Por Mario Sales
A TÁBUA DE ESMERALDA,
Confesso que hesitei um pouco antes de escrever esse texto
porque certas reflexões causam desconforto a algumas pessoas.
Só que quando discutimos assuntos que julgamos extremamente
particulares, e compartilhamos nossas perplexidades, via de regra encontramos
um sem-número de outras pessoas perplexas com as mesmas questões sem a
capacidade de expressar o que sentem.
A palavra é o colchão aonde deitamos nossas ânsias de
expressão, nosso mal-estar indefinido em relação a nossa vida e a vida de todos
que nos acompanham nessa existência. Falar de nossos problemas, dar nomes ao
que antes era um fantasma que rondava nossa cama a noite nos assustando, é desfazer
uma assombração.
Nomear é esclarecer. Clarear é dar luz a algo que estava nas
trevas. A luz do dia, todos os fantasmas desaparecem. Com a luz do sol, tudo
fica mais claro e as incertezas se dissipam.
Não por outra, como está em Marcos, capítulo 5, versículo 9,
ao praticar o exorcismo do rapaz possuído, o cristo antes de qualquer coisa
pergunta ao demônio dentro dele qual é o seu nome. Ao que o demônio responde:
“Legião é o meu nome, porque somos muitos.”
Penso que escrever é como exorcizar demônios, extrair o nome
das coisas que nos atormentam e como vampiros, trazendo-as a luz, vê-las queimar
e se desfazerem.
Como vampiros, sim, porque o que não é dito, suga em
silencio nossas energias, anemiando nossa alma, nosso espírito.
Este enorme preambulo antecipa uma discussão sobre a importância
de uma das áreas mais incensadas do esoterismo, com a qual nunca tive
afinidade, mas da qual fui obrigado a falar e a qual fui levado a estudar por questões
de ofício.
Muitos acham que o esoterismo é como um curso universitário,
com disciplinas variadas, todas fundamentais à formação profissional e que
serão estudadas separadamente, para que ao final nossa formação esteja
completa. E que o correto é que ele estude todas essas disciplinas,
independente de suas predileções pessoais.
Isso é verdade, em parte.
Primeiro porque o Esoterismo não é uma área de saber em um
campo, mas o próprio campo, muito, muito vasto e dedicar-se toda uma vida ao
seu estudo é insuficiente. Talvez a única razão pela qual a mortalidade física seja
inadequada seja a ruptura de continuidade em nossos estudos pessoais e por mais
que se diga que o essencial passa com a alma peregrina de uma encarnação a
outra, a clareza cumulativa das informações, a elaboração dos conceitos, o
conhecimento linguístico, são sim interrompidos por décadas para serem reiniciados
já em outro conjunto de circunstâncias, em outra época, em outro corpo e
cérebro.
Então, se é interessante que conheçamos pelo menos
superficialmente todas as áreas de interesse do esoterismo, desde a simbólica,
nas religiões e nas tradições iniciáticas, até os detalhes da meditação Zen, ou
aspectos do Hinduísmo, nem tudo vai nos atrair da mesma forma ou nos fascinar
do mesmo modo.
Existirão, com certeza, preferencias, áreas que estudaremos
com mais prazer e que nos parecerão mais claras do que outras, bem como algumas
nos parecerão entediantes e demasiadamente confusas para que possam gratificar
nosso intelecto.
Acreditem ou não, uma frustração dessa ordem me invade quando
leio sobre Alquimia.
Não conheço área menos clara, menos linear, e que não
resiste nem mesmo àquele argumento comum, mas já gasto de que “o significado
dos seus símbolos não está claro porque foi ocultado de proposito dos olhos de
profanos”.
Tolice.
Se alguém se dedicar a estudar o método alquímico verá que
provavelmente nem os próprios alquimistas tinham claro em suas mentes se
estavam ou não fazendo o que deveriam.E muitos, muitos se dedicaram a este estudo pré-científico
com seriedade, supondo que se envolviam em um caminho legitimo de ascensão
espiritual ou cultural.Talvez, se não fosse pelo ensaio que estou traduzindo de um
nobre e respeitado Frater alemão, o médico Franz Hartmann, não teria animo para
escrever sobre esse assunto.Em um ensaio chamado “As Ordens Rosacruzes”, diz ele,
comentando as reações na Europa aos manifestos Fama Fraternitatis e Confessio
Fraternitatis:
“A crença na existência de uma organização secreta real
de Rosacruzes, possuidores dos segredos de como fazer ouro de chumbo e ferro, e
de prolongar a vida por meio da ingestão de algum fluido na forma de um
medicamento, era universal; e charlatães e trapaceiros de todos os tipos
vagavam pelo país e ajudavam a espalhar as superstições, muitas vezes vendendo
compostos inúteis por preços fabulosos como sendo o "Elixir da Vida";
enquanto outros desperdiçaram suas fortunas e tornaram-se pobres, fazendo
esforços inúteis para transmutar metais. Uma enxurrada de escritos apareceu,
alguns conquistando e outros defendendo a Sociedade Rosacruz, que supostamente
existia, mas da qual ninguém sabia de nada. Algumas pessoas, mesmo algumas
bem-informadas, acreditavam na existência de tal sociedade; outros, negavam.
