Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

A MEMÓRIA

Quanto mais algo é inteligível, mais facilmente se retém, e, ao contrário, quanto menos, mais facilmente o esquecemos. Por exemplo, se eu transmitir a alguém uma porção de palavras soltas, muito mais dificilmente as reterá do que se apresentar as mesmas palavras em forma de narração. A Memória se fortalece também sem auxílio do intelecto, a saber, pela força mediante a qual a imaginação ou o sentido, a que chamam comum, é afectado por alguma coisa singular corpórea. Digo singular, pois a imaginação só é afectada por coisas singulares. Com efeito, se alguém ler, por exemplo, só uma novela de amor, retê-la-á muito bem enquanto não ler muitas outras desse género, porque então vigora sozinha na imaginação; mas, se são mais do género, imaginam-se todas juntas e facilmente são confundidas.

Digo também corpórea, pois a imaginação só é afectada por corpos. Como, portanto, a memória é fortalecida pelo intelecto e também sem a ajuda deste, conclui-se que é algo diverso do intelecto e que, para o intelecto considerado em si, não há nenhuma memória nem esquecimento 
O que será, pois, a memória? Nada mais do que a sensação das impressões do cérebro junto com o pensamento de uma determinada duração da sensação; o que também a reminiscência mostra. Realmente, nesta( a reminiscência) a alma pensa nessa sensação, mas não sob uma contínua duração; e assim a ideia desta sensação não é a própria duração da sensação, quer dizer, a própria memória. Se, porém, as próprias ideias sofrem alguma corrupção, veremos na Filosofia. 
E se isso parece a alguém muito absurdo, bastará para o nosso propósito que pense ser tanto mais facilmente retida uma coisa quanto mais for singular, como se vê do exemplo da novela que acabamos de dar. Além disso, quanto mais uma coisa é inteligível, mais facilmente é retida. Logo, não podemos deixar de reter uma coisa sumamente singular , contanto que inteligível.

Baruch Espinoza, in 'Tratado da Correcção do Intelecto'

Só peço ao Cósmico que este ano eu possa publicar textos sólidos como corpos, singulares e inteligíveis para que permaneçam como uma boa e nítida lembrança para quem os ler.


Mario Sales ou Ir.: Aniax  Klebstsvs   

Feliz 2012

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

A IMPORTANCIA DE UM ANO ESTÁ NA QUALIDADE DOS AMIGOS QUE CULTIVAMOS E QUE NOS ACOMPANHAM NA JORNADA. ESTE FOI UM ANO BOM.

"MAIS IMPORTANTE DO QUE FAZER NOVOS AMIGOS É PRESERVAR OS ANTIGOS."(DE AUTOR ANÔNIMO)









SPINOZA( ברוך שפינוזה) E AS SEMELHANÇAS


Por Mario Sales, FRC.:;S.:I.:;M.:M.:


As únicas coisas certas da vida são a solidão, o erro e a morte. Quando, entretanto, encontramos interlocutores para nossas idéias, que as compreendam como nós as compreendemos ou que as esclareçam de forma mais nítida do que a nossa, sentimos embevecidos o desaparecimento de duas daquelas três angústias citadas: some a solidão e extingue-se o erro, além do fato de que, de leve, roçamos a eternidade.



Espinosa, para mim, nos últimos dias, tem sido isso: um encontro entre velhos camaradas, que conversam sobre assuntos acerca dos quais concordam, sendo que para mim, a nitidez de meus conceitos, ao dialogar com este sábio imortal, aumenta, aliviando o fardo da minha ignorância e iluminando a obscuridade de minhas imagens. Iluminando sim, porque elas já estavam lá, mas pouco nítidas, ou banhadas pela luz de velas, poucas, que projetavam suas sombras na parede, mas que não permitiam o divisar dos detalhes. A filosofia de Espinosa ou Spinoza, como preferem outros, ilumina os contornos de minhas idéias, como místico, médico e homem.



Tudo agora é luz.
Não há dúvida, existe muito de tudo neste filósofo português abrigado em território holandês.
Entendo agora, enquanto leio aos poucos o livro de Marilena que citei no artigo anterior, o papel de divisor de águas desta abordagem filosófica estranhamente contemporânea, feita no século XVII.



Contemporânea por que fala de uma compreensão panteísta da Divindade, muito mais parecida com a visão mística do que com o antropomorfismo banal que vigorou e ainda vigora em muitas mentes.
A noção da incapacidade do homem de compreender a divindade e das suas tolas tentativas de igualar esta divindade aos seus próprios critérios de semelhança, que se encontra em sua correspondência com alguns de seus críticos, é de uma lucidez cristalina e absolutamente compatível com a visão mística rosacruz e, diga-se também, cabalística da Divindade.
Sim, porque Cabala não é Judaísmo, como Misticismo não é Cristianismo e Sufismo muito menos Islamismo.



