Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

KARMA OCULTO E KARMA MANIFESTO: o papel das alterações neuroquímicas no surgimento do mal ou na sustentação do bem.


Por Mario Sales, FRC.:;S.:I.:;M.:M.:



“Nenhum aspecto da mente humana é fácil de investigar, e,
para quem deseja compreender os alicerces biológicos da mente,
a consciência é unanimemente considerada o problema supremo,
ainda que a definição desse problema possa variar notavelmente
entre os estudiosos. Se elucidar a mente é a última fronteira das
ciências da vida, a consciência muitas vezes se afigura como o
mistério final na elucidação da mente. Há quem o considere
insolúvel.”

Antonio Damásio in “O mistério da Consciência", editora Companhia das Letras



Comecemos este arrazoado com a seguinte imagem: visualizem que, em uma guerra futura, ou talvez atual, não sei, um soldado de um exército qualquer esteja no comando de uma máquina de batalha altamente sofisticada, que reaja aos seus pensamentos e caminhe ou dispare mísseis e tiros de grande calibre a um desejo mental seu. Imagine também que este portento bélico, como qualquer aparelho, seja subitamente tomado por um defeito, um mau funcionamento do hardware ou do software, tornando-se incontrolável pelo soldado que de dentro a pilota. 




Imaginemos ainda que, por causa deste mal funcionamento, esta arma poderosa comece a disparar, não contra o exército inimigo, mas contra seu próprio exército, dizimando em pouco minutos parte considerável do contingente. A quem devemos responsabilizar por esta pequena tragédia tecnológica: o piloto que, de dentro da máquina, desesperado, assiste a destruição de sua tropa, incapaz de evitá-la, ou ao técnico ou cientista responsável pela programação, que criou uma máquina de tal forma defeituosa que transformou-se num inimigo infiltrado?
Este tipo de questionamento me veio à mente lendo as pesquisas sobre fundamentos neuroanatômicos e químicos para o comportamento criminoso, que tem sido feitos nos últimos anos e que podem ser acompanhados nas referências aos pés deste ensaio.
As referências científicas indicam que lesões de lobo frontal, como no caso clássico de Phineas Gage, podem causar, ou melhor, causam alterações comportamentais capazes de transformar um indivíduo tipo Dr. Jeckel em outro do tipo Mr. Hyde.[1]
Embora prudentemente não se afirme de modo categórico que a personalidade sociopática tenha sempre um fundamento neuroanatomico[2], isto tem a ver com bom senso científico. Uma afirmação deste porte teria sérias implicações não só sociológicas como também filosófico-éticas, de tal maneira que mais elementos e dados devem ser acumulados antes de uma categórica generalização.
Existe, entretanto, consenso na comunidade científica que, em muitos trabalhos, fica evidente a correlação entre o que se chama um comportamento, digamos assim, do Mal, e alterações inatas ou adquiridas, no cérebro de certos indivíduos.
Supondo mais uma vez, que estas alterações neurológicas, se inatas, são involuntárias, ou se adquiridas, foram produtos de traumas e acidentes imprevisíveis, estamos diante de condições verdadeiramente kármicas, se não determinantes, fortemente predisponentes à manifestação de uma personalidade agressiva, desumana e alheia a noções como misericórdia, tolerância ou solidariedade.
Como no nosso exemplo fictício no início de nosso raciocínio, quem deve ser responsabilizado pelo comportamento psicopático do indivíduo em questão?
O próprio indivíduo ou o defeito de seu cérebro que o induz a tais atos?
Psicopatia, hoje aceita-se como ponto pacífico, é uma anomalia comportamental, em parte com fundamentos neuroanatômicos e provavelmente neuroquímicos. Trata-se de uma doença psiquiátrica, grave, que não tem, até o momento, tratamento conhecido, nem químico, nem cirúrgico.
No caso de Phineas Gage, a mudança de comportamento foi adquirida. O que assusta é que seu caso não é isolado.


Phineas Gage e a barra de ferro que o atingiu


As demências orgânicas, doenças que atingem os cérebros geralmente de pessoas idosas, das quais o modelo é a doença de Alzheimer, redundam na fase mais avançada, em alterações de comportamento. Muitas vêzes estas alterações trazem grande infortúnio aos familiares, já que assistem, impotentes, a transformação gradual ou súbita de seus entes queridos de pessoas dignas e capazes em seres de comportamento aberrante, com um discurso de termos chulos, vulgares, ou mesmo com comportamento francamente obsceno com membros da mesma família.

