Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

terça-feira, 31 de outubro de 2023

 

ARREPENDIMENTO

07/05/2008

Ressinto-me das minhas hesitações

Dos meus senões.

Nada mais.

 

Meus erros são meus companheiros e mestres

Não me são hostis, nem me ameaçam.

Não me temem e eu não os temo

Temos, eu e meus erros,

um relacionamento amável

 

Só me arrependo do que não fiz

Por medo de falhar

Por insegurança ou timidez

 

Estes são meus pecados

Minhas omissões indesculpáveis

Meus silêncios injustificáveis

Minhas inoportunas crises de consciência

Que bloquearam os meus gestos

E me roubaram momentos

 

Que me roubaram meu tempo, minha vida.

 

EU NÃO ACORDO QUANDO ABRO OS OLHOS

 

12/12/2007


I

Eu não acordo quando abro os olhos

Só acordo debaixo do chuveiro

Depois de tomar café

e ler, inteiro,

o jornal.

 

Este é meu normal.

 

Leio jornal dormindo

Tomo café dormindo

Olhos abertos, dormindo,

Pensando, mas dormindo.

 

Assim a manhã vai seguindo.

 

Olhos abertos não são

Uma cabal demonstração

De que alguém está desperto.

 

É certo.

 

Vejo pessoas do carro,

nas ruas e nas casas,

passando por mim,

nas calçadas,

algumas paradas.

 

Olhos nas placas, apáticas.

 

Estarão despertas?

Ou são apenas corpos que se deslocam?

Só corpos?

Será que sonham enquanto andam?

 

Caminharão dentro de seus sonhos?

 

II

 

Eu não acordo quando abro os olhos

Só acordo no batismo do banheiro

Ritual com odor de sabonete.

 

O sabonete é meu incenso, cheiro,

No ar,

Na iniciação do dia incipiente,

Com água fria e café quente.

 

antes do banho e do despertar.

 

Quando vejo as pessoas apáticas

no mundo, nas calçadas,

percebo que muitas não foram tocadas

Pelo despertar/batismo das águas.

 

A maioria apenas se desloca

E se esbarra,

distraída

Em seu sono particular.

 


Acho difícil alguém, assim, acordar.

 


sábado, 21 de outubro de 2023

 

TEMPO

Por Mario Sales

 


Quanto tempo faz que não escrevo.

O tempo não tem densidade, mas ocupa espaço, em nossas mentes, em nossas vidas.

E na criação artística também, como o hiato entre o último trabalho e o atual, aquele que estamos realizando, que está acontecendo letra após letra, no meu caso específico, palavras que escorrem pelos dedos como a areia da ampulheta, transformando-se em passado no mesmo momento em que surgem na minha frente.

E se não forem revistas, corrigidas, editadas, permanecerão no passado, aparentemente pétreo e congelado como todas as obras humanas terminadas, acabadas, e que em seguida envelhecerão, ao longo dos anos, séculos, submetidas a inclemente ação da entropia, que tudo desgasta e, finalmente, apaga.

Assim, o tempo, conceito inefável, porém perceptível, nos atravessa, modifica, transforma. Nele o invisível prova sua presença ostensiva no visível, afetando o que se toca ou que se tocava e, hoje, não conseguimos mais.

Mesmo assim, sinto-me igual ao que era anos atrás, sem me dar conta de quem é essa pessoa que surge diante de mim, no espelho, de manhã.

Aqui dentro de mim tudo está igual, e a memória resgata instantes, eternizando-os, mesmo que envoltos na imaginação que inventa e disfarça o passado a tal ponto que julgamos fato aquilo que está apenas em nossas crenças do que foi, que julgamos ter sido de um modo e que, de modo algum, corresponde ao que realmente aconteceu.

Já foi dito que a memória nos ilude, trapaceia com nossas recordações e inventa passados.

Às vezes passados que gostaríamos que tivessem acontecido. Outras vezes passados que escondemos, por não poder suportar, e que retiramos de nossas vidas, alterando encontros, falas, sensações.

Ao lado, nos observando em silencio, o Tempo testemunha nossas artimanhas, estratégias de defesa do ego e da sanidade. Só ele, por vezes, permanece, incólume, intocado, silencioso e vital como o sangue que da mesma forma, de modo imperceptível, flui por nossas artérias e nos mantém vivos sem que nos apercebamos disso.

Muitas coisas fundamentais são discretas em nossa existência, como se um pudor as proibisse de mostrar-se e atrapalhar a ilusão de estarmos livres de quaisquer condições garantidoras da existências, como se existir fosse um direito inalienável de todos nós que, mesmo alimentando essa crença, caminhamos inexoravelmente para o esquecimento e para a morte física.

Sem considerar aspectos místicos e espirituais, a eternidade só é garantida pela lembrança, pela memória que nossos amigos e companheiros de existência guardam de nossa passagem por esse mundo, este percurso breve que supomos absolutamente demorado, mas que, eventualmente, desaparece sob nossos pés, lembrando-nos de modo, para alguns, súbito, da frase do filósofo que diz “tudo que é sólido desmancha no ar”.

E o Tempo, testemunha e responsável por tudo isso, apenas nos observa, passando por nós e fazendo com que passemos por ele.

Tudo o que nos resta é devolver ao Tempo seu olhar, como se o encarássemos desafiadores em nossa inocência, em nossa impotência, diante de sua inexorabilidade.

Pelo menos ao contemplá-lo nos damos conta de sua presença, quem sabe até compreendamos que antes de nos ser hostil, ele, Tempo, também é um prisioneiro de um modo de ser que mesmo que desejasse não conseguiria mudar.

Talvez até ele, se sonhasse, desejasse uma interrupção no seu próprio movimento, um descanso entre eras que se sucedem, intermináveis.

Isso, no entanto, está proibido para ele, Sísifo universal, escravo de sua própria natureza, de sua função na história da Criação.

Confesso que, pensando assim, o Tempo não suscita temor ou angustia, mas até inspira uma certa ternura de nossa parte, porque tanto quanto nós que ele teima em envelhecer e levar a aparente morte, ele não pode morrer. Jamais terá repouso ou mesmo consciência de seu esforço.

Como um zumbi, continuará seu trabalho, de fluir e fluir, indefinidamente, sem esperança de um dia ter o necessário repouso.

A eternidade, vista dessa perspectiva, é o inferno do Tempo.

Sinto uma sincera misericórdia por ele.

Ao que parece, o carcereiro está tão aprisionado quanto o prisioneiro.