Como exemplo, recorro a um trecho de uma carta citada no texto explicativo de Will Durant sobre ele, em que, respondendo a alguém que lhe cobrava uma quase retratação da sua postura não definidora dos contornos da Divindade, ele comenta:
“... pois acredito que um triângulo se pudesse falar, diria, de maneira semelhante, que Deus é eminentemente triangular; e um círculo, que a natureza divina é eminentemente circular; e assim cada um atribuiria suas próprias qualidades a Deus.” [1]
Espantou-me a sua sólida concepção de inexistência de separação entre mente e corpo, entendendo todas as manifestações como aspectos de uma mesma realidade, da mesma maneira que entendo que muitos chamados “materialistas” identifiquem-se com ele, supondo que sua visão compreendia apenas o palpável e o visível, sendo o impalpável apenas reflexo do palpável.
Lendo-o com mais atenção percebi que não é tão simples. Não estamos diante de um pensador qualquer, mas com certeza, deparamo-nos com o príncipe dos filósofos, aquele que, realmente enxerga uma única realidade em densidades diferentes.
Esta unidade spinoziana não aceita a classificação de materialista. É como querer colocar o Oceano em um simples copo.
Primeiro, porque precisamos clarificar o que consideramos como matéria, que características esta extensão material (densidade, dureza, largura, espessura, altura) terá para que assim possamos classificá-la.
E aí começam os problemas porque quatro séculos antes do surgimento da física quântica o pensamento spinoziano já açarbancava as suas possibilidades.
Porque desde os primeiros trabalhos de Max Planck, a noção de Matéria perdeu a densidade Newtoniana para ganhar ares de instabilidade energética e fugidia, capaz de constranger qualquer cientista que busque o necessário e fuja do contingente.
Porque ciência, para ser ciência, trabalha com o necessário, aquilo que é do jeito que é e não de outro, e foge do contingente, aquilo que poderia ser de outro modo e não daquele que é temporariamente neste momento, ou seja, a chamada realidade instável.
Nada mais positivista e científico do que a física; nada mais instável e contingente do que a física quântica. Mesmo assim, trata-se de matéria, uma noção absolutamente avançada e mais profunda da matéria, nem dura, nem espessa, nem palpável, muitas vêzes, melhor dizendo, quase sempre não mensurável de modo direto.
O filósofo que quiser rotular Spinoza como materialista, como um pensador que atrelou o espírito ao corpo comete o equívoco de não alcançar a profundidade de seu pensamento.
O que ele diz, e corrija-me Marilena Chauí se algum dia eu merecer sua leitura, é que todas as coisas são feitas da mesma substância o que vale dizer que a divisão entre matéria e espírito é arbitrária e pressupõe fronteiras bem definidas que pouco a pouco vamos reconhecendo através da ciência ortodoxa positivista, não existirem.
Seja pelo trabalho de outro português, o neurocientista Antonio Damásio, ao buscar correlações neuroanatômicas e neuroquímicas para o fenômeno da Consciência e do pensamento, baseando-se não em especulação, mas na contemplação de casos clínicos de indivíduos reais; seja na percepção da física de partículas de que aquilo que chamamos denso, duro, na verdade é apenas um acumular de vazios, considerando a estrutura do átomo, e o enorme espaço de nada entre o núcleo e a órbita dos elétrons, as muralhas de divisão de território entre o imaterial e o material, entre o chamado mental e o neurológico e físico desabam dia após dia e só sobrevivem na concepção do senso comum.



Quando os rabinos de Amsterdam disseram que Deus estava ausente da Ética eles não foram claros nem completos em sua afirmação.
Deveriam ter dito que “uma idéia de Deus”, a sua, (deles) aquela que é aceita dentro do judaísmo e mesmo no Cristianismo ortodoxo, esta idéia de Deus é que estava e está ausente da Ética.
A concepção de Spinoza acerca da Divindade é tão clara e límpida como uma lente bem polida, e melhora a visão daqueles que quiserem ou tiverem coragem de olhar através dela.
Spinoza vê um Deus realmente Onipresente, Onisciente, tanto quanto identificado com esta realidade, da mesma maneira que definido no meu ensaio anterior “Uma estranha idéia de Deus”, onde a Internet é o modelo didático.



Percebo agora que um item que me angustiava naquele ensaio ("Uma estranha idéia de Deus") desaparece com a leitura de Espinosa. A noção de Onipotência. Vejo que o problema não era o conceito em si, mas como eu o compreendia.
Porque na verdade, e acredito que estarei em acordo com o pensamento espinosano nisso, a Onipotência Divina fundamenta-se em sua Onisciência, e não na noção de potência como a capacidade de fazer qualquer coisa ao seu bel prazer. Não que lhe negue esta capacidade, mas é pacífico que as leis do Universo funcionam de modo estável e não são alteradas caprichosamente, por mais que o queiramos, por mais que em nosso sofrimento o desejemos.
Assim, o Poder de Deus é Conhecer, não Alterar a Criação, mantendo-se atento e acompanhando em tempo real todos os seus movimentos e acontecimentos, encharcando-se de fatos e informações. Isto é poder verdadeiro.
Estabelecendo esta conexão, tudo fica mais simples, e podemos entender a importância do corpo e de suas necessidades na formação das idéias, estas como continuação daquele, ao mesmo tempo como as funções orgânicas, hoje compreendemos bem, são determinadas pelo comportamento de nossos pensamentos, transformados na neurohipófise em secreções hormonais que desencadearão as mais variadas modificações fisiológicas de acordo com a qualidade de nossos pensamentos.



Spinoza fala na influencia de nossas necessidades físicas sublimadas na mente e transformadas em aparentes desejos espontâneos, que realizamos quase que como autômatos, julgando-nos responsáveis por estas vontades e desejos quando na verdade, apenas executamos as vontades e desejos do corpo.


O Pesadelo (o íncubo) de Fuselli

Só que existe a segunda via, ou a outra mão de direção destes movimentos, quando o corpo detecta uma ameaça e organiza a si mesmo contra ela de forma automática a partir destes hormônios que são descarregados na circulação e provocam a liberação de outras substâncias que transformarão este corpo num organismo diferentes e pronto para o enfrentamento dos desafios percebidos como iminentes, desencadeando o que chamamos em fisiologia de “reação de luta ou fuga”.(“to fight or to fly”)
Chamamos a isto retro alimentação de informações ou feedback em inglês, e tanto podemos ter um feedback positivo, que intensificas as secreções, quanto um feedback negativo, que reduz em quantidade estas secreções desde que assim se faça necessário.
Este diálogo entre percepções neurológicas e glândulas, entre secreções e pensamentos, não era do conhecimento de ninguém no século XVII. Só Espinosa conseguiu, quatrocentos anos antes, se antecipar a esta constatação fisiológica contemporânea. Ele descreveu uma das mãos e deixou em aberto a outra via, a de retorno, se bem que ambas partem de respostas fisiológicas a eventos reais e desencadeiam efeitos mentais correspondentes. E isto é o que importa.
Isto é fazer a ponte entre ciência e filosofia.
Não haveria Damásio sem Spinoza. Ou melhor, ambos caminharam pelas mesmas ruas, e passaram pelos mesmos jardins, se bem que colheram flores diferentes.
São semelhanças que não podem ser desprezadas pois “quando bebermos da água do rio, é bom que não esqueçamos da fonte”.
O próprio Damásio abordou o tema em um livro ( “Ao Encontro de Espinosa”) que não li, mas que descubro em minhas pesquisas pela internet.


Continuarei estas reflexões.
Por ora, ficamos por aqui.