Esquema das lesões no cérebro de Phineas Gage (1823-1860)

Falamos no meio médico em que a degeneração cerebral levou a “perda dos freios sociais”, ou seja, a perda dos mecanismos criados pela educação para garantir a possibilidade de uma interação social satisfatória.
Perguntemos: aonde estavam estes condicionamentos culturais e educacionais? Provavelmente alocados em alguma região do hipocampo e do telencéfalo, no caso na área executiva do cérebro, o lobo frontal.
Ora, concluímos que a máquina defeituosa gera comportamentos defeituosos.
E qual o papel do caráter, da educação, do fator sócio ambiental no desenvolvimento de uma personalidade antisocial? O que as pesquisas mostram é que o Mal surgirá por várias razões, mas sejam quais forem estas razões, as condições neurológicas dos envolvidos devem ser considerados.

Antonio Damásio

Citando Damásio[3], nem todas as nossas decisões são produto da razão ou do pensamento racional. Para que assim seja, precisamos partir do pressuposto que o cérebro que pensa é um cérebro do ponto de vista neurológico íntegro e funcional, livre de quaisquer distorções que possam levar ao que acima chamamos um “mal funcionamento”.
É a esta predisposição neurológica,(sempre relegada ao esquecimento no debate sobre a importância da pratica do bem, a necessidade de bons pensamentos e outras pérolas do discurso moralista religioso), que precisa ser considerada quando conversarmos sobre sandices como “auto determinação”, “livre arbítrio” e o mais terrível dos equívocos, a noção de “força da vontade”.
Auto determinação, a capacidade de decidir de forma livre e desembaraçada sobre qual a melhor atitude a tomar,ou “força de vontade” não são atributos disponíveis a todos os seres humanos, mas apenas para aqueles que estão livres de patologias como depressão profunda, síndrome de down, doença de Parkinson em estágio avançado, epilepsia do lobo temporal ou autismo.
Da mesma maneira, sejamos ou não portadores de alguma patologia neuropsiquiátrica ou de uma simples neurose ansiosa, podemos ter uma série de limitações culturais que cercearão a possibilidade desta idéia descabida que supõe ser o homem livre para arbitrar quando o desejar.
É preciso considerar a saúde mental antes de discutir moral.
Podemos esperar comportamentos sensatos apenas daqueles que são capazes neurologicamente de nos dar tais comportamentos.
Imaginem um corrida, mal comparando de cavalos puro sangue. Dois animais poderosos, bem nutridos, em baias lado a lado, prontos para disparar ao tiro de aviso.
Esta é uma corrida em condições semelhantes entre os concorrentes.
Agora suponham a mesma corrida entre um pangaré desnutrido e um cavalo puro sangue. Não faz o menor sentido.
Quando generalizamos normas morais para todos os seres humanos da face da Terra, esquecemos de ter a prudência que a ciência tem, para não misturar, usando uma frase de uma amiga, alhos com bugalhos.
Só pessoas igualmente capazes neuropsiquiatricamente podem ser comparadas e avaliadas por padrões morais semelhantes. Só é senhor de seu navio e de seu destino quem tem duas mãos para segurar o leme com firmeza.
E como defeitos neurológicos são heranças ou problemas genéticos, inatos,embora não sejam visíveis, devem ser considerados como fenômenos kármicos, mas de uma natureza diferente, aquela que eu chamo de karma oculto.
Karma é tudo que recebemos como herança em uma existência. Nossa capacidade intelectual ou nosso retardamento mental ou moral são karmas. Só que, ao contrário dos problemas visíveis, como a habilidade do discurso ou a capacidade para o desenho e a pintura, aqueles karmas do tipo manifesto, a psicopatia conseqüência de uma alteração neuroanatômica não é evidente aos olhos, principalmente aos olhos daqueles que não tem formação em neurociência. Sempre terão a impressão, senso comum, de que alguém é mal por que quer ser, e não porque é induzido a isso por uma lesão cerebral. As avaliações que fazemos das pessoas que militam contra tudo que achamos ético e nobre na humanidade é uma avaliação tacanha porque não leva em consideração essas informações da neurologia médica. Não somos capazes de ser justos se não julgamos alguém ou alguma coisa sem levar em consideração todos os aspectos da questão em análise, mais ainda se desprezamos fatores decisivos na manifestação do fenômeno em análise.
Quando analiso, como médico, a situação de dementes vítimas de doenças cerebrais degenerativas, sempre falo com a família da inimputabilidade de seus atos, que eles não devem e não podem ser responsabilizados pelo que dizem ou pelo que fazem. Depois me lembro da frase- oração do Cristo, quando na cruz, dizendo “Perdoai-os Pai, eles não sabem o que fazem.”
Sempre considerei esta expressão uma manifestação da imensa misericórdia de Jesus para com todos os seres, mas talvez seja mais do que isso, mais do que simples bondade, mas sim verdadeira compreensão das limitações comportamentais da ignorância e do preconceito, dois tipos de loucura. Ser bom e generoso, muitas das vêzes, é apenas a consequência mais comum da sabedoria e da compreensão.
