por Mario Sales
O contrário também é válido: “o corpo humano é mais pobre e mais fraco quanto mais isolado se mantiver em relação a outros corpos. A inter-corporeidade [relação entre os corpos] é a condição da nossa força vital”, ensina Marilena. Isso posto, ela aponta que, segundo Espinosa, “quanto mais se mergulha no corpo, mais capacidade cognitiva a mente tem. E quanto mais apto o corpo, mais apta a mente estará para perceber as coisas”, daí o equívoco dos que defendem que o “conhecimento verdadeiro tem como pré-condição que a mente se afaste do corpo e opere no campo puramente intelectual”.
Marilena Chauí in https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Marilena-Chaui-Liberdade-e-afastar-as-paixoes-tristes-/4/36877
Só conheci realmente Espinosa no curso de graduação em
Filosofia.
Antes, como era de meu costume, eu lia trechos aqui e ali da
sua obra, me alimentava de citações esparsas, falava com outras pessoas na
ânsia de que alguém soubesse mais do que eu sobre o assunto e assim se transformasse
em meu mestre.
Eu buscava alguém disponível, um bom encontro, como o
próprio Baruch diria; mas isso era apenas procrastinação.
Eu deveria ir à obra, ler a Ética, o Tratado Teológico
Político, o Tratado sobre a Reforma do Entendimento, mas havia em mim uma
ansiedade tão intensa que me paralisava. O que eu começava a estudar, a ler, me
provocava o desejo do desenlace o que me cansava antes que eu concluísse dois
terços da leitura.
Na época eu não entendia que se tratava de uma neurose,
problemas ligados ao ambiente familiar com uma mãe vitima do que hoje se
classifica de transtorno bipolar e que ficou sem diagnóstico por toda a
vida, até que para tratar minha própria filha acabei descobrindo o nome da
patologia que tinha me transtornado infância e adolescência.
Anos mais tarde, após a faculdade de Medicina e depois a de
Filosofia, anos de Yoga e meditação e o auxílio de seis anos de terapia em Carl
Rogers eu tinha resgatado pelo menos uma autonomia psicológica e intelectual
que melhoraria pouco a pouco.
E talvez a coisa mais agradável deste processo de cura foi conseguir
finalmente ler os pensadores que me fundamentaram a caminhada, que me mostraram
que eu não estava só como supunha em minhas elucubrações e intuições e que,
sim, mentes muito mais argutas e poderosas que a minha haviam chegado a
conclusões semelhantes.
Espinosa foi um deles. Principalmente a Ética, escrita como
ele dizia ao estilo de Descartes, com o mais cuidadoso rigor logico, na
intenção de construir um documento irrefutável, estruturado e longe de ser um
texto romântico acerca de crenças de um holandês sonhador.
Não. Espinosa quer com seus textos contrapor a visão
analítica de Descartes, unir o que ele separou, mostrar a integridade do tecido
do real, antecipando em quinhentos anos a moderna neuropsiquiatria.
Alma e corpo eram para ele não duas coisas separadas, mas
uma única continuidade com densidades diferentes, interinfluenciáveis, como de
fato hoje constatamos.
Bastariam os conhecimentos contemporâneos da neuroquímica
das emoções para validar o que antes foi um exercício essencialmente racional e
reflexivo.
Espinosa não foi apenas brilhante em suas colocações, mas
assustadoramente avançado para sua época. A pobreza em que viveu e a
simplicidade que marcaram sua existência mostram o poder de uma mente
diferenciada.
Existe, entretanto, um debate ainda pendente.
O da falácia do livre arbítrio, este engenhoso conceito
agostiniano que marcou e marca o comportamento e o pensamento humano.
Ainda hoje, com a força das evidencias que se acumulam sobre
as razões biológicas das alterações de humor e de comportamento, supomos ter,
sim, liberdade para decidir nossos atos, escolher opções ditas soberanas e que,
na verdade, são motivadas por complexas reações bioquímicas que interagem com o
meio ambiente, com as condições alimentares e respiratórias do indivíduo e até
refletindo a intensidade de seus exercícios físicos.
Todas estas interações, caracteristicamente espinosanas,
são as causas reais do pacifismo ou da agressividade, e até da crença ou do
ceticismo. A construção do pensamento não é produto apenas da elaboração
intelectual, mas sim do encontro entre estas reflexões mentais com as condições
sociais e psicológicas, e espinosanamente falando, neuroquímicas, daquele que
reflete.
E claro aí se insere, a meu ver, o desejo e a paixão.
No fenômeno do amor, manifestações hormonais e neuroquímicas
são tão importantes quanto as chamadas projeções, transferências e
contratransferências psicanalíticas.
A coragem, dita uma virtude; a determinação e a capacidade
de concentração, ingenuamente supostas como produto de esforço e da vontade,
pressupõem antes de tudo condições neurológicas capazes de permitir suas
manifestações.