[1] Epistle 60, Ed.Willis, citado  em “Os Grandes Filósofos: A filosofia de Espinosa,pág. 73, Will Durant, EDIOURO”

sábado, 17 de dezembro de 2011

A MORTE DO INIMIGO DE UMA IDÉIA DE DEUS


Por Mario Sales, FRC.:;S.:I.:;M.:M.:


Eu ia continuar minhas digressões sobre minhas recentes leituras de Spinoza, mas os jornais de hoje trazem uma triste, mas infelizmente esperada notícia.
O pensador britânico Christopher Hitchens está morto. Vencido pelo câncer de esôfago e por complicações infecciosas (uma pneumonia) abandonou seu corpo quinta feira à noite, nos Estados Unidos onde residia. Sua despedida foi com um artigo na Vanity Fair, segundo leio hoje no Estado de São Paulo, aonde revisava a veracidade de uma frase de Nietsche ( Was mich nicht umbringt mach mich stärker) , “ o que não me mata me torna mais forte”, concluindo que não era assim, que “acreditar que cada ataque, cada episódio, o fortalece é absurdo, o que resta é algo pouco comum nos anais de referências à extinção: não o desejo de morrer com dignidade, mas o desejo de simplesmente ter morrido.” 



É a declaração do desespero, da falta de significado na existência, compatível com alguém que não consegue mais arrancar de seu corpo qualquer tipo de resposta, qualquer tipo de utilidade. E o que é inútil, segundo esta visão, deve se extinguir, rapidamente, na sua concepção.
Achava que Deus “era invenção dos homens, não criou o homem à sua semelhança, mas evidentemente foi ao contrário”, o que nos leva de novo ao terreno das convicções e das experiências.
Era um homem brilhante, e se eu tivesse tido o prazer de conhecê-lo, seria um magnífico adversário, daqueles que nos mobilizam e nos instigam, e que nos fazem requisitar em nós o que temos de mais poderoso, como só os adversários de nível sabem fazer.
Só que ultrapassei essa fase de querer polemizar. A polêmica de qualquer natureza, na maioria das vêzes, hoje em dia, me causa tédio. Discutir com alguém que tem convicções diferentes das minhas e que não experimentou sensações semelhantes as minhas, me parece pura perda de tempo.
Não acredito mais que argumentos possam convencer pessoas a modificarem seus pontos de vista.
A mais devastadora força capaz de modificar nossos mais arraigados pontos de vista, e destruir nossas ilusões, é a Vida em si mesma. Nenhum de nós, oradores, polemizadores, estamos a sua altura, e tudo que os textos fazem é tentar arrancar um naco de seu brilho, incapaz de ser reproduzido por qualquer obra literária.
Como a arte pictórica não reproduz a beleza do Todo e da Natureza, mas a imita e cria um novo campo estético, da mesma maneira o intelecto produz textos limitados às suas próprias características, já que embora “a língua seja nossa pátria” e aonde fazemos nossa filosofia, ela não consegue expressar totalmente a complexidade imensa de nossas sensações e experiências.
Por isso, debater a Experiência de Deus é diferente de debater a Crença em um tipo de idéia de Deus, professada por algumas religiões.
Concordo com Hitchens de que “Deus foi criado a semelhança do homem”, mas faltou dizer que o Deus criado por esses homens não é o Deus verdadeiro.
O que o homem cria tem a marca da limitação humana e o desenho de suas próprias mãos e preconceitos.
Na incapacidade de sentir Deus, muitos o imaginam e supõem que aquilo que conseguem imaginar é a expressão da Verdade, apenas por que lhes parece fazer todo o sentido.
Existe uma diferença, entretanto, entre o que acreditamos ser a verdade e aquilo que a Verdade realmente é.
Essa diferença, Hitchens, como eu mesmo um defensor ardoroso da ciência e do racionalismo, não percebeu.
É a mesma diferença entre o senso comum e o conhecimento científico.
Ensina a ciência que não é possível, fora do campo matemático, descrever adequadamente aquilo que não experimentamos e, quando o fazemos, especulamos, supomos, o que não é, e nunca foi a mesma coisa que fazer ciência. 
O cientista, por definição, é um ser curioso e investigador e nunca, nunca pode ser precipitado. Deve ser cuidadoso e paciente e fazer afirmações que devem ser tão prudentes quanto seus passos na pesquisa.
Pessoas com discursos tonitruantes, que nos apaixonam, às vêzes são apenas bons oradores, como Hitler e Mussolini também o foram.
Não é a beleza do argumento, e eu como escritor lamento isso, que o torna mais verdadeiro, embora todos nós que nos dedicamos ao pensamento queiramos verdades expressas ao mesmo tempo com fundamentação e verdade tanto quanto com beleza.
Um belo e arrebatador discurso deve, na ótica científica, necessariamente ser validado por experimentações que o corroborem, senão não passa, apenas, de belas palavras.
Assim, ateus ou antiteístas como Hitchens, não podem receber o confronto que procuram daqueles que procura atacar. A não ser um grupo tão dilacerado por convicções férreas como os fanáticos, os verdadeiros crentes, que não crêem, mas sabem que Deus é por que o experimentaram em seus corações, não darão atenção aos seus argumentos, mesmo que os considerem bem elaborados e até interessantes.
Tais argumentos são, e todo místico sabe, apenas um jogo de espelhos.
Como um caleidoscópio, nos fazem passear por imagens as mais variadas as quais nada, rigorosamente nada tem a ver com a experiência divina em si, ou com a realidade mais profunda da Universo.
Marcelo Gleiser, físico e não ateu, mas agnóstico, diz que o conhecimento humano é como uma ilha em um vasto oceano, e que seu avanço é como o aumento do território desta ilha, o qual é acompanhado sempre pelo aumento de próprio oceano a sua volta, o que significa que sempre teremos com nossa capacidade reduzida um conhecimento parcial da Verdade.
Faltou dizer que isto diz respeito a metodologia atual e não a ciência do futuro, que não será feita com o cérebro ou com o intelecto, mas com o coração.
Resumindo, a Taça do Intelecto em que queremos beber o suco da Verdade é pequena demais para nossa sede e para o que está na Sagrada Jarra do Altíssimo.
Outra fosse a nossa Taça, por exemplo, a Taça da Sensibilidade, e muito mais poderíamos ingerir, e nossa sede se extinguiria, lembrando as palavras do mestre de que “quem bebe desta água jamais terá sede.”
Christopher Hitchens não foi um Antiteísta verdadeiro, já que nunca teve uma experiência de contato direto e interior com a Divindade. O que combatia não era o próprio Deus, mas as Idéias de Deus, criadas por alguns homens que, como ele, também não O conheciam, religiosos em sua maioria e não místicos.
Aqueles que tocaram as vestes de Deus não precisam ou não conseguem expressar o que sentiram com palavras e quando o tentam, como Jacob Boheme, produzem textos esotéricos, que só podem ser compreendidos por aqueles que como o autor tiveram uma experiência semelhante ou vão ao texto não com o cérebro, mas com o coração.
Portanto é contra as Leis da Lógica, desde Aristóteles, que discutamos sobre assuntos diferentes, na suposição de que falamos da mesma coisa.
Só podem falar sobre Deus aqueles que o experimentaram e geralmente, tal experiência mergulha o abençoado por ela em silêncio e reverência. Sua voz externa diminui e sua Voz Interior aumenta.
Sua língua se cala e seus pensamentos e suas reflexões, no sentido mesmo de reflexos, como a luz em espelhos, aumenta exponencialmente.
Sinto grande misericórdia por pessoas como Hitchens por não terem experimentado a presença divina nesta encarnação e espero sinceramente que, livre da ilusão da carne, seu espírito encontre um pouco de paz, o que pela sua biografia, citada na reportagem, não foi a tônica de sua existência.
A Dor, sem o amparo da Experiência Divina Interior, é Dor igual aquela dos que tem este amparo. O que modifica é o que fazemos com nossa experiência, como a trabalharemos no dia seguinte, se a transformaremos em fonte de revolta, em fonte de angústia, ou em material de elaboração e aprofundamento de nossa sensibilidade.
É esta qualidade existencial que a Serenidade garante, serenidade esta que é a maior conquista daqueles que mergulharam e experimentaram o Deus Verdadeiro, e não daqueles que crêem ou descrêem desta ou daquela idéia acerca do que Deus seja.
A mesma Serenidade que, tristemente, Hitchens nesta encarnação, jamais experimentou.
Que possa finalmente descansar em paz.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

