Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sábado, 21 de setembro de 2019

O USUÁRIO DO COMPUTADOR, O SOFTWARE E O HARDWARE.


Por Mario Sales





Os três ensaios sobre a visão espinozana (1º e 2º de 30 de junho e o 3º de 6 de setembro) das razões do comportamento emocional não foram suficientemente claros em suas assertivas e conceituações. Em parte, é bem verdade, por causa do que eu disse em “Palavras” (3 de agosto de 2019) “quando falamos, falamos com nossa própria boca. Os outros nos escutam com seus ouvidos”; por outro lado, entretanto, tudo pode ser dito sempre de modo mais claro.
No terceiro ensaio, eu deixei claro que a minha concordância com a visão atual, a qual vê inegáveis sinais do papel do instinto e do corpo em muitas das manifestações mentais não significa que eu tenha deixado de acreditar na existência de um “escafandrista” dentro do “escafandro”. Mente, para mim, não é o espírito, mas outro órgão de percepção do real, uma estrutura de intermediação entre nós e o que nos cerca, alimentada pelas demandas do corpo e usando o cérebro como estrutura, não de produção de ideias e pensamentos como hoje acreditamos, mas sim de recebimento e sublimação de impulsos corpóreos em processos mentais, como lembrava Schopenhauer, ou de transformação de percepções externas em conceitos e idéias, como postulou Immanuel Kant.
O cérebro não produz pensamentos, mas traduz em pensamentos as sensações que percebemos através dos sentidos, tanto fora do corpo, por exemplo através da visão e audição, como dentro do corpo, via medula espinhal. A função de transformação de idéias em impulsos mecânicos, realizada pela ação do sistema límbico sobre a neuro hipófise, e desta sobre o corpo pela adenohipófise, mostra um sentido do movimento de densificação em atitudes do que, antes, era apenas uma imagem ou desejo. Da mesma maneira, em sentido contrário, existem nervos aferentes que trazem até o cérebro o que antes foi a percepção de uma deficiência de potássio ou de hidratação, causando o irresistível desejo de consumir bananas ou de tomar água.
Uma outra imagem possível é supor o corpo, o hardware do “escafandro”, e a mente, o software, enquanto o escafandrista está por trás de ambos, indicando o rumo da pesquisa e da caminhada no fundo deste oceano material.
Embora posamos demonstrar a existência do escafandro de muitas maneiras, a presença de um escafandrista dentro dele segue indemonstrável, a ponto de supormos que tal coisa não exista.
A ausência do escafandrista não é a visão que eu abraço. Não é a minha crença.
Embora não possamos ainda individualizá-lo por completa falta de tecnologia para isso, o que somos em verdade está lá, dentro de nós.
Não é nosso cérebro portanto, complexo e sofisticado, que nos dá nossa condição de indivíduos, embora sem ele não pudéssemos, aqui, nesta dimensão, nos expressar adequadamente.
Existe o indivíduo sim, mas por detrás de todas estas estruturas, usando-as e às vezes confundindo-se com elas, cometendo equívocos que só podem ser evitados quando o conhecimento estabelece com alguma clareza os limites de cada parte deste conjunto que formamos com nossa mente e corpo.
A época em que estas coisas ficarão mais claras ainda não chegou, mas chegará. E talvez aí sim, possamos entender que estamos apenas vestindo este corpo, absolutamente fundamental à nossa experiência terrestre, mas não somos o corpo, assim como o escafandrista não é o escafandro, mas está nele, em uma relação de interdependência intensa, de tal forma que pode parecer que são uma coisa só.
E para o bem da experiência da en-carnação, ou “escafandrização”, é bom que seja dessa forma.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

CRENÇAS



Por Mario Sales





“Recapitulando: a Doutrina Secreta foi a religião universalmente difundida no mundo antigo e pré-histórico. As provas de sua difusão, os anais autênticos de sua história, uma série completa de documentos que demonstram o seu caráter e a sua presença em todos os países, juntamente com o ensinamento de seus grandes Adeptos, existem até hoje nas criptas secretas das bibliotecas pertencentes a Fraternidade Oculta.”

