Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

domingo, 30 de junho de 2019

COMO LEMBRAVA ESPINOZA “O CORPO HUMANO É MAIS FORTE E MAIS POTENTE QUANTO MAIS RICAS E COMPLEXAS FOREM SUAS RELAÇÕES COM OUTROS CORPOS”. 2ª PARTE


por Mario Sales





Em “Amor para corajosos”, Pondé não analisa esses detalhes biológicos de que falei, mas traça, como filosofo, um perfil dos acontecimentos e comportamentos de pessoas vítimas da “doença do pensar”. Não tenta, corretamente, estabelecer as causas desse comportamento, mas apenas descrevê-lo, com sua característica objetividade e em capítulos marcados pela coloquialidade, com títulos como “O Amor pelas “novinhas: gosto mais de mim quando estou com ela” ou o divertido “Como saber se você é um canalha ou uma vagabunda”.
Ao longo de 188 páginas e 36 capítulos ou ensaios como ele diz, ele apenas descreve a miséria que nos impõe a fantasia do amor romântico, criação da literatura e do cinema americano até o início da segunda metade do século XX. Os fatos psicológicos e sociais não sustentam, segundo ele, a tese de que casa-se e vive-se com alguém por causa de um amor intenso, duradouro e eterno. Não que não possa acontecer, mas é mais raro, e por isso precioso, do que sonha nossa vã filosofia.



