A cada parte de nosso corpo sua função. Se existe confusão quanto ao papel de cada parte, surge a doença da inação.


Ou melhor, o pecado do não - agir.


Pois, em última instância, o único pecado é a omissão.


Braços são corajosos. Arriscam-se. Os dedos se queimam; doem, mas sentem, tocam no mundo.


Não tentam idealizá-lo: apalpam-no, percebem-no de forma direta e sensual.


Braços são objetivos, positivistas, empíricos; têm, naturalmente, habilidades que a mente leva décadas para conseguir.


Junto com as mãos, braços são os cientistas do corpo.










Talvez, por último, o maior significado dos braços seja sua alusão a dualidade do mundo e sua inerente complementaridade.


Pois os braços, normalmente, vêm aos pares: esquerdo e direito, de um e de outro lado do corpo.


Opõem-se lateralmente e necessitam-se na ação sinérgica que desempenham em seu papel transformador do mundo e das coisas.


Aqui, nos braços, fica evidente que lados contrários se necessitam, como se os chamados Bem e Mal, trabalhassem em conjunto pela transformação harmônica do mundo.






Nada como um par de braços para deixar esta noção clara. Precisamos de ambos para melhorar as coisas a nossa volta, abraçar um amigo, a amante, um pai.


Só combinando Bem e Mal, esquerda e direita, podemos manifestar o Amor no abraço.


E Amor não é idéia, é ato; fato, que se palpa e sente na modificação do real.


Braços são transformadores e amantes, por definição.


Pode-se dizer que toda transformação é um ato de Amor, mesmo aquelas que não se caracterizem pela suavidade ou pela delicadeza.


Esquerda e direita, um lado e o outro lado, ambos partes do mesmo corpo, necessários e indispensáveis, um ao outro.


E as obras pontuais, localizadas, destes braços, contrários e complementares, terão a beleza e a originalidade das coisas humanas, pois “o homem é uma palavra da vida que, dita uma vez, já não pode ser repetida”, e assim como ele, também suas obras.


Esta escultura será única e estes braços irreprodutíveis, mas devem mesmo assim ter a dinâmica do símbolo imóvel, que mesmo sendo pedra, faz mover o pensamento de quem o contempla, gerando reflexão, alterando compreensões.


Se no conjunto geral, o ciclo da vida é redundante, no particular ele é sempre único, original.


Pensemos no caleidoscópio: os mesmos pedaços de vidro colorido, o mesmo conjunto de espelhos no cilindro e um número infinito de imagens e combinações.










4° Capítulo


O Tronco






1ª parte






O Tórax






Ao considerarmos o tórax humano, em forma e conteúdo é inevitável pensar-se no coração, tido como centro da vida,


Para o escultor, entretanto, maior importância tem os órgãos que armazenam o sopro universal.


Enquanto lacera lentamente a pedra, pensa: “- Aqui dentro, protegidos por esta grade óssea, em todos os seres vivos repousa o alento vital.”


Sabe-se que todo artista deve ter inspiração. Esta imagem não é gratuita.


Inspirar é respirar para dentro, é receber algo invisível que nos dá a chance de manifestar a sabedoria, a força e a beleza no mundo que nos cerca.


Sem a captação deste elemento indetectável, dizem os fisiologistas, a vida não seria possível. Mais: a arte seria inviável.


Não é nosso coração que capta as mensagens do Universo que nos cerca, mas nossas narinas.


Estamos mergulhados, todos, neste mar de energia disseminado através do ar do qual extraímos pequenas quantidades, dezesseis a vinte vezes por minuto, garantindo assim nossa participação na aventura humana.


A força vital chega ao tórax e após ser recebida é imediatamente distribuída para todo o organismo, inclusive no cérebro, onde será a base da imaginação e do raciocínio.


Respiro: logo, posso sonhar, imaginar coisas distantes de mim, coisas que conheço graças ao que passou por minhas narinas, não pelos meus olhos.


Por mais que os olhos vejam, jamais verão tanto quanto o que o ar nos traz como ensinamento silencioso.


Compartilhamos, todos nós, humanos e não humanos, um banquete atmosférico, que nos torna cúmplices em um sem número de imagens, idéias, suposições.


Este é um dos caminhos que o raciocínio do artista toma enquanto molda as curvas e a inclinação do tórax da estátua a sua frente, ligeiramente curvada sobre seu abdômen.






Pulsação. O tórax pulsa de vida, no movimento do fluxo cíclico do ar e do sangue.


Expansão e contração se alternam nesta parte peculiar do corpo com evidentes repercussões sobre todo o sistema.


Aqui a vida também se expressa na sua natureza dual. A dualidade dos braços é entre lado ativo e passivo; a do tórax é entre cheio e vazio. O tórax reproduz a cosmogênese.


“Feitos à Sua imagem e semelhança”, diz o texto.


O cosmos inteiro também respira. Neste momento, e ainda por muitas eras, Deus inala, respirando galáxias e estrelas, satélites e civilizações, em toda a parte. Todo o Universo se expande e as galáxias fogem em todas as direções a partir do ponto original do Big Bang.


É o Puraka hindu.