Doutrina Secreta, volume 1, Cosmogênese, pág 57, Ed Pensamento.

É preciso crer para o estudo esotérico. Não necessariamente saber, mas navegar em meio as informações que nos chegam de vários textos acerca de feitos extraordinários e pessoas incomuns que viveram e andaram neste planeta como nós andamos.
É comum lermos em textos considerados iniciáticos as expressões “isto prova…” ou “com isso demonstramos…” e outras, que visam dar um ar de credibilidade a estes mesmos textos, como se por um passe de mágica, afirmar passasse a ser provar.
Já comentei em relação a Isis sem Véu, um texto importante de Helena Petrovna, a ingenuidade presente em suas afirmações ao descrever como verdadeiros relatos de pessoas que, segundo ela, “gozam de reputação ilibada”, digamos assim.
Ou seja, naquele século, o XIX, ainda se considerava prova irrefutável não o que fosse demonstrado, mas o que fosse testemunhado por alguém que no consenso da sociedade tivesse uma reputação respeitável.
Eram outros tempos e o ceticismo cartesiano não tinha ainda ganhado a importância que recebeu no final do XIX e em todo o século XX. Ou por outra, o esoterismo ainda achava que a expressão provar podia ser usada de modo retórico, sem a necessidade de ser acompanhada da descrição do experimento ou expressão matemática que a sustentasse como tal.
Assim, nós, esoteristas, vivemos ingenuamente de crenças. Nos últimos séculos o exercício esotérico aproximou-se perigosamente da religião, tecendo lentamente um conjunto de afirmações que não são acompanhadas das necessárias e tão desejadas demonstrações que a maioria dos neófitos em escolas iniciáticas gostariam de ver.
Fala-se inclusive de um tipo de atitude que é considerada a mais adequada quem quer se aventurar neste campo, qual seja, “na ciência, ver para crer e no misticismo, crer para ver”.
Isso realmente me preocupa.
Este é o nosso maior pecado, enquanto místicos rosacruzes e esoteristas sinceros. Nossa erudição não vem acompanhada de um esforço determinado em criar as condições que permitam uma experiencia comum de fatos e conhecimentos palpáveis que sustentem nossas afirmações.
Lewis lembrava que a verdadeira prática rosacruz era baseada na confiança e não na fé, da mesma forma que “confiamos que o sol vai se levantar amanhã porque vimos este fenômeno acontecer em todos os outros dias de nossa existência.”
Lewis é e deve continuar a ser nossa referência contemporânea para sabermos o que é verdadeiramente rosacrucianismo. Quanto a este fato, suponho, deve existir um indiscutível consenso.
E se assim for, não são a fé ou as crenças que temos que devem guiar nosso comportamento e pensamento, mas a CONFIANÇA em experimentos que mostram que as técnicas rosacruzes funcionam.
Experimentos e fatos demonstráveis.
Sim, podemos sentir em nossos ossos que certos axiomas esotéricos são verdadeiros sem que tenhamos provas externas disto. Ato contínuo, no entanto, devemos ir em busca da demonstrabilidade desses axiomas, de experimentos que os comprovem e consolidem sua realidade.