Existem vários motivos para uma relação durar muitos anos e sobreviver as rotinas e aos protocolos do afeto e necessariamente não estão ligadas a afetos positivos, como diria Espinosa.
Pode-se ficar com alguém apenas por um cálculo simples: a separação traz sempre graves prejuízos psicológicos e financeiros, fora as rupturas afetivas inerentes a esta situação.
Evitando-se o rompimento também consegue-se escapar de problemas sociais desagradáveis, que não deveriam, mas que tem grande impacto sim no nosso equilíbrio psicológico e bem-estar espiritual.
O discurso de que “eu não me importo com que os outros pensam” é mais frequente e menos sincero do que a maioria das pessoas gostariam de admitir.
A grande maioria das pessoas quer viver em paz, de preferência uma vida kantiana e não nietzschiano, como lembra Pondé.  Friedrich Nietzsche era um autor romântico e por isso via na vida audaciosa e apaixonada uma vida bem-sucedida.
O problema é suportar esta escolha com brio e satisfação porque tamanha liberdade tem um preço.
Se o indivíduo ou individua acha que pode e quer pagar este preço muito bem.
Isto, no entanto, não é o mais comum. Porque a coragem, como vimos na primeira parte, não foi distribuída pela natureza de modo equânime, entre todos os seres humanos. Pelo contrário, os covardes são a maioria, refletindo a primeira lei da vida biológica, a da autopreservação.
O medo que alimenta nossa covardia e hesitação em decidir por rupturas as vezes difíceis e que trariam grande e duradouro sofrimento por um lado, em busca de uma felicidade possivelmente passageira, mas atraente, é o mesmo medo que nos preserva de atitudes potencialmente auto destrutivas, como passar ferias no Afeganistão ou no Iraque sendo judeu ou entrar em um bairro violento tarde da noite, apenas para ver o que acontece.
Esse medo, esse receio, recebe o nome de prudência. Não é necessariamente algo errado ou certo, mas biologicamente é um reflexo correto, como coçar o lugar do corpo que foi picado, ou urinar quando se sente vontade.
A noção de que a vida melhora com o heroísmo e arroubos quixotescos é uma das nefastas consequências da visão romântica do mundo e das paixões.
Por isso o medo do amor cada vez maior, já que a população mundial hoje, graças aos recursos e facilidades tecnológicas consta, segundo o ponto de vista Freudiano, de pessoas histéricas e infantis.
Infantis no sentido de não aceitarem com facilidade os inevitáveis revezes da existência, o fracasso, a rejeição afetiva e a morte, o que revela um alto grau de imaturidade emocional, caso para psicoterapia, com certeza. E histéricas no sentido psiquiátrico da palavra[1], sendo hiper-reativas, sendo incapazes de ter, em uma palavra antiga, mas adequada, fleugma diante da desdita. Uma unha quebrada é motivo para desespero.
Lembrando épocas não tão distantes em que a água demandava dias de caminhada para ser conseguida e o alimento era escasso, o certo é que a nossa atual riqueza material (sim, mal distribuída, mas que nunca foi tão grande em nenhum período da história humana) é também a nossa maldição.
O conforto nos tornou fracos e manhosos.
E isso se reflete nos relacionamentos.
O amor e o relacionamento não são, pois, matéria para principiantes. Não falo de sexo, mas de todo o conjunto de situações que envolvem a intimidade, o relacionamento entre duas pessoas de sexo oposto. Como diz Pondé, não falo de assuntos homossexuais porque não os conheço. Só posso falar, como ele fala, da minha experiência como ser humano heterossexual, o que implica enfrentar as diferenças inerentes aos sexos. E isso não é fácil, muito menos prazeroso.
Lembremos de outra coisa. A beleza física passa, independente de nossa vontade, em outra demonstração da primazia do biológico sobre o psicológico. A perda das formas e as vezes da libido é algo duro de conviver. Envelhecer não era para os fracos, como lembra Rita Lee, cantora de rock septuagenária.
O que fazer com nosso desejo e com nossos relacionamentos? Pondé não responde porque não existe uma resposta para todos os casos.
Via de regra, a decisão é particular e pessoal, para além dos clichês de “canalha” ou “vagabunda”.
Pessoas são arrastadas pela paixão devido a inúmeras situações e nem sempre porque não tem caráter, mas sim porque tem instintos, sustentados pelas suas glândulas sexuais, endócrinas, colocadas ali pela natureza e não pela igreja ou pela sociedade.
Cada um deve assumir sua própria decisão, que não será tão livre como se pensa, já que o corpo tem suas próprias razões.
Sim, haverá consequências, mas que fazer?
Se agimos, sofremos.
Se não agimos, também sofreremos.
Só a experiencia pode nos auxiliar, já que o amor nunca é uma experiencia teórica, como Pondé lembra no início do livro com uma citação de Søren Kierkegaard: “O amor só se conhece pelos seus frutos”.
Portanto, antes de nos atirarmos a uma paixão é impossível saber se estamos mergulhando no inferno ou no paraíso. A experiência, a prudência, podem, no entanto, diminuir nossa taxa de erro e de dor, mesmo que nos arrisquemos a parecer covardes.
O importante é viver e viver é procurar relacionar-se com todo e qualquer tipo de pessoa, externamente, e da mesma forma, contemplar com serenidade e coragem todas as nossas emoções, internamente, sem censura.
Só por uma grande quantidade de encontros, podemos nos preparar para a existência.
Porque como lembrava Espinosa “o corpo humano (e a mente humana) são mais fortes e mais potentes quanto mais ricas e complexas forem suas relações com outros corpos”.
[1] A histeria (do francês hystérie e este, do grego ὑστέρα, "útero") faz referência a uma hipotética condição neurótica e psicopatológica, predominante essencialmente nas mulheres. O termo tem origem no termo médico grego hysterikos, que se referia a uma suposta condição médica peculiar a mulheres, causada por perturbações no útero, hystera em grego. O termo histeria foi utilizado por Hipócrates, que pensava que a causa da histeria fosse um movimento irregular de sangue do útero para o cérebro. Segundo a Psicanálise é uma neurose complexa caracterizada pela instabilidade emocional. Os conflitos interiores manifestam-se em sintomas físicos, como por exemplo, paralisia, cegueira, surdez, etc. Pessoas histéricas frequentemente perdem o autocontrole devido a um pânico extremo. Foi intensamente estudada por Charcot e Freud.