ESPINOZA( ברוך שפינוזה) E AS BOLAS DE BILHAR


Por Mario Sales, FRC.:;S.:I.:;M.:M.:
Claudio Ulpiano

Estou mergulhado em Espinosa. Leio , ainda no início, o livro “Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa” de Marilena Chauí, editora Companhia das Letras, 1ª edição, aonde em uma reunião de conferências, a grande mestra destrincha detalhes da elaboração Espinosiana, livro sobre o qual tecerei comentários mais a frente, em outro ensaio.


Pari passo, assisto à aula de Claudio Ulpiano disponível no You Tube (http://www.youtube.com/watch?v=ip-qq9ELhUs), um dos poucos documentos gravados em 10 partes, incompleto, mas já um grande esforço na preservação do trabalho de um dos mais instigantes professores cariocas, mesmo tendo nascido em Macaé e não no Rio de Janeiro.

Marilena Chaui

Ali ele elabora as questões da epistemologia de Espinosa, seus três níveis de conhecimento, o nível da consciência, da razão e do pensamento e fala também da liberdade como um aspecto caro do grande filósofo português, que morreu em Amsterdã, Holanda, fugindo da intolerância religiosa católica.
É uma aula impressionante, principalmente em seus trechos finais, as partes de número oito, nove e dez.
Hoje, como pessoa amadurecida, não tenho a capacidade de me deixar envolver por seus argumentos, como talvez poderia ter sido envolvido se mais jovem eu fosse.





Embora eu tenha formação filosófica, minha primeira formação foi aquela positivista, prática e pragmática, que perpassa o valor da síntese e da objetividade, que está absolutamente atrelada à realidade e àquilo que esta realidade possa me comunicar.
Embora a medicina não seja uma ciência, mas uma intersecção de saberes, desde a bioquímica e a biologia, até a biofísica e a farmacologia, a formação médica deixa em nós cicatrizes científicas indeléveis, sem nos tornar necessariamente insensíveis aos apelos da emoção.
A outra arte do Médico é aquela de correlacionar campos, e se existe um campo de verdadeira interdisciplinaridade, este é o campo do exercício médico.
Como existem filosofias, existem medicinas. Muitas são as facetas deste universo terapêutico e diagnóstico, como muitas são as apresentações das patologias e dos sinais e sintomas. Seja em que área, no entanto, o médico exerça sua profissão, na pediatria, na geriatria, na Medicina Intensiva, e mesmo no serviço de Emergência, é útil que tenha a capacidade de saber pensar, disciplinada e elegantemente, na busca pelo aprimoramento de seu desempenho.
Claudio, no entanto, é um Espinosiano apaixonado. Nega ao cientista, ao homem da ciência, o fascínio que ele recebe do leigo. 
Fala da necessidade de devolver a primazia ao ato filosófico e desatrelar a filosofia da prática científica, na condição de saber a reboque, colocando-a de novo, no trono do pensamento. Entendo seu esforço e seu desejo.
Acredito, no entanto, que é um objetivo romântico e descabido. Primeiro porque, embora não pareça, a filosofia em nenhum momento perdeu a sua importância epistemológica no seu diálogo com a ciência em geral. O que sucede é que ela continua a ser uma prática altamente esotérica, para poucos iniciados, que precisam antes de receber o batismo terem sido inoculados com o vírus da reflexão.
Por isso, a meu ver, a filosofia não se diminui no seu encontro com a prática científica. Sua coragem em invadir o espaço do não pensado e trazê-lo à luz do dia é de muitas formas, absolutamente necessária para orientar o caminho íngreme e acidentado do pensamento e da busca científica, e os cientistas sabem disto.Não só sabem, como precisam disso. Cientistas, pasmem, também especulam, também filosofam, embora filósofos recusem a experimentação como ferramenta.
Ser espinosiano é querer o novo, o impensado, o impossível nas palavras de Claudio. É, diria eu, abrir espaço para Heráclito, para o fluxo, para a elaboração dinâmica e concomitante da existência.
Claudio diz que Espinosa pensa os corpos e os encontros destes corpos. Que, quando não há a Consciência, não há um plano,  acima de nós, designando o caminho a ser seguido. Só corpos e vidas se encontrando, se chocando, aleatoriamente, randomicamente, e daí gerando outras reações em cadeia que às vêzes podem ter alguma regularidade, mas uma regularidade que nasce do Caos, no sentido grego da palavra, de movimento livre, de oceano de potencialidades que buscam se expressar, e se expressam exatamente nestes encontros.
E o que é um corpo para Espinosa? O corpo físico do Homem, da Mulher? Sim, pode ser; mas apenas estes dois corpos? Não, com certeza.
A noção Espinosiana de corpo, se bem que não original, é bem vasta, incluindo objetos inanimados, sociedades, instituições.
São, para Espinosa, estes encontros reais, palpáveis, que geram, segundo Claudio, marcas e signos, lembranças que se transformarão em mitos e idéias de mundo, em superstições, que devem ser superadas para se alcançar o próximo nível, o da razão.
Neste segundo nível, para Espinosa, segundo a explicação de Claudio, o homem compreende a sua constituição por forças “que vem de fora”, mas ainda não é o “criador” da sua realidade. Sua característica é poder enumerar e identificar as forças que vem de fora, mas não transcendê-las.
É preciso que ele chegue ao terceiro nível de conhecimento, o chamado nível do Pensamento, aonde ele é capaz da invenção, liberto que está das marcas deixadas pelos encontros fortuitos do passado.
Para Espinosa, este é o homem verdadeiramente livre.
Ele se abandona ao fluxo da natureza, como alguém que joga bilhar.
Lança-se a bola e observam-se as colisões resultantes daquele lançamento. Sim, existe uma expectativa matemática e geométrica de que estas colisões obedeçam a certa previsibilidade; mas se essa colisão for um centímetro para lá ou para cá, muitas das colisões secundárias serão modificadas e o resultado final será imprevisível.