Ciência é buscar tornar real aquilo que sentimos na alma que deve ser real. Antes que isto ocorra, no entanto, nossas crenças são, como o nome diz, apenas crenças, sem a sustentação dos fatos, o que não quer dizer que tenham menos valor para nós, mas que devemos cuidar com carinho e prudência e não querer arrogantemente que o mundo não iniciático aceite nossas afirmações sem ceticismo.
Em nome do bom rosacrucianismo, e considerando que Renée Descartes era membro de nossa ordem, o ceticismo cartesiano deveria estar primeiro em nós, e não naqueles que não são iniciados em nossa sublime fraternidade.
E o que vemos em nosso meio? Discutimos crenças, narrativas, somos estudantes não de fatos demonstráveis, mas de ideias.
Nada contra. Só que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.
Por isso é desperdício de tempo e pura retórica falar em diálogo com a ciência sem que tenhamos sério empenho em produzir condições experimentais que sejam passíveis de serem usadas nesse diálogo.
Da mesma forma que os rosacruzes não são obscurantistas ou contra a ciência, da mesma maneira a ciência não é contra nós.
O que ela espera, e nós deveríamos abraçar esta posição, é que apresentemos alguma coisa palpável, compartilhável, testemunhável por muitos, independente de nossa mera e simples fé.
A fé como conexão com o divino, no eixo vertical, pode e deve ser estimulada como uma virtude. Já no relacionamento estre pessoas, no eixo horizontal, deve ser substituída pelas ideias fundamentadas em fatos e demonstrações.
E se existem poderes verdadeiramente incomuns que sejam demonstrados e que abandonemos esta época das narrativas sem provas e passemos, finalmente, a um período de “contar e mostrar”, como se faz nas escolas primárias dos estados unidos.
Como a afirmação de que existem livros em cavernas secretas, em algum lugar inacessível do Himalaia. Ou que certas coisas não devem ser reveladas porque são extremamente perigosas “no atual estágio de evolução da humanidade”.
Sinceramente o homem sempre foi, e infelizmente por algum tempo ainda será um indivíduo perigoso, para outras espécies e para si mesmo, tendo ou não acesso a esses ditos “delicados conhecimentos ocultos”.
O conhecimento revelado, já disponível, é suficiente para realizar grandes estragos no tecido social e na civilização.
Pra terminar, tenho Fé que este texto seja profético, e que até aqueles que tem escondido coisas entendam que precisamos começar a revelá-las, precisamos compartilhar informações e fatos, pelo menos entre os chamados “iniciados”, já que nem entre estes últimos os fatos são uma mercadoria abundante.
Ciência não é opinião ou crença.
Ciência é conhecimento baseado em evidências.
Livros secretos e ocultos, que não podem ser lidos por ninguém, são absolutamente inúteis.
Da mesma forma que é inútil uma crença que não se sustenta em fatos.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

