Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

domingo, 9 de fevereiro de 2014

A HERANÇA DE COMENIUS

por Mario Sales, FRC, SI, gr.: 18 CRC



A palavra "grade" ou sua correlata "degree", em inglês, refere-se a noção de grau, degrau, categoria, etc. "Grade" tem mais a ver com notas escolares enquanto "degree"com situação social, gradação ou diploma.
Lendo uma monografia da Ordem, do décimo segundo grau, a de número 227, na sua página 2, deparei-me perplexo com o seguinte trecho:
"É devido a essa lei que estou agora tentando escrever esta monografia sobre minha compreensão e minhas experiências ao longo da "senda mística", tal como descrita nas instruções no décimo primeiro e no décimo segundo graus, de nossa Amada Ordem. As instruções ali contidas são "A Busca do Santo Graal". A palavra Graal ([pronunciada] "grail", em inglês) significa gradual; isto é por estágios ou graus, e este é o verdadeiro caminho rosacruz."
O curioso é que esta monografia, informa-se no preâmbulo, reflete o ponto de vista e foi escrita por uma sóror canadense, ou seja, alguém nativa de língua inglesa, provavelmente muito mais a par da semântica anglosaxã do que nós sul americanos.
E eis a razão de minha perplexidade: Graal é parte de uma expressão que completa é Holy Graal, usada nos Contos Arturianos, a Lenda do Rei Artur e da Távola Redonda, e que surge, pela primeira vez, em um conto inacabado chamado "Perceval de Galois", um romance de Crétien de Troyes, "( 1135– 1191) um poeta e trovador francês do final do século XII. Foi um dos primeiros autores de romances de cavalaria, sendo também considerado o primeiro grande novelista em língua francesa. Suas obras inspiraram a literatura em toda a Europa Ocidental durante a Idade Média."[1]
Holy Graal, neste conto, representa um Cálice Sagrado, aonde residiria a essência da Cristandade, o Sangue de Cristo, simbolizando a Iluminação para quem o encontra.
Graal, no sentido de cálice, nada tem a ver com grau, "degree" ou "grade", e isto deve ser mais claro para um canadense do que para um brasileiro, ainda mais uma mística canadense rosacruciana.
Sei que pode parecer bizantino e exagerado atentar para este detalhe, mas considerando que este texto está em uma monografia da AMORC isto me causa algum constrangimento e embaraço.
Em cursos na Morada sempre ressaltei a meus fratres e sorores que tenham uma atitude mental crítica e investigativa, que uma Ordem como a nossa, que tem no seu histórico filósofos como Descartes, criador do Ceticismo Metodológico, ou Leibniz, é uma Ordem de curiosos e perspicazes investigadores do homem e de seus poderes latentes, seja através da meditação e da oração, seja através da razão apoiada na espiritualidade.
Para minha tristeza, alguns argumentaram que não se sentiam aptos a isto, que não eram pessoas intelectualizadas, que não haviam recebido treinamento mental para tal coisa e não se sentiam capazes de, em um momento tão reservado e espiritualizado como a prática do Sanctum no Lar, criticarem e analisarem os textos que estivessem lendo.
Ora, o que difere o estudante rosacruz, na minha modesta opinião, de outros estudantes, é a sua sagacidade e serenidade. Sagaz não é aquele que acumula títulos acadêmicos, mas aquele que estuda e conhece a natureza humana e por isso, olha com cuidado e atenção tudo que é trazido diante de seus olhos e mente.
Lembro-me de ter lido uma vez, em uma monografia, que a "Concordância", aquele pequeno trecho da contracapa de todas as nossas monografias, estimularam muitos estudantes rosacruzes a se aprofundarem nos textos de filósofos e cientistas, a se interessarem por temas aparentemente distantes de seu cotidiano, ampliando assim seu conhecimento e discernimento do mundo ao seu redor.
Entregar-se a Deus no serviço devocional e da humanidade não implica a perda do senso crítico, pelo contrário, requer discernimento, em sânscrito Viveka, uma das virtudes exigidas do Yogue na tradição hinduísta.
Por isso devemos sim pensar sobre o que lemos nas monografias, nem que seja para honrar o terceiro degrau da Escada de Rá, a prudência, e estranhar textos sem sentido, ainda mais considerando o contexto em que foram redigidos.
O que chama a atenção além do erro da sóror canadense, é o fato de o texto ter passado batido e sem, aparentemente, nenhuma análise prévia, ter sido impresso, traduzido e enviado para todas as partes do mundo rosacruz como uma peça de qualidade, quando muitos dos artigos de autores brasileiros, ao contrário, sequer chegam ao mundo anglosaxônico ou mesmo são traduzidos para o francês, hoje a língua do nosso atual Imperator, como se a produção intelectual dos rosacruzes sul americanos não fosse relevante para o resto do planeta.  
Esta é uma Ordem Mundial e complexa, da qual me orgulho de ser membro, e mais ainda, de ter como companheiros de Ordem algumas das melhores mentes, do ponto de vista humano, mas também do ponto de vista intelectual.
Em função disso, defendo um maior cuidado com nossos textos, principalmente os que são para o sanctum no lar.
Nossos membros devem entender que são capazes sim de analisar os textos esotéricos que lêem pois têm dentro de si a mesma centelha divina que aqueles que escreveram estes textos.
O fato de os textos serem americanos, franceses ou canadenses não os tornam automaticamente peças de excelência ou documentos irrefutáveis.
São produzidos por seres humanos, fratres e sorores como nós, passíveis de erro, e se forem, como acredito que sejam, pessoas dignas, desejarão ser corrigidos nestes erros, uma vez detectados, de forma a aperfeiçoarem seus próprios conhecimentos.
Todos os rosacruzes devem ser capazes de pensar com suas próprias cabeças. Pertencem a uma Escola Esotérica e não à uma religião. A AMORC não produz dogmas nem pensadores dogmáticos, mas busca construir espíritos fortes e autônomos, pessoas melhores e mais auto confiantes, não seres acovardados e envergonhados por um inexplicável complexo de inferioridade.
Não é isto que eu, como artesão, quero para meus Irmãos. Não é isso que Comenius, grande educador e rosacruz, queria. Sonhamos, nós que estamos mais velhos, que os jovens e os que chegaram recentemente aos portais de nossa Ordem usem sua afiliação para crescer espiritual e mentalmente e se libertem da impressão fantasiosa de que o Deus em seus corações e mentes seja menos divino do que em qualquer outro rosacruz ou ser humano em qualquer local do planeta.
Esta é a herança de Comenius e outros, que deveremos honrar durante a nossa afiliação.