Não é fácil para um amante da música tornar-se um pianista.
Ou para um ator aperfeiçoar sua performance. Demandará estudo e prática
ininterruptas, por anos.
Porém existe a necessidade de, antes da prática, ter o
indivíduo a potencialidade para praticar e a saúde neuroquímica para a
perseverança.
Nenhuma mente que não seja minimamente saudável, nenhum cérebro
minimamente competente pode realizar o mesmo que cérebros que trazem uma
herança e um resultado biológico peculiar fadado ao sucesso. Esse determinismo
biológico parece um retrocesso no conceito ético de responsabilidade humana
pelos seus atos. Ledo engano. As pessoas continuam crescendo enquanto cometem
seus enganos e equívocos, mas dentro da sua própria capacidade, dentro da sua escala
própria de possibilidades.
As interações são dinâmicas e ininterruptas e ao erro, nas
pessoas comuns, sucede a culpa e a vontade de corrigir, desde que estejamos
falando de pessoas com amígdalas cerebrais normais. Pois naqueles em que este
pequeno detalhe anatômico é minúsculo, quase imperceptível, não haverá
possibilidade de caráter, culpa ou remorso pelo erro.
Estamos no campo da psicopatia, do assassino frio e sem
possibilidade de reabilitação. Pessoas capazes de tanto mal que melhor seria se
não tivessem nascido.
Portanto, antes de falarmos das virtudes do esforço, da
importância do esclarecimento através da leitura e do estudo, lembremos que os mecanismos
físicos por trás do comportamento influenciam decisivamente os afetos, como
Espinosa chamava, e esses, por sua vez, moldam o comportamento ou a estratégia
do uso do saber e do intelecto.
Do mesmo modo são influenciados nossos sentimentos e o modo
como os administramos.
De há muito sabemos que não é a técnica ou a ciência que nos
transforma em pessoas melhores, mas a qualidade de nossa saúde mental e de
nossos afetos.
Espinosa falava em afetos ativos e passivos (paixões) que
marcam a vida de grande parte da humanidade, dizendo que “Por afeto compreende-se
as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou
diminuída”. Ele supunha que todo encontro, todo evento de contato entre o ser e
outro ser ou o mundo trazia um aspecto positivo ou negativo. Se eu recebo um
beijo, trata-se de um encontro gerando um afeto positivo, que aumenta minha
potência. Se tropeço e machuco meu pé em uma pedra, trata-se de um encontro de
aspecto negativo, que diminui minha potência.
Talvez a sua falha, que seria, quem poderia imaginar,
enriquecida e aperfeiçoada por Schopenhauer, tenha sido supor os encontros como
algo sempre externo ao ser, quando, pela brilhante ideia schopenhaueriana de
sublimação das demandas do corpo, percebemos graças ao filosofo alemão que também
temos encontros internos entre os aspectos físico(químicos) e mental(pensamentos,
emoções, desejos) da substancia contínua espinosana, nos quais as percepções
mentais são apenas o reflexo de situações biológicas como o pesadelo daquele
que dorme com fome, ou o sonho com rios e mar daquele que bebeu líquidos demais
antes de dormir e sente durante o sono a bexiga pedindo atenção.
Mas estes são exemplos banais e mecânicos ainda.
Minha tese e de alguns neurocientistas é de que até o que
chamamos opções não são mais do que comandos do corpo sobre a mente, que
acontecem milésimos de segundos antes de alguém pensar em fazer alguma coisa, a
clássica vontade.
Sempre se supôs que o ser desejava e depois ia em busca do
desejo. Ao que parece o corpo deseja, lança um estímulo para a mente que então
elabora um estado de desejo e um objeto deste desejo para aí sim, o corpo partir
para a ação de ir em busca do desejado.
Pelo jeito não escolhemos nem quem amamos, mas amamos
aqueles que nosso corpo e mente nos ordena desejar e amar.
Muita calma nessa hora. Não é reprimir-se perceber esse jogo
de espelhos e pisar no freio da paixão para ponderar as consequências de um
arroubo inesperado.
Porque os estados de paixão e desejo de natureza sexual e
romântica passam, como uma virose.
Mesmo os medievais, como lembra Pondé[1] em “Amor para Corajosos”
(Planeta, 2017) já chamavam a paixão de “maladie de pensée”, uma doença
do pensar, ou melhor, simplesmente uma doença, “páthos”.
Foi seu livro que me motivou estas reflexões.
Continuaremos esta análise em outro ensaio.
[1] Luiz Felipe de Cerqueira e Silva Pondé (Recife, 1959) é um filósofo e escritor brasileiro, doutor em filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e com pós-doutorado pela Universidade de Tel Aviv, em Israel. Escreveu, dentre outras obras, o Guia Politicamente Incorreto da Filosofia e Marketing existencial. É colunista da Folha de S. Paulo, escrevendo semanalmente no jornal.
Definir Amor, é limita-lo! Como definir Deus também é!
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