Espinosa propõe que as colisões, os encontros, serão infinitos e complexos em conseqüências, da mesma forma que nossa mesa de bilhar imaginária com suas colisões secundárias, quando usada por principiantes no jogo. Falo principiantes porque antigos e experientes praticantes sabem exatamente aonde colocar a bola que desejam. Só que tal antecipação, para Espinosa, não existe.
Não há para ele uma Consciência reguladora que possa antecipar ou mesmo determinar o resultado matemático das tantas colisões. A Consciência ou aquilo que chamamos Consciência, para ele, é apenas uma aparência, a resultante de muitas interações, de muitas corpos que se chocaram com o nosso e deixaram em nós suas marcas e signos.
Só que repito, isto é verdade apenas para jogadores principiantes, não para grandes mestres do bilhar.
Por trás de uma jogada de um grande mestre existe sim um plano, um intenção, e só quem conhece bem o jogo pode entender o que estou dizendo.
A discussão que considera se existe ou não uma intenção, como pensa Husserl, ou uma inteligência por trás do aleatório, continuará ao longo dos séculos com cada um tomando seu partido apaixonadamente, uns do lado da Filosofia da Consciência e outros ao lado de Espinosa, na área da Filosofia da Potência.
Não importa. É isso que faz da filosofia algo tão apaixonante.Todas as possibilidades devem ser deixadas em aberto.Todas podem ser úteis. 
Afinal de contas, o elefante tem muitos lados e detalhes a serem considerados.





Aceitemos humildemente sua complexidade.
Nada disso no entanto, diminui a Maestria deste digno professor de Filosofia, Claudio Ulpiano, nesta área tão nobre quanto incompreendida pela grande maioria do gênero humano.

domingo, 11 de dezembro de 2011

“ENTREGO, CONFIO, ACEITO E AGRADEÇO”


Por Mario Sales, FRC.:;S.:I.:;M.:M.:


Quem acompanha o blog viu a postagem de um vídeo, trailer de um filme ainda em fase de produção, chamado Eu Maior, que entrevista autoridades de vários campos do conhecimento, na busca talvez de uma síntese conceitual acerca da natureza da vida, do significado da existência ou ao menos delinear o contorno desta busca através da coleção de dezenas de testemunhos pessoais abalizados.
Entre os entrevistados pincei dois e coloquei trechos de sua entrevista no blog: um que admiro, mas que não conheço, e outro que conheço pessoalmente além de admirar. O primeiro, Marcelo Gleiser; o segundo, meu querido José Hermógenes, que eu conheci com Maria, sua companheira, ainda viva e bem, belíssima nos seus sessenta anos, nos idos de 1982.
José brincava, enquanto almoçávamos no único restaurante natural de Campos, na época, que para sua surpresa, estava casado com uma sexagenária.



Infelizmente, acho que 12 ou 13 anos depois, não me lembro mais, Maria seria vítima de um atropelamento na Índia, durante uma das inúmeras viagens que ela e Hermógenes realizavam ciceroneando um grupo de brasileiros. Anos de sofrimento se seguiram até seu desenlace. Emocionei-me quando da publicação de “O Essencial da Vida”, que quando li já estava na terceira  edição, publicado pela Nova Era, uma divisão da Record, um livro de 1989. Lá pela página 205, Mestre Hermógenes, talvez falando de si mesmo entre outras experiências que deve ter ouvido na Academia Hermógenes, lembrava o trecho bíblico “Pois todo aquele que se exalta será humilhado”, (Lucas 14, 11 ou 18,14) e completava:  “e o será, porque a Vida não reconhece valor e grandeza nos bens acumulados; não respeita a quantidade de títulos honoríficos que alguém possua; a Vida não respeita o status que o indivíduo conquistou e mantém, nem o cargo político que ocupa; a Vida não respeita ninguém”( o grifo é meu).




É fácil teorizar-se sobre a dignidade e o desapego, quando não se passou por crises pessoais. Ao perder sua companheira, a Maria que eu conheci com 60 anos, belíssima, mulher que ele chamava no frontispício da 27ª edição de seu principal livro, “Autoperfeição com Hatha Yoga”, Ed. Record , de “... a esposa que Deus guardava para mim depois que eu atravessasse o deserto”, ser capaz de pronunciar uma frase tão poderosa quanto esta do título, deve ser uma demonstração cabal de superação, de transmutação de sentimentos de solidão e tristeza em sentimentos mais puros, na busca da Yoga Verdadeira, da União, da União com Deus.