Mas nem uma classe nem outra poderiam trazer quaisquer provas positivas de suas
crenças. As pessoas estão sempre dispostas a acreditar no que desejam que seja
verdade…”
Já suspeitava que estava diante de um dos grandes equívocos esotéricos
de todos os tempos quando li e estudei “O Casamento Alquímico de Cristian Rosencreuzt”,
obra inacabada, atribuída ao Círculo de Tübingen e a Johan Valentim Andrea, texto
que mais parece uma colcha de retalhos esotérica do que uma narrativa em si. O
autor tinha esta intenção e redigiu um texto que necessita da imaginação e
participação ativa do leitor para ganhar algum sentido e corpo.O que obviamente, afasta o leitor apressado e pouco
cuidadoso, mas também conduz ao equívoco.Equívoco, pasmem, que era desejado pela maioria dos
escritores alquimistas, alegando que com isso, afastariam os não iniciados dos
mistérios de sua “ciência”. Só que nunca houve ciência alguma.
O chamado método alquímico era absurdamente lento e complexo, ou extremamente rápido e perigoso, na maioria das vezes, de eficácia zero.Imaginem que você tenha um balão de vidro, com um pouco de
líquido dentro, tampado hermeticamente com uma rolha de cortiça, e o coloque em
fogo brando, por uma quantidade enorme de tempo.Qualquer estudante secundário sabe que a pressão dos gases
liberados pelo aquecimento do líquido será tanta que o balão, eventualmente,
explodirá.Isso era extremamente comum nos chamados “laboratórios alquímicos”.Os admiradores da Alquimia como um capítulo importante da história
esotérica defenderão com certeza estes acontecimentos como produto de tempos
heroicos em que a prática laboratorial não existia e que por serem ainda muito
incipientes traziam inevitavelmente o risco e o erro nos procedimentos.Sim, pode ser. Só que praticas alquímicas se arrastaram até
o início do século XX, época na qual certos procedimentos não poderiam mais ser
atribuídos a ignorância de leis simples quanto ao comportamento dos gases sob
aquecimento.É comum entre os seres humanos confundir o monge e seu
hábito.Outra coisa. Já se sabiam dos efeitos dos gases submetidos ao calor naquela época. Se falamos em um laboratório semelhante ao que tinha
Robert Boyle, irlandês, físico e químico do século XVII, época áurea do movimento
alquímico, de forma alguma estamos falando da mesma coisa. Seria como comparar
o laboratório do psiquiatra com o do seu paciente esquizofrênico. É de Boyle a
lei de Boyle-Mariotte que diz que o volume de um gás varia de acordo com a
pressão de forma inversamente proporcional, e as propriedades do ar e do vácuo.Mesmo esse fato sendo conhecido pelos químicos
contemporâneos dos alquimistas, (Boyle morreu em 1691) os pesquisadores
al-quimicos continuavam a explodir balões em seus “laboratórios”.Robert Boyle
E agora uma afirmação que fará meus amigos e adversários ficarem embaraçados: na minha opinião, não existia nenhum método alquímico, mas alquimistas que seguiam uma sequência de passos em uma ordem muitas vezes arbitraria, considerando a dificuldade de saber qual seria o método verdadeiro.Se vocês ficaram surpresos com essa afirmação, basta
recorrer a uma fonte não muito respeitada ainda, mas cujas elaborações são
absolutamente fiéis as fatos, a WIKIPEDIA.Lá encontramos o seguinte comentário
“Sobre a Interpretação dos textos
alquímicos:
A própria palavra
"hermético" sugere a dificuldade dos textos dos autores alquímicos.