O artista pára por algum tempo e senta em frente à obra, deixando que este mar de idéias decantem na profundidade de seu espírito.






A forma. O artista busca a forma, não o conteúdo. Seu pensamento, entretanto, percorre independente a anatomia do trecho em que trabalha e queda-se considerando analogias com os órgãos tão simbólicos que o tórax com suas costelas bíblicas protegem.


Agora, enquanto faz uma pausa, concentra-se no coração.


Lugar comum para os líricos, fundamental para os médicos, a bomba cardíaca repete mecânica e ininterruptamente o mesmo movimento ao longo de toda uma existência, como o metrônomo de um piano.


Ritmo: o coração, para estar saudável, precisa ter ritmo. Não apenas força de contração e capacidade de dilatação, mas fazer todas essas coisas com ritmo, como a batida de um monótono tambor.


Como os tambores de Miriam no Êxodo, o coração bate mais forte pelas emoções que o ser desfruta, sejam elas de festa ou de tristeza. E o sangue, como um rubro oceano, escorre pelas artérias ao sabor de suas pulsações. A vida como a conhecemos, depende em última instância, de um sopro invisível e de um mar vermelho, que brotam do peito do homem.


O Tórax, conclui o artista, é uma síntese do livro santo. Nele se encerra, não apenas alguns versículos, mas toda a Torah.


Não só a vida do homem depende desta área de seu corpo, mas também a mulher tem aí sua origem mítica.


Tudo vem do centro, portanto. Não do alto, da cabeça, tão prestigiada em nossa época, mas do tórax, o centro das proporções vitruvianas de Leonardo, ali onde Deus colocou seu sopro vivificador.


O centro é doador. Ele fornece o que recebe de forma generosa e imediata.


Ele se faz passagem, não retendo nada para si, mas fazendo com que suas preciosas posses, o ar e o sangue, circulem livres por todas as partes do corpo.


O centro é generoso. E assim deve ser.


A respiração e a circulação devem ser francas e desimpedidas para que se garanta a saúde dos órgãos, o bem estar do indivíduo.


“À sua imagem e semelhança” diz o texto sagrado.


Portanto, nós que usufruímos do Sopro Universal, devemos estar sendo beneficiados de um centro generoso e dadivoso, em algum lugar do Cosmos, que desta forma difunde por toda a criação o éter miraculoso que mantém a existência de tantos povos, em todos os cantos, em milhares de mundos.


Nossa vida, nós que somos as células do Universo, deve vir do tórax de Deus, como em nós provém do nosso.






2ª parte


O Abdômen


Local de músculos retos, o abdômen processa os alimentos, com calor e movimentos rítmicos.


Sim, o abdômen é alquímico: transforma o que chega até ele em essências simples, passíveis de serem absorvidas pelo organismo.


Não é apenas uma fornalha, mas sim um enorme laboratório, com várias substâncias se revezando na elaboração de compostos biológicos os mais variados.


Isto todos sabemos.


Para o Escultor, no entanto, trata-se de uma superfície algo curva, em direção à base do corpo. Lá, pensa o artista, encontramos as características terrenas, aquilo de mais puro que um corpo pode ser: ele mesmo.


Não a matéria não é elemento de pecado, ela é a base para a beleza, pois o espírito, neste plano, não tem visibilidade a não ser através do corpo.


O Todo Poderoso nos deu o mundo como uma bênção e uma oportunidade de realização e aprimoramento.


O mundo é nosso mármore, nossa argila. Nós somos os escultores.


Quando nossa habilidade artística chegar ao ápice, seremos então Artesãos respeitados, e poderemos reproduzir a beleza de uma rosa vermelha com competência e em quantidades suficientes para dar satisfação e algum alívio a todos que tem de carregar a sua cruz.










O abdômen nos lembra a importância do sólido, sem prejuízo do espírito.


Nenhuma novidade para um escultor acostumado a arrancar a graça e a estética de pedras brutas, amorfas, um transformador do mármore, como o abdômen transforma o alimento.


Todos nós, escultores ou não, precisamos aprender a lição do mármore e da pedra bruta, que nos dá disciplina, testa nossa determinação e paciência, aprimora nossa sensibilidade e criatividade.


O abdômen é o mestre desta lição: a matéria é sagrada, dela extraímos nossa subsistência, e deve ser reverenciada como nossa orientadora no caminho do aperfeiçoamento artístico.


Amemos o alimento que consumimos porque ele nos dá a vida.


Amemos nossas pedras, pois delas faremos nossas estátuas, nossa arte, pensa o escultor.


5° CAPÍTULO






As Pernas






Colunas de sustentação, as pernas são duas, como os braços.


Para que o tronco esteja equilibrado, necessita de que ambos os lados estejam contemplados: o esquerdo e o direito, Jaquim e Boaz,


Pernas são sustentação, apoio, mas também impulso para cima, para o alto, simbolizando para atingir-se o alto, o celeste, é preciso apoiar-se no terrestre.


Não há cabeça, pulmão ou braços que possam manifestar-se adequadamente sem ter o sustento de pernas fortes e sólidas.


Pernas tocam o chão. As pernas são humildes. Nada pedem para si mesmas.