Maria, posando em Vajrásana, uma postura do Hatha Yoga

Não sei, ou melhor, tenho certeza de que não conseguiria.
Tomado pelos problemas, perdi a minha capacidade de entrega, de dádiva, de aceitação. Lembro-me de que, quando mais jovem, eu era mais generoso. E me entristeço com isso. Meus problemas pessoais não são maiores do que a maioria dos meus clientes.
Sou um médico de pobres.
Não tenho uma clínica particular de peso, não vivo de meu consultório.
Meu foco são os pacientes dos postos de saúde das cidades onde trabalho e onde sempre trabalhei.
Os problemas e as angústias que me trazem todos os dias, independente de suas doenças físicas, são imensamente mais graves do que qualquer coisa que tenha me atingido ou a alguém que eu ame até agora.
De certa forma, isto coloca minha dor em perspectiva.
Como queixar-me de meus problemas se tantos sofrem, e por razões muito mais graves? Certas horas o trabalho é extremamente consolador.
Acredito que José Hermógenes tenha passado por esta experiência. Só que ele tem 34 anos de vantagem sobre mim. E uma evolução espiritual muito maior.
Talvez este velho Mestre e, eu o considero, este velho amigo, (que tem um imenso quadro do Mestre Jesus em sua sala, na Academia Hermógenes, na Rua Uruguaiana no Rio de Janeiro, um quadro tão soberbo, tão imenso, que ao passar sem vê-lo faz com que nos viremos para contemplá-lo, impressionante para qualquer místico, mesmo um hinduísta não cristão como eu), conheça tão bem a dor que saiba como fazer dela o fogo que aquece seu espírito e transmuta seus valores em compreensões mais elevadas do mundo, realizando a Verdadeira alquimia Rosacruz, sem pertencer a nossa Ordem, que é a transformação do homem de um espírito de Chumbo em outro de Ouro.
São de Hermógenes as seguintes palavras, em “O Essencial da Vida”, página 221:
“É nítida e rica a personalidade do homem sábio, que não mais se ilude com os truques do Ego, que já fez o Ego descer do trono, que não mais a ele se submete; que se identifica não com o efêmero, mas com o Eterno. Ele usa o Ego, mas se mantém na recusa de ser por ele usado, submete-o e não se deixa submeter. Para o homem sábio o Ego é como uma necessária máscara, que ele utiliza para desempenhar o papel que lhe está designado no drama do Universo. Um ator lúcido e sadio jamais se identifica radicalmente com o personagem que ele representa.”
Talvez assim, e só assim, pela desindentificação com Maya, a ilusão, e com o Ego, sua mais íntima personificação em nossas existências, possamos nos afastar de nossa própria vida e vê-la como quem assiste a uma peça de teatro, sem sofrer demasiado com a dor e sem se alegrar demasiado com a boa sorte.
É isso que o velho mestre nos lembra.
É preciso perceber que tudo isto é apenas teatro, representação, que nosso corpo não é nosso, que nossos filhos não são “nossos” filhos, que a mulher que amamos não é nossa, e que muito menos fomos bem ou mal sucedidos, mas apenas fingimos sê-lo para experienciar as emoções decorrentes deste psicodrama, desta farsa didática que é a vida comum.
Difícil. Muito difícil.
Ainda mais dentro de uma civilização que valoriza a identidade e a chamada “autodeterminação”.
Muito útil, no entanto, quando nosso objetivo mais importante, quando o “Essencial da Vida” parafraseando o velho mestre, é a Serenidade, o tesouro mais importante que podemos almejar em uma ou em muitas existências.
Encarnações sucerder-se-ão infinitamente antes que saiamos da Roda de Karma e nos libertemos deste vórtice.
Se pudermos atravessá-las desapegados, confiantes na bondade da providência divina, aceitando incondicionalmente os acontecimentos sem revolta ou dor, certos de que eles, por mais duros que nos pareçam não nos são hostis, e, entendendo isso, pudermos agradecer por eles, seremos finalmente seres iluminados.
É isto que o Velho Mestre nos lembra.
Assim seja.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

KARMA OCULTO E KARMA MANIFESTO: o papel das alterações neuroquímicas no surgimento do mal ou na sustentação do bem.


Por Mario Sales, FRC.:;S.:I.:;M.:M.:



“Nenhum aspecto da mente humana é fácil de investigar, e,
para quem deseja compreender os alicerces biológicos da mente,
a consciência é unanimemente considerada o problema supremo,
ainda que a definição desse problema possa variar notavelmente
entre os estudiosos. Se elucidar a mente é a última fronteira das
ciências da vida, a consciência muitas vezes se afigura como o
mistério final na elucidação da mente. Há quem o considere
insolúvel.”

Antonio Damásio in “O mistério da Consciência", editora Companhia das Letras



Comecemos este arrazoado com a seguinte imagem: visualizem que, em uma guerra futura, ou talvez atual, não sei, um soldado de um exército qualquer esteja no comando de uma máquina de batalha altamente sofisticada, que reaja aos seus pensamentos e caminhe ou dispare mísseis e tiros de grande calibre a um desejo mental seu. Imagine também que este portento bélico, como qualquer aparelho, seja subitamente tomado por um defeito, um mau funcionamento do hardware ou do software, tornando-se incontrolável pelo soldado que de dentro a pilota. 




Imaginemos ainda que, por causa deste mal funcionamento, esta arma poderosa comece a disparar, não contra o exército inimigo, mas contra seu próprio exército, dizimando em pouco minutos parte considerável do contingente. A quem devemos responsabilizar por esta pequena tragédia tecnológica: o piloto que, de dentro da máquina, desesperado, assiste a destruição de sua tropa, incapaz de evitá-la, ou ao técnico ou cientista responsável pela programação, que criou uma máquina de tal forma defeituosa que transformou-se num inimigo infiltrado?
Este tipo de questionamento me veio à mente lendo as pesquisas sobre fundamentos neuroanatômicos e químicos para o comportamento criminoso, que tem sido feitos nos últimos anos e que podem ser acompanhados nas referências aos pés deste ensaio.
As referências científicas indicam que lesões de lobo frontal, como no caso clássico de Phineas Gage, podem causar, ou melhor, causam alterações comportamentais capazes de transformar um indivíduo tipo Dr. Jeckel em outro do tipo Mr. Hyde.[1]
Embora prudentemente não se afirme de modo categórico que a personalidade sociopática tenha sempre um fundamento neuroanatomico[2], isto tem a ver com bom senso científico. Uma afirmação deste porte teria sérias implicações não só sociológicas como também filosófico-éticas, de tal maneira que mais elementos e dados devem ser acumulados antes de uma categórica generalização.
Existe, entretanto, consenso na comunidade científica que, em muitos trabalhos, fica evidente a correlação entre o que se chama um comportamento, digamos assim, do Mal, e alterações inatas ou adquiridas, no cérebro de certos indivíduos.
Supondo mais uma vez, que estas alterações neurológicas, se inatas, são involuntárias, ou se adquiridas, foram produtos de traumas e acidentes imprevisíveis, estamos diante de condições verdadeiramente kármicas, se não determinantes, fortemente predisponentes à manifestação de uma personalidade agressiva, desumana e alheia a noções como misericórdia, tolerância ou solidariedade.
Como no nosso exemplo fictício no início de nosso raciocínio, quem deve ser responsabilizado pelo comportamento psicopático do indivíduo em questão?
O próprio indivíduo ou o defeito de seu cérebro que o induz a tais atos?
Psicopatia, hoje aceita-se como ponto pacífico, é uma anomalia comportamental, em parte com fundamentos neuroanatômicos e provavelmente neuroquímicos. Trata-se de uma doença psiquiátrica, grave, que não tem, até o momento, tratamento conhecido, nem químico, nem cirúrgico.
No caso de Phineas Gage, a mudança de comportamento foi adquirida. O que assusta é que seu caso não é isolado.