Precisamos desta mesma compreensão diante de seres humanos devastados ou devastadores, cuja maldade e crueldade nos causa náusea, mas que podem ser apenas vítimas de uma grave alteração neurológica.
Muitos ao ler estas palavras dirão que se trata de um absurdo, que todos devem ser responsabilizados por seus atos, que desta forma poderíamos retirar a culpa de todos os seres, independente da crueldade de seus atos. E se for assim? E se realmente aqueles que forem seres do Mal sejam assim porque foram designados pela própria Natureza para serem assim, energias destruidoras que participam do drama kármico com tanta importância quanto aquelas que chamamos forças construtoras?
Seria muito difícil admitir que não podemos culpar alguém ou alguma coisa por nossa dor, principalmente aqueles que por esse mundo afora foram vítimas de alguma violência.
O curioso é que a mensagem da compreensão, a necessidade do segundo olhar, de uma reavaliação de nossa ira contra todos aqueles que consideramos a escória da sociedade vem da Ciência, da Neurociência, e não da Religião. É a neurociência que se , levada em consideração da maneira correta, tornaria o perdão obsoleto, pois não é preciso perdoar aquilo que compreendemos.
Pergunto a mim mesmo se a crueldade ou a demência de alguém próximo a nós, um pai ou uma mãe idosa, atingida pela demência orgânica, seja de que tipo for, é menos difícil de ser compreendida do que aquela de alguém mais jovem e estranho a nós, mas que, da mesma forma que muitos idosos pelo mundo, tornou-se vítima de um distúrbio neuropsiquiátrico.
Fazemos de conta, entretanto, que são demências diferentes, e que na verdade a maldade não tem uma causa física, mas um cunho unicamente espiritual e moral.
Quanto a isso remeto tais pessoas a um ensaio meu chamado “O Mergulho”, aonde uso a metáfora do escafandro. Como rosacruzes, aprendemos que nossa alma é imortal e perfeita, emanada de Deus e não criada por ele, feita, portanto, da mesma natureza da do Criador do Universo. Esta alma perfeita em luz e sabedoria, entretanto, entra no corpo da mesma forma como entrávamos no passado em um escafandro, para descermos às profundezas do mar, onde a pressão é mais alta e precisamos de um traje que nos permita ali executar pesquisas e experimentos de toda espécie.
O homem encarna em busca de conhecimento e experiências no mundo material, não por causa de uma queda espiritual, não caindo, mas mergulhando na carne e na vida, por sua própria vontade, obedecendo a necessidade primeira do Universo, a busca incansável de sabedoria. E o meio material nos provê a possibilidade desta sabedoria, deste conhecimento, mesmo que considerando a diferença de densidade, nos obrigue a usar este traje escafândrico, o corpo humano, para realizarmos nossas experiências evolucionais.
E se nosso traje estiver defeituoso, entretanto, nosso objetivo será alcançado? Não acredito.
Ou talvez eu esteja errado e este defeito seja parte de um plano do Grande Arquiteto, que permite certas anomalias para provocar outros ajustes no drama kármico de toda a humanidade. Quem sabe?
O Deus do meu coração é Onipotente e Onisciente, sendo-me impossível acreditar que mesmo estas anomalias orgânicas ocorram sem sua autorização ou determinação.
A pergunta mística é: as almas que encarnam em corpos defeituosos o fazem como parte de um projeto, ou são atraídas para eles por afinidade físico-espiritual?
Serão obrigadas, como o soldado de nossa história, a pilotar, embora lúcidas, uma máquina enlouquecida, sofrendo com todo o mal que ela provoca sem que possam evitar pela vontade de Deus ou existe uma correlação e uma identificação entre a alma dentro do corpo e o corpo defeituoso que ela habita, também por causa desta mesma Sublime Vontade?
Quanto a isso, não faço a menor idéia. O que eu sei é que na maioria das vezes, não temos informações suficientes para fazer juízo de valor sobre comportamentos de quem quer que seja, já que sem um exame de imagem tipo pet-scan cerebral não poderemos ter uma idéia clara das condições neurológicas de mentes marcadas pela maldade, e que talvez tenham sido programadas pelo destino para representarem o lado negro no drama kármico de todos os dias.
Ao julgarmos as pessoas, lembremos da frase do Cristo, e em nossas orações peçamos a Deus por todos os seres humanos. Jamais saberemos o karma oculto que cada um carrega dentro de si.
  
[3] António Rosa Damásio (Lisboa, 25 de fevereiro de 1944) é um médico neurologista, neurologista português que trabalha nos estudo do cérebro e das emoções humanas. Atualmente é professor de Neurociência na University of Southern California. Entre os anos de 1996-2005, Damásio trabalhou no hospital da University of Iowa.

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