TEMPO
Por Mario Sales
Quanto tempo faz que não escrevo.
O tempo não tem densidade, mas ocupa espaço, em nossas
mentes, em nossas vidas.
E na criação artística também, como o hiato entre o último
trabalho e o atual, aquele que estamos realizando, que está acontecendo letra após
letra, no meu caso específico, palavras que escorrem pelos dedos como a areia
da ampulheta, transformando-se em passado no mesmo momento em que surgem na
minha frente.
E se não forem revistas, corrigidas, editadas, permanecerão no
passado, aparentemente pétreo e congelado como todas as obras humanas
terminadas, acabadas, e que em seguida envelhecerão, ao longo dos anos, séculos,
submetidas a inclemente ação da entropia, que tudo desgasta e, finalmente,
apaga.
Assim, o tempo, conceito inefável, porém perceptível, nos atravessa,
modifica, transforma. Nele o invisível prova sua presença ostensiva no visível,
afetando o que se toca ou que se tocava e, hoje, não conseguimos mais.
Mesmo assim, sinto-me igual ao que era anos atrás, sem me
dar conta de quem é essa pessoa que surge diante de mim, no espelho, de manhã.
Aqui dentro de mim tudo está igual, e a memória resgata
instantes, eternizando-os, mesmo que envoltos na imaginação que inventa e
disfarça o passado a tal ponto que julgamos fato aquilo que está apenas em
nossas crenças do que foi, que julgamos ter sido de um modo e que, de modo
algum, corresponde ao que realmente aconteceu.
Já foi dito que a memória nos ilude, trapaceia com nossas
recordações e inventa passados.
Às vezes passados que gostaríamos que tivessem acontecido. Outras
vezes passados que escondemos, por não poder suportar, e que retiramos de
nossas vidas, alterando encontros, falas, sensações.
Ao lado, nos observando em silencio, o Tempo testemunha
nossas artimanhas, estratégias de defesa do ego e da sanidade. Só ele, por vezes,
permanece, incólume, intocado, silencioso e vital como o sangue que da mesma
forma, de modo imperceptível, flui por nossas artérias e nos mantém vivos sem
que nos apercebamos disso.
Muitas coisas fundamentais são discretas em nossa existência,
como se um pudor as proibisse de mostrar-se e atrapalhar a ilusão de estarmos
livres de quaisquer condições garantidoras da existências, como se existir
fosse um direito inalienável de todos nós que, mesmo alimentando essa crença,
caminhamos inexoravelmente para o esquecimento e para a morte física.
Sem considerar aspectos místicos e espirituais, a eternidade
só é garantida pela lembrança, pela memória que nossos amigos e companheiros de
existência guardam de nossa passagem por esse mundo, este percurso breve que
supomos absolutamente demorado, mas que, eventualmente, desaparece sob nossos
pés, lembrando-nos de modo, para alguns, súbito, da frase do filósofo que diz “tudo
que é sólido desmancha no ar”.
E o Tempo, testemunha e responsável por tudo isso, apenas
nos observa, passando por nós e fazendo com que passemos por ele.
Tudo o que nos resta é devolver ao Tempo seu olhar, como se
o encarássemos desafiadores em nossa inocência, em nossa impotência, diante de
sua inexorabilidade.
Pelo menos ao contemplá-lo nos damos conta de sua presença,
quem sabe até compreendamos que antes de nos ser hostil, ele, Tempo, também é
um prisioneiro de um modo de ser que mesmo que desejasse não conseguiria mudar.
Talvez até ele, se sonhasse, desejasse uma interrupção no
seu próprio movimento, um descanso entre eras que se sucedem, intermináveis.
Isso, no entanto, está proibido para ele, Sísifo universal,
escravo de sua própria natureza, de sua função na história da Criação.
Confesso que, pensando assim, o Tempo não suscita temor ou
angustia, mas até inspira uma certa ternura de nossa parte, porque tanto quanto
nós que ele teima em envelhecer e levar a aparente morte, ele não pode morrer.
Jamais terá repouso ou mesmo consciência de seu esforço.
Como um zumbi, continuará seu trabalho, de fluir e fluir,
indefinidamente, sem esperança de um dia ter o necessário repouso.
A eternidade, vista dessa perspectiva, é o inferno do Tempo.
Sinto uma sincera misericórdia por ele.
Ao que parece, o carcereiro está tão aprisionado quanto o
prisioneiro.