Phineas Gage e a barra de ferro que o atingiu


As demências orgânicas, doenças que atingem os cérebros geralmente de pessoas idosas, das quais o modelo é a doença de Alzheimer, redundam na fase mais avançada, em alterações de comportamento. Muitas vêzes estas alterações trazem grande infortúnio aos familiares, já que assistem, impotentes, a transformação gradual ou súbita de seus entes queridos de pessoas dignas e capazes em seres de comportamento aberrante, com um discurso de termos chulos, vulgares, ou mesmo com comportamento francamente obsceno com membros da mesma família.

Esquema das lesões no cérebro de Phineas Gage (1823-1860)

Falamos no meio médico em que a degeneração cerebral levou a “perda dos freios sociais”, ou seja, a perda dos mecanismos criados pela educação para garantir a possibilidade de uma interação social satisfatória.
Perguntemos: aonde estavam estes condicionamentos culturais e educacionais? Provavelmente alocados em alguma região do hipocampo e do telencéfalo, no caso na área executiva do cérebro, o lobo frontal.
Ora, concluímos que a máquina defeituosa gera comportamentos defeituosos.
E qual o papel do caráter, da educação, do fator sócio ambiental no desenvolvimento de uma personalidade antisocial? O que as pesquisas mostram é que o Mal surgirá por várias razões, mas sejam quais forem estas razões, as condições neurológicas dos envolvidos devem ser considerados.