COMO LEMBRAVA ESPINOSA “O CORPO HUMANO É MAIS FORTE E MAIS POTENTE QUANTO MAIS RICAS E COMPLEXAS FOREM SUAS RELAÇÕES COM OUTROS CORPOS”.




por Mario Sales




“Desafiando seus pares, Espinosa recusou a concepção antropomórfica de deus, concebido como um “super-homem transcendente, monarca, juiz, legislador do mundo e dos homens”; inserindo a visão de deus enquanto “substância infinita” que “existe em si e por si mesmo” e sem a qual “nada existe e nem pode ser conhecimento”. Frente a esse princípio, ele se opôs à tradicional separação entre alma e corpo. Como os seres são expressões dessa substância infinita (deus), “a natureza física e a natureza psíquica se dão simultaneamente e não podem ser separadas, porque trata-se de campos de realidade que exprimem sempre a mesma substância”. Neste sentido, detalha a professora Chauí, “ideia e corpo são um só”, “exprimem a mesma coisa de maneiras diferentes” e produzem “regiões diferenciadas da realidade” (psíquica e física). Disso advém a premissa: “o corpo humano é mais forte e mais potente quanto mais ricas e complexas forem suas relações com outros corpos”.
O contrário também é válido: “o corpo humano é mais pobre e mais fraco quanto mais isolado se mantiver em relação a outros corpos. A inter-corporeidade [relação entre os corpos] é a condição da nossa força vital”, ensina Marilena. Isso posto, ela aponta que, segundo Espinosa, “quanto mais se mergulha no corpo, mais capacidade cognitiva a mente tem. E quanto mais apto o corpo, mais apta a mente estará para perceber as coisas”, daí o equívoco dos que defendem que o “conhecimento verdadeiro tem como pré-condição que a mente se afaste do corpo e opere no campo puramente intelectual”.
Marilena Chauí in https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Marilena-Chaui-Liberdade-e-afastar-as-paixoes-tristes-/4/36877