PS: leia também: http://cienciahoje.uol.com.br/alo-professor/intervalo/2014/02/antidoto-contra-pseudociencias



[1] http://pt.wikipedia.org/wiki/Chr%C3%A9tien_de_Troyes

5 comentários:

  1. Caro Frater Mario, saudações. Pensamos também ser possível a interpretação da Soror canadense. como exemplo de concordância, citamos a obra "Mensagens do Graal, de Abdrushin, paginas 384-389.
    Um abraço, Frater Americo.

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  2. Citação correta: Na luz da verdade, Mensagem do Graal de Abdrushin volume II, capitulo, Vivei o presente, pag. 383 em diante.

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  3. Definição de GRAIL - merriam-webster
    1
    capitalizados: o copo ou prato utilizado segundo a lenda medieval por Cristo na Última Ceia e, posteriormente, o objeto de busca de cavaleiros ,
    2
    : O objeto de uma busca extensa ou difícil ,
    Neste ultimo sentido, pode-se considerar algo a ser obtido gradualmente.

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  4. Frater Américo, grato por seu comentário. Não conhecia este autor. Fiz uma rápida pesquisa e levantei que "Abdruschin (Abd-ru-shin ou Abdrushin) é o pseudônimo pelo qual Oskar Ernst Bernhardt é mais conhecido. É o autor da Obra Im Lichte der Wahrheit - Gralsbotschaft (Na Luz da Verdade - Mensagem do Graal). A primeira edição da Mensagem do Graal, denominada Grande Edição ocorreu em 1931. Anteriormente, em 1926, Abdrushin havia publicado o livro Im Lichte der Wahrheit - Neue Gralsbotschaft (Na Luz da Verdade - Nova Mensagem do Graal), com 43 dissertações não numeradas. Esta edição foi denominada de Edição Violeta. Das 43 dissertações desta edição, 41 já haviam sido publicadas, desde 1923, nos fascículos da revista Gralsblätter (Folhetos do Graal)."
    A primeira vista parece um autor esotérico e pode ser, segundo o seu depoimento, que sua interpretação coadune com a da sóror. Mas o problema não é de interpretação ou conotação, caro frater, mas sim de significação, já que a sóror afirma com todas as letras que a palavra "Graal" significa "grau", quando o termo em inglês para tal sentido é "degree". Era disso que eu falava. Uma coisa é a interpretação mística, a conotação que dou a uma palavra,esta é livre. Outra é a significação, que deve seguir as regras da gramática e da semântica ortodoxa. Ainda mais por um nativo desta língua. Pensei até frater, que se tratasse de um erro de tradução, aqui em Curitiba. Já ocorreram vários, tudo bem, isto acontece. Mas o raciocínio do parágrafo me levou a crer que não foi isso, senão o parágrafo inteiro não faria sentido. E dentro do que ela considera, faz. Bom é isso. Paz profunda e mais uma vez obrigado por seu comentário.

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  5. Muito interessante esta citação do Webster. O que quer dizer que é "algo a ser conseguido gradualmente", objetivo de difícil consecução, e não gradualidade em si. Não sei se me fiz claro, mas sem querer ser insistente, me parece uma versão incorreta do sentido da palavra. Gradualness, progressive, seriam palavras em língua inglesa mais indicadas mas o termo Graal, de Holy Graal, embora seja um dificult goal, não é um sinonimo de progressive. Não sei, essa é minha impressão, já que esoterismo tem o seu jargão técnico e tem inúmeras liberdades poéticas que as pessoas tomam com estes termos. Isso vale para consciência, espírito, etc, que enquanto conceitos podem ter várias acepções, mas continuará a ser enquanto palavras, consciousness ou soul, já que o termo spirit lembra mais bebidas alcólicas. É isso.

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