Antonio Damásio

Citando Damásio[3], nem todas as nossas decisões são produto da razão ou do pensamento racional. Para que assim seja, precisamos partir do pressuposto que o cérebro que pensa é um cérebro do ponto de vista neurológico íntegro e funcional, livre de quaisquer distorções que possam levar ao que acima chamamos um “mal funcionamento”.
É a esta predisposição neurológica,(sempre relegada ao esquecimento no debate sobre a importância da pratica do bem, a necessidade de bons pensamentos e outras pérolas do discurso moralista religioso), que precisa ser considerada quando conversarmos sobre sandices como “auto determinação”, “livre arbítrio” e o mais terrível dos equívocos, a noção de “força da vontade”.
Auto determinação, a capacidade de decidir de forma livre e desembaraçada sobre qual a melhor atitude a tomar,ou “força de vontade” não são atributos disponíveis a todos os seres humanos, mas apenas para aqueles que estão livres de patologias como depressão profunda, síndrome de down, doença de Parkinson em estágio avançado, epilepsia do lobo temporal ou autismo.
Da mesma maneira, sejamos ou não portadores de alguma patologia neuropsiquiátrica ou de uma simples neurose ansiosa, podemos ter uma série de limitações culturais que cercearão a possibilidade desta idéia descabida que supõe ser o homem livre para arbitrar quando o desejar.
É preciso considerar a saúde mental antes de discutir moral.
Podemos esperar comportamentos sensatos apenas daqueles que são capazes neurologicamente de nos dar tais comportamentos.
Imaginem um corrida, mal comparando de cavalos puro sangue. Dois animais poderosos, bem nutridos, em baias lado a lado, prontos para disparar ao tiro de aviso.
Esta é uma corrida em condições semelhantes entre os concorrentes.
Agora suponham a mesma corrida entre um pangaré desnutrido e um cavalo puro sangue. Não faz o menor sentido.
Quando generalizamos normas morais para todos os seres humanos da face da Terra, esquecemos de ter a prudência que a ciência tem, para não misturar, usando uma frase de uma amiga, alhos com bugalhos.
Só pessoas igualmente capazes neuropsiquiatricamente podem ser comparadas e avaliadas por padrões morais semelhantes. Só é senhor de seu navio e de seu destino quem tem duas mãos para segurar o leme com firmeza.
E como defeitos neurológicos são heranças ou problemas genéticos, inatos,embora não sejam visíveis, devem ser considerados como fenômenos kármicos, mas de uma natureza diferente, aquela que eu chamo de karma oculto.
Karma é tudo que recebemos como herança em uma existência. Nossa capacidade intelectual ou nosso retardamento mental ou moral são karmas. Só que, ao contrário dos problemas visíveis, como a habilidade do discurso ou a capacidade para o desenho e a pintura, aqueles karmas do tipo manifesto, a psicopatia conseqüência de uma alteração neuroanatômica não é evidente aos olhos, principalmente aos olhos daqueles que não tem formação em neurociência. Sempre terão a impressão, senso comum, de que alguém é mal por que quer ser, e não porque é induzido a isso por uma lesão cerebral. As avaliações que fazemos das pessoas que militam contra tudo que achamos ético e nobre na humanidade é uma avaliação tacanha porque não leva em consideração essas informações da neurologia médica. Não somos capazes de ser justos se não julgamos alguém ou alguma coisa sem levar em consideração todos os aspectos da questão em análise, mais ainda se desprezamos fatores decisivos na manifestação do fenômeno em análise.
Quando analiso, como médico, a situação de dementes vítimas de doenças cerebrais degenerativas, sempre falo com a família da inimputabilidade de seus atos, que eles não devem e não podem ser responsabilizados pelo que dizem ou pelo que fazem. Depois me lembro da frase- oração do Cristo, quando na cruz, dizendo “Perdoai-os Pai, eles não sabem o que fazem.”
Sempre considerei esta expressão uma manifestação da imensa misericórdia de Jesus para com todos os seres, mas talvez seja mais do que isso, mais do que simples bondade, mas sim verdadeira compreensão das limitações comportamentais da ignorância e do preconceito, dois tipos de loucura. Ser bom e generoso, muitas das vêzes, é apenas a consequência mais comum da sabedoria e da compreensão.
Precisamos desta mesma compreensão diante de seres humanos devastados ou devastadores, cuja maldade e crueldade nos causa náusea, mas que podem ser apenas vítimas de uma grave alteração neurológica.
Muitos ao ler estas palavras dirão que se trata de um absurdo, que todos devem ser responsabilizados por seus atos, que desta forma poderíamos retirar a culpa de todos os seres, independente da crueldade de seus atos. E se for assim? E se realmente aqueles que forem seres do Mal sejam assim porque foram designados pela própria Natureza para serem assim, energias destruidoras que participam do drama kármico com tanta importância quanto aquelas que chamamos forças construtoras?
Seria muito difícil admitir que não podemos culpar alguém ou alguma coisa por nossa dor, principalmente aqueles que por esse mundo afora foram vítimas de alguma violência.
O curioso é que a mensagem da compreensão, a necessidade do segundo olhar, de uma reavaliação de nossa ira contra todos aqueles que consideramos a escória da sociedade vem da Ciência, da Neurociência, e não da Religião. É a neurociência que se , levada em consideração da maneira correta, tornaria o perdão obsoleto, pois não é preciso perdoar aquilo que compreendemos.
Pergunto a mim mesmo se a crueldade ou a demência de alguém próximo a nós, um pai ou uma mãe idosa, atingida pela demência orgânica, seja de que tipo for, é menos difícil de ser compreendida do que aquela de alguém mais jovem e estranho a nós, mas que, da mesma forma que muitos idosos pelo mundo, tornou-se vítima de um distúrbio neuropsiquiátrico.
Fazemos de conta, entretanto, que são demências diferentes, e que na verdade a maldade não tem uma causa física, mas um cunho unicamente espiritual e moral.
Quanto a isso remeto tais pessoas a um ensaio meu chamado “O Mergulho”, aonde uso a metáfora do escafandro. Como rosacruzes, aprendemos que nossa alma é imortal e perfeita, emanada de Deus e não criada por ele, feita, portanto, da mesma natureza da do Criador do Universo. Esta alma perfeita em luz e sabedoria, entretanto, entra no corpo da mesma forma como entrávamos no passado em um escafandro, para descermos às profundezas do mar, onde a pressão é mais alta e precisamos de um traje que nos permita ali executar pesquisas e experimentos de toda espécie.
O homem encarna em busca de conhecimento e experiências no mundo material, não por causa de uma queda espiritual, não caindo, mas mergulhando na carne e na vida, por sua própria vontade, obedecendo a necessidade primeira do Universo, a busca incansável de sabedoria. E o meio material nos provê a possibilidade desta sabedoria, deste conhecimento, mesmo que considerando a diferença de densidade, nos obrigue a usar este traje escafândrico, o corpo humano, para realizarmos nossas experiências evolucionais.
E se nosso traje estiver defeituoso, entretanto, nosso objetivo será alcançado? Não acredito.
Ou talvez eu esteja errado e este defeito seja parte de um plano do Grande Arquiteto, que permite certas anomalias para provocar outros ajustes no drama kármico de toda a humanidade. Quem sabe?
O Deus do meu coração é Onipotente e Onisciente, sendo-me impossível acreditar que mesmo estas anomalias orgânicas ocorram sem sua autorização ou determinação.
A pergunta mística é: as almas que encarnam em corpos defeituosos o fazem como parte de um projeto, ou são atraídas para eles por afinidade físico-espiritual?
Serão obrigadas, como o soldado de nossa história, a pilotar, embora lúcidas, uma máquina enlouquecida, sofrendo com todo o mal que ela provoca sem que possam evitar pela vontade de Deus ou existe uma correlação e uma identificação entre a alma dentro do corpo e o corpo defeituoso que ela habita, também por causa desta mesma Sublime Vontade?
Quanto a isso, não faço a menor idéia. O que eu sei é que na maioria das vezes, não temos informações suficientes para fazer juízo de valor sobre comportamentos de quem quer que seja, já que sem um exame de imagem tipo pet-scan cerebral não poderemos ter uma idéia clara das condições neurológicas de mentes marcadas pela maldade, e que talvez tenham sido programadas pelo destino para representarem o lado negro no drama kármico de todos os dias.
Ao julgarmos as pessoas, lembremos da frase do Cristo, e em nossas orações peçamos a Deus por todos os seres humanos. Jamais saberemos o karma oculto que cada um carrega dentro de si.
  
[3] António Rosa Damásio (Lisboa, 25 de fevereiro de 1944) é um médico neurologista, neurologista português que trabalha nos estudo do cérebro e das emoções humanas. Atualmente é professor de Neurociência na University of Southern California. Entre os anos de 1996-2005, Damásio trabalhou no hospital da University of Iowa.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

A MUSICA

Não existe nada mais internacional, mais planetário, mais profundo e mais poderoso que a música. Ela une os sensíveis, aqueles que ouvem seu chamado, e mistura a todos em uma sopa primordial de almas, a mesma sopa de onde todos nós saímos, da qual só nos lembramos em meio aos tons e melodias dos instrumentos. Nosso pequenino planeta tem um vigor artístico imenso, e sinto que na música podemos entender como somos todos o acorde resultante de diferentes notas, diferentes vozes.
Abaixo alguns exemplos:
Philip Glass, compositor erudito e contemporâneo; uma parceria entre Glass e Ravi Shankar, Shankar que foi amigo e professor de cítara de George Harrison. Mais abaixo uma exímia violonista clássica chinesa Li Jie, tocando Bach; que foi exaltado pela sensibilidade de Glenn Gould; mais abaixo, Nelson Freire, em concerto, tocando um trecho da ópera Orfeu e Eurídice de Gluck. 
Espero que desfrutem esta variada amostra internacional da sensibilidade musical de nossa espécie.

Philip Glass - Prophecies