Só conheci realmente Espinosa no curso de graduação em Filosofia.
Antes, como era de meu costume, eu lia trechos aqui e ali da sua obra, me alimentava de citações esparsas, falava com outras pessoas na ânsia de que alguém soubesse mais do que eu sobre o assunto e assim se transformasse em meu mestre.
Eu buscava alguém disponível, um bom encontro, como o próprio Baruch diria; mas isso era apenas procrastinação.
Eu deveria ir à obra, ler a Ética, o Tratado Teológico Político, o Tratado sobre a Reforma do Entendimento, mas havia em mim uma ansiedade tão intensa que me paralisava. O que eu começava a estudar, a ler, me provocava o desejo do desenlace o que me cansava antes que eu concluísse dois terços da leitura.
Na época eu não entendia que se tratava de uma neurose, problemas ligados ao ambiente familiar com uma mãe vitima do que hoje se classifica de transtorno bipolar e que ficou sem diagnóstico por toda a vida, até que para tratar minha própria filha acabei descobrindo o nome da patologia que tinha me transtornado infância e adolescência.
Anos mais tarde, após a faculdade de Medicina e depois a de Filosofia, anos de Yoga e meditação e o auxílio de seis anos de terapia em Carl Rogers eu tinha resgatado pelo menos uma autonomia psicológica e intelectual que melhoraria pouco a pouco.
E talvez a coisa mais agradável deste processo de cura foi conseguir finalmente ler os pensadores que me fundamentaram a caminhada, que me mostraram que eu não estava só como supunha em minhas elucubrações e intuições e que, sim, mentes muito mais argutas e poderosas que a minha haviam chegado a conclusões semelhantes.
Espinosa foi um deles. Principalmente a Ética, escrita como ele dizia ao estilo de Descartes, com o mais cuidadoso rigor logico, na intenção de construir um documento irrefutável, estruturado e longe de ser um texto romântico acerca de crenças de um holandês sonhador.
Não. Espinosa quer com seus textos contrapor a visão analítica de Descartes, unir o que ele separou, mostrar a integridade do tecido do real, antecipando em quinhentos anos a moderna neuropsiquiatria.
Alma e corpo eram para ele não duas coisas separadas, mas uma única continuidade com densidades diferentes, interinfluenciáveis, como de fato hoje constatamos.
Bastariam os conhecimentos contemporâneos da neuroquímica das emoções para validar o que antes foi um exercício essencialmente racional e reflexivo.
Espinosa não foi apenas brilhante em suas colocações, mas assustadoramente avançado para sua época. A pobreza em que viveu e a simplicidade que marcaram sua existência mostram o poder de uma mente diferenciada.
Existe, entretanto, um debate ainda pendente.
O da falácia do livre arbítrio, este engenhoso conceito agostiniano que marcou e marca o comportamento e o pensamento humano.
Ainda hoje, com a força das evidencias que se acumulam sobre as razões biológicas das alterações de humor e de comportamento, supomos ter, sim, liberdade para decidir nossos atos, escolher opções ditas soberanas e que, na verdade, são motivadas por complexas reações bioquímicas que interagem com o meio ambiente, com as condições alimentares e respiratórias do indivíduo e até refletindo a intensidade de seus exercícios físicos.
Todas estas interações, caracteristicamente espinosanas, são as causas reais do pacifismo ou da agressividade, e até da crença ou do ceticismo. A construção do pensamento não é produto apenas da elaboração intelectual, mas sim do encontro entre estas reflexões mentais com as condições sociais e psicológicas, e espinosanamente falando, neuroquímicas, daquele que reflete.
E claro aí se insere, a meu ver, o desejo e a paixão.
No fenômeno do amor, manifestações hormonais e neuroquímicas são tão importantes quanto as chamadas projeções, transferências e contratransferências psicanalíticas.
A coragem, dita uma virtude; a determinação e a capacidade de concentração, ingenuamente supostas como produto de esforço e da vontade, pressupõem antes de tudo condições neurológicas capazes de permitir suas manifestações.
Não é fácil para um amante da música tornar-se um pianista. Ou para um ator aperfeiçoar sua performance. Demandará estudo e prática ininterruptas, por anos.
Porém existe a necessidade de, antes da prática, ter o indivíduo a potencialidade para praticar e a saúde neuroquímica para a perseverança.
Nenhuma mente que não seja minimamente saudável, nenhum cérebro minimamente competente pode realizar o mesmo que cérebros que trazem uma herança e um resultado biológico peculiar fadado ao sucesso. Esse determinismo biológico parece um retrocesso no conceito ético de responsabilidade humana pelos seus atos. Ledo engano. As pessoas continuam crescendo enquanto cometem seus enganos e equívocos, mas dentro da sua própria capacidade, dentro da sua escala própria de possibilidades.
As interações são dinâmicas e ininterruptas e ao erro, nas pessoas comuns, sucede a culpa e a vontade de corrigir, desde que estejamos falando de pessoas com amígdalas cerebrais normais. Pois naqueles em que este pequeno detalhe anatômico é minúsculo, quase imperceptível, não haverá possibilidade de caráter, culpa ou remorso pelo erro.