Esta tem por causas:
1.Os autores se referirem às
substâncias e processos por nomes próprios à Alquimia;
2.Haver vários processos (vias)
de operação que não são explicitados;
3.A maioria das substâncias
serem referidas com perífrases elaboradas;
4.A existência de muitas
referências mitológicas e cultas;
5.O uso de palavras que, lidas
em voz alta, produzem uma outra
6.O não apresentar partes de
processos, referindo o leitor a outro autor;
7.O não apresentar as operações
por ordem;
8.O enganar propositadamente
o leitor.”(1)
Ou seja, estamos falando de uma época em que eram poucos,
muito poucos os que sabiam ler, em qualquer língua. E por isso uma época em que
os textos, organizados como livros, encadernados e passiveis de serem folheados
eram mais raros ainda. Agora, acrescente-se a tudo isso um proposital arranjo
de palavras que tornasse de difícil ou impossível interpretação aquilo que
estava escrito, a tal ponto que a maioria dos chamados “textos alquímicos” não
fossem textos, mas gravuras, símbolos que deveriam ser interpretados pelos que
os contemplavam, interpretação esta que deveria trazer o real sentido do que
queria ser transmitido.Partindo do princípio óbvio de que um único símbolo pode ter
muitas interpretações, dá para imaginar a confusão que resultaria destas múltiplas
leituras e contemplações.Mesmo assim, diante de tudo que foi exposto, até hoje vemos
textos e mais textos tentando dar a ideia de que a alquimia, que foi um fenômeno
tanto chinês, como árabe antes de ser ocidental, era sim um método de trabalho
e estudo, muito claro, muito rigoroso e que levava a resultados iguais.
Assim, o estudante neófito lê sobre Nigredo, Rubedo e
Albedo, com ou sem a quarta fase do Citrino, como se estivéssemos conversando
sobre algo definido. Fala-se da importância do enxofre, do ouro e do mercúrio, da
importância da coleta da água do orvalho em certas noites de lua cheia, mas
essas coisas todas em uma ordem instável, que mudava ao sabor do autor.O próprio príncipe dos Alquimistas, Nicholas Flamel,
escrivão, prestem atenção, copista e vendedor de livros, ou seja, de histórias,
de narrativas, necessariamente não comprovadas, dizia em um de seus textos, “O
Livro das Figuras Hieroglificas”, que “os termos "bronze",
"titânio", "mercúrio", "iodo" e "ouro"
e que as metáforas serviriam para confundir leitores indignos.”
Nicolas Flamel
Aliás, queria destacar o trecho “…as metáforas serviriam
para confundir leitores…”. Se existe um laço entre os vários textos alquímicos,
é este, foram feitos, na grande maioria, apenas para confundir, não para
esclarecer.Muitos esoteristas, por ingenuidade ou insegurança, ao se
depararem com algo que não faz o mínimo sentido, supõem que a falha está neles
mesmos, que na verdade é a sua incapacidade interpretativa que os impede de ver
o que está atrás daquela muralha sem sentido evidente.Cabe aqui a questão libertadora: E se esses textos
incompreensíveis não fizessem nenhum sentido apenas e tão somente por que não
tenham mesmo sentido nenhum?E se tudo não passasse de um equívoco? De supor que um
arcabouço simbólico, que uma fala mitológica, refletisse não apenas símbolos de
valores ou ideias, mas sim aspectos materiais como um equipamento laboratorial específico
e práticas inúteis e demoradas que consumiriam dinheiro, tempo e até mesmo a
sanidade de quem com elas se envolvesse?A simplicidade de espírito e o pouco arsenal crítico de certos
esoteristas é espantoso, e não me refiro aos iniciantes, nem aos nossos
contemporâneos, mas a personagens clássicos da literatura esotérica, que influenciaram,
por exemplo, o imperator da Rosacruz no século XVII, o chanceler Francis Bacon.
Refiro-me a John Dee, místico e esoterista do século XVI,
matemático, astrônomo, astrólogo e geógrafo, que foi ludibriado por um
individuo inescrupuloso, que levou-o a práticas indignas alegando ter recebido “ordens
angélicas”. O episódio é narrado assim:
“As primeiras tentativas de Dee não foram satisfatórias, mas em 1582 encontrou-se com Edward Kelley, que o impressionou extremamente com suas habilidades. Dee pôs Kelley a seu serviço e começou a devotar todas as suas energias a suas perseguições sobrenaturais. Estas "conferências espirituais" ou as "ações" eram conduzidas sempre após períodos de purificação, de preces e de jejum. Dee foi convencido dos benefícios que eles poderiam trazer à humanidade. (o caráter de Kelley é mais difícil de avaliar: alguns concluíram que agiu com completo cinismo, mas a desilusão ou a decepção consigo mesmo não estão fora de questão). Dee dizia que os anjos lhe ditaram muitos livros desta maneira, alguns em uma espécie de língua angélica ou enochiana.
Em 1583 Dee conheceu o nobre polonês Albert Laski, que convidou-o para lhe acompanhar em seu retorno a Polônia. Através de alguns sinais dos anjos, Dee foi persuadido a ir. Dee, Kelley e