Querem apenas sustentar.


Fazem o que foram feitas para fazer. Servir. Pernas são discretas.


Servem em silêncio. Por que pernas não falam. Apenas servem.


Nossa cabeça precisa da lição das pernas. Cabeças não servem em silêncio.


Cabeças falam, e se distraem com sua própria voz. As cabeças olham coisas à sua frente, à sua volta. Não percebem, no entanto, suas próprias pernas e muito menos os ensinamentos que estas encerram.


Para perceber-se as pernas é preciso humildade, é preciso se curvar.


A cabeça não se curva com facilidade, mas deveria. Pois o círculo deve se fechar para que uma fase se encerre.










Por que duas pernas?


Por que o Universo que nos sustenta é dual. Ele não existe se seus dois lados, seus dois aspectos, não forem contemplados.


Na mitologia de Moisés no Torah, o Querubim na Porta do Éden liberta do estado de repouso dois princípios, o passivo, Eva, e o ativo, Adão.


Precisamos do que chamamos Mal tanto quanto do que chamamos Bem, pois não há Mal maior do que o Bem todo o tempo.


Assim começa a caminhada da Humanidade. Não só o lado direito ou só o lado esquerdo, mas ambos, trabalhando juntos em seu papel criativo.


O Escultor dá especial atenção a esta última parte de sua obra.


Ela simboliza a concretização de uma jornada, do Alto até embaixo, quase como uma redescoberta da importância daquilo que é material na geração da beleza e da grandiosidade do homem.


Todo Ser humano que não aprender a lição das pernas, e não perceber a importância de pisar com decisão o solo aos seus pés, jamais poderá chegar a níveis mais elaborados na Arte Real.


Reverenciemos o solo que pisamos, tanto quanto as pernas que nos permitem pisá-lo.


Só o artista pode reconhecer o quão sagrado pode ser aquilo que é mais profano em nós, o chão em que caminhamos e que nos sustenta em nossa evolução.


E são as pernas que nos põem em contato com esta solidez, com esta base de sustentação, com este conjunto de valores que fundamentam nosso comportamento, ao qual estamos presos pela gravidade da nossa formação educacional.


Precisamos da base tanto quanto destas pernas e pés que se apóiam sobre ela.










O escultor está ofegante. Não é cansaço: é excitação criativa.


Sua mente, como uma antena, vagueia em busca de idéias e imagens e uma delas não vem senão de dentro dele mesmo, de sua memória.


Um trecho do Livro de Daniel, capítulo 2, versículo 12 em diante:


“Tu, ó rei, na visão olhaste e eis uma grande estátua. Esta estátua, imensa e de excelente esplendor, estava em pé diante de ti; e a sua aparência era terrível.


A cabeça dessa estátua era de ouro fino; o peito e os braços de prata; o ventre e as coxas de bronze; as pernas de ferro; e os pés em parte de ferro e em parte de barro.










Estavas vendo isto, quando uma pedra foi cortada, sem auxílio de mãos, a qual feriu a estátua nos pés de ferro e de barro, e os esmiuçou.






Então foi juntamente esmiuçado o ferro, o barro, o bronze, a prata e o ouro, os quais se fizeram como a pragana das eiras no estio, e o vento os levou, e não se podia achar nenhum vestígio deles; a pedra, porém, que feriu a estátua se tornou uma grande montanha, e encheu toda a terra.”














Ao contrário do sonho, esta estátua tem pés fortes.


Todos precisamos de pés suficientemente resistentes para que possamos seguir nesta jornada.


Não pés divididos, como Daniel explica a Nabucodonosor, pois barro e ferro não se misturam, mas pés unos, íntegros.


Quem caminha por trilhas íngremes deve se cuidar.


Que seus pés possam suportar qualquer terreno, sem que a marcha precise ser interrompida.










Uma das pernas, a esquerda, não será terminada.


Permanecerá em um bloco cúbico, para dar a idéia de uma obra em andamento, inacabada, como todo ser humano deve ser.


A estátua não termina por que a autoconstrução é permanente.


E o corpo ajoelhado sobre a perna direita, trabalhando a esquerda, servirá bem como símbolo da devoção quase sagrada ao trabalho de autoconstrução.






Assim, se encerra a Obra.


O Escultor lança-lhe um lençol branco e a cobre por inteiro.


Chamará os amigos e seu marchand para avaliação da obra.


E enquanto o vinho passa por suas gargantas, libertando as palavras antes impronunciáveis, comentarão sobre a estética da obra.


Para o escultor, tudo será enfadonho.


Seu prazer diminui a medida que a obra se encerra e sua vida só se enriquecerá quando um novo projeto estiver em andamento.


Criar é parte dele, Artista, e nada, nem os elogios , nem as adulações conseguem fazê-lo superar o enfado diante do repouso entre duas esculturas.


O sol amanhã surgirá, magnífico, neste Outono frio, e com ele trará novas luzes sobre o atelier, novas idéias ao artista, para seu deleite e satisfação.


Resta apenas dormir e esperar pela nova manhã.


A noite já vai alta.


Os amigos se foram.


O artista vai descansar.






FIM