Estamos no campo da psicopatia, do assassino frio e sem possibilidade de reabilitação. Pessoas capazes de tanto mal que melhor seria se não tivessem nascido.
Portanto, antes de falarmos das virtudes do esforço, da importância do esclarecimento através da leitura e do estudo, lembremos que os mecanismos físicos por trás do comportamento influenciam decisivamente os afetos, como Espinosa chamava, e esses, por sua vez, moldam o comportamento ou a estratégia do uso do saber e do intelecto.
Do mesmo modo são influenciados nossos sentimentos e o modo como os administramos.
De há muito sabemos que não é a técnica ou a ciência que nos transforma em pessoas melhores, mas a qualidade de nossa saúde mental e de nossos afetos.
Espinosa falava em afetos ativos e passivos (paixões) que marcam a vida de grande parte da humanidade, dizendo que “Por afeto compreende-se as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída”. Ele supunha que todo encontro, todo evento de contato entre o ser e outro ser ou o mundo trazia um aspecto positivo ou negativo. Se eu recebo um beijo, trata-se de um encontro gerando um afeto positivo, que aumenta minha potência. Se tropeço e machuco meu pé em uma pedra, trata-se de um encontro de aspecto negativo, que diminui minha potência.
Talvez a sua falha, que seria, quem poderia imaginar, enriquecida e aperfeiçoada por Schopenhauer, tenha sido supor os encontros como algo sempre externo ao ser, quando, pela brilhante ideia schopenhaueriana de sublimação das demandas do corpo, percebemos graças ao filosofo alemão que também temos encontros internos entre os aspectos físico(químicos) e mental(pensamentos, emoções, desejos) da substancia contínua espinosana, nos quais as percepções mentais são apenas o reflexo de situações biológicas como o pesadelo daquele que dorme com fome, ou o sonho com rios e mar daquele que bebeu líquidos demais antes de dormir e sente durante o sono a bexiga pedindo atenção.
Mas estes são exemplos banais e mecânicos ainda.
Minha tese e de alguns neurocientistas é de que até o que chamamos opções não são mais do que comandos do corpo sobre a mente, que acontecem milésimos de segundos antes de alguém pensar em fazer alguma coisa, a clássica vontade.
Sempre se supôs que o ser desejava e depois ia em busca do desejo. Ao que parece o corpo deseja, lança um estímulo para a mente que então elabora um estado de desejo e um objeto deste desejo para aí sim, o corpo partir para a ação de ir em busca do desejado.
Pelo jeito não escolhemos nem quem amamos, mas amamos aqueles que nosso corpo e mente nos ordena desejar e amar.
Muita calma nessa hora. Não é reprimir-se perceber esse jogo de espelhos e pisar no freio da paixão para ponderar as consequências de um arroubo inesperado.
Porque os estados de paixão e desejo de natureza sexual e romântica passam, como uma virose.
Mesmo os medievais, como lembra Pondé[1] em “Amor para Corajosos” (Planeta, 2017) já chamavam a paixão de “maladie de pensée”, uma doença do pensar, ou melhor, simplesmente uma doença, “páthos”.
Foi seu livro que me motivou estas reflexões.
Continuaremos esta análise em outro ensaio.



[1] Luiz Felipe de Cerqueira e Silva Pondé (Recife, 1959) é um filósofo e escritor brasileiro, doutor em filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e com pós-doutorado pela Universidade de Tel Aviv, em Israel. Escreveu, dentre outras obras, o Guia Politicamente Incorreto da Filosofia e Marketing existencial. É colunista da Folha de S. Paulo, escrevendo semanalmente no jornal.


domingo, 9 de junho de 2019

UM APELO AO BOM SENSO



“Não basta delirar e achar que está filosofando”
Luis Roberto Salinas Fortes,
professor de filosofia da USP,
citado por Mario Sergio Cortella em
“Filosofia, e nós com isso?”, 2019


“Diz o teólogo: Um filosofo é parecido com um cego 
procurando em um quarto escuro um gato preto que não está lá. 
E o Filósofo refuta: Sim, pode ser, mas com certeza um 
Teólogo teria achado esse gato”
Julian Huxley, biólogo e pensador britânico, em “O Homem no mundo Moderno”