COMO LEMBRAVA ESPINOZA “O CORPO HUMANO É MAIS FORTE E MAIS POTENTE QUANTO MAIS RICAS E COMPLEXAS FOREM SUAS RELAÇÕES COM OUTROS CORPOS”. 3ª PARTE



por Mario Sales





Mandei os primeiros dois ensaios para alguns amigos para colher suas reações.
Foram as mais variadas.
Os mais ligados ao discurso científico destacaram a coerência do texto com a compreensão atual da neurociência. Os com formação científica tão sólida quanto espiritualista demonstraram um certo embaraço diante das propostas, que não poderiam em sã consciência contestar, mas que, embora não tenham dito de odo explicito, deixaram uma impressão incomoda materialista.
E finalmente, os de formação essencialmente espiritualista, disseram com todas as letras que um raciocínio peca por relegar os aspectos espirituais a um plano secundário ou mesmo inexistente.
O fato é que, no meu entusiasmo e paixão, esqueci de dizer que de forma alguma, nego a complexidade da alma, a sua existência, ou afirmo a preponderância do corpo sobre o espírito.
Minha concordância com Espinoza e com a visão neuro científica contemporânea advém de que, simplesmente, não posso desprezar o aperfeiçoamento de nossa compreensão dos mecanismos químicos e hormonais de nosso veículo de evolução, o corpo.  
A alma continua lá, intocável, em minha mente. Continuo a crer, rosacrucianamente, que somos uma alma com corpo e não um corpo com alma.
O que evidencio, entretanto, é que uma vez que melhore nossa compreensão de nosso mais importante instrumento, podemos da mesma maneira transcender uma serie de equívocos que fazem com que suponhamos nossos impulsos que são do corpo, ou que encaremos com embaraço e vergonha pensamentos absolutamente naturais considerando nossa condição peculiar de existência.
Em um ensaio antigo (O Mergulho) usei a metáfora do escafandro para o corpo. Compreender nosso escafandro pode ser vital a nossa sobrevivência no fundo do oceano da existência. Como o instrumento, o escafandro não pode ser considerado uma limitação, embora seja limitado. Ele nos possibilita a exploração das profundezas do mar como a roupa do astronauta o protege da falta de oxigênio no espaço. Da mesma forma o corpo precisa ser compreendido, não porque o espirito não importe, mas porque ele, corpo, importa tanto quanto a alma, já que, em termos de existência, um não sobreviveria sem o outro e a própria razão da existência, existir para aprender, seria inviabilizada.
Não me torno um espiritualista pior se me empenho em aumentar meu conhecimento sobre a natureza que nos envolve, e cuja manifestação mais próxima é nosso próprio corpo.
Munido dessas informações que o método cientifico acumula, ano após ano, eu posso compreender melhor minhas atitudes e, principalmente, olhar para mim mesmo com mais misericórdia, incapaz a partir daí de ter um viés moralista ou marcado pela culpa. Uma das frases mais interessantes de Spencer Lewis é aquela que diz “todos os instintos foram colocados em nós por Deus; portanto, todos os nossos instintos são santos”.
Conhecer o corpo, as razões do corpo, seus mecanismos, é entender suas motivações e as consequentes alterações que provoca em nossa mente e comportamento.
Muitas foram as escolas que lidaram com o comportamento humano; infelizmente todas limitadas por uma postura parcial do comportamento, ora compreendendo-o como somente uma consequência da biologia, ora supondo-o derivado apenas de opções espirituais e éticas, sem compreender que são universos interpenetrantes, que colhem um do outro energias e realizam uma condensação das mesmas em resultantes psicológicas e físicas, a um só tempo.
Uma importante geneticista brasileira usou em uma fala uma expressão que me causou grande impacto na época. Ela disse: “Genética não é destino.” De fato. Existe um genótipo sim, uma herança, que terá de dialogar, entretanto, com um fenótipo, com um ambiente e uma dada situação psicossocial, diálogo do qual resultará o individuo como o conhecemos.
Da mesma forma, pela própria natureza da relação íntima entre alma e corpo, nosso comportamento também será afetado tanto por nosso karma quanto por nossos movimentos bioquímicos que Espinoza tão brilhantemente antecipou e que a neurociência hoje evidencia.
Não são, no entanto, conhecimentos excludentes.
O autoconhecimento não é apenas de natureza espiritual. Conhecer o corpo para usar e relacionar-se melhor com o corpo é tão importante para o espírito quanto o estudo e o aprimoramento filosófico.
Por isso os yogues não falavam em apenas meditar, mas elaboraram uma serie de práticas físicas, respiratórias e digestivas na intenção de encontrar o equilíbrio entre o veículo e seu usuário.
A alma não é a mente, mas antes tem na mente a resultante dos processos eminentemente espirituais somados aos impulsos sublimados das demandas essencialmente orgânicas (fome, sede, desejo sexual, reflexo de defecação, frio, etc).
Nossa compreensão deste processo de relacionamento evolui século após século e embora intuamos muito de sua natureza, ainda estamos longe de compreendê-lo plenamente e usá-lo a nosso favor, sem transformar em culpa o que é legítimo ou em vergonha o que é , em princípio, santo, como lembrava Lewis.
Todo conhecimento que recusar um de nossos aspectos em detrimento do outro é falso e incompleto.
Precisamos integrar em um único tecido toda a realidade, o que alias sempre foi o sonho do nobre pensador holandês citado em epígrafe.