Esta é a frase por excelência, que resume toda a minha angústia como ouvinte de discursos os mais absurdos, os mais fantasiosos, porém relatados com uma calma e suavidade que supõe serenidade na insensatez, equilíbrio onde existe apenas loucura.
"Não basta delirar e achar que está filosofando". Da mesma maneira "não basta delirar e achar que é um mistico". Todos temos que pensar com lucidez.Pensar com lucidez, com Luz, exige cuidado, método, embasamento. “São demais os perigos desta vida para quem tem paixão” dizia o poeta. A razão precisa fazer o balanceamento da equação, seja aonde for que se faça necessária. Mesmo na Arte, que não prescinde do coração e do instinto para manifestar a beleza, a razão ali está no método, na combinação das cores de um quadro, nos contornos de uma escultura ou na harmonia ou desarmonia dos sons de uma composição.
Portanto não me venham dizer que “eu prefiro ser essa metamorfose ambulante”. Isso, na verdade, é apenas o Caos e a preguiça de estabelecer padrões de pensamento, que não vão engessar o raciocínio e a percepção, mas construirão, isso sim, a habilidade de recolher com mais habilidade e eficácia as imagens, os sons e os estímulos com os quais a realidade nos presenteia todos os dias, horas e minutos.
Se eu conheço as notas musicais e sei tocar um instrumento, representarei a beleza das águas em um rio, ou das florestas a minha volta em uma linda sinfonia, como fez Beethoven ou o nosso saudoso Vila. Mas se não tenho este conhecimento, este domínio da técnica musical, mas domino a habilidade da pintura, serei capaz não só de tentar reproduzir o que contemplo e eternizar aquele momento, aquele por de sol, aquelas montanhas, aquela mulher, transformando-os, todos , em estímulo e inspiração para os que vierem a contemplar meu trabalho.
A “metamorfose” em movimento não é a oscilação de posições ao sabor das emoções momentâneas e fugidias. Um indivíduo equilibrado deve ter, sim, princípios que o guiem na caminhada da vida. Não se constrói uma personalidade apoiado na Doxa, a opinião descompromissada com o real, a filha do Achismo, mas sim com a ajuda da Episteme, o conhecimento fundamentado na experiencia ou na matemática, ou em ambos de preferência. Tudo deve ser testado e verificado.
Toda declaração deve ser averiguada quanto a sua confiabilidade. E se aquele que a fornece é um indivíduo equilibrado, terá não só presteza, mas também prazer em apresentar seus argumentos e suas evidências.
Só o tolo se ofende com a crítica e o questionamento. Só o tirano e o estúpido não podem ser contestados, sem que isso pareça uma agressão de quem pergunta.
O homem do conhecimento, o filosofo, o cientista, e mesmo o místico mostrará satisfação em ser indagado, estímulo em que o interroguem, expressando sua noção de que só é útil aquele que pode servir a alguém ou ao grupo que pertença. Lembrando a frase do “Venerável Beda”, o monge britânico do século VIII, também lembrado por Cortella em seu texto, “há três caminhos para o fracasso: não ensinar o que se sabe, não praticar o que se ensina; não perguntar o que se ignora.”
E para ensinar é preciso saber, de modo seguro e fundamentado, aquilo que se sabe.
Ninguém, em sã consciência, passaria uma virose altamente mortal sabendo-se transmissor de tal mal. Da mesma maneira, nenhum ser humano de boa índole passaria adiante informações sem fundamentação, sem confiabilidade, reservando àqueles que deseja servir o conhecimento de excelência, aquele que resistiu ao teste dos séculos, sobre o qual repousam a cultura e o gênio de tantos homens e mulheres que trabalharam de modo obstinado para construí-lo.
Nenhum de nós, homens e mulheres de boa vontade, tem permissão para chamar o delírio, puro e simples, de conhecimento ou arte.
Temos o compromisso de analisar e aperfeiçoar o que foi recebido, melhorando nosso conhecimento a partir do ponto em que nossos ancestrais foram interrompidos, pela morte física ou pela incapacidade mental.
E isto vale para artistas, cientistas, filósofos e místicos.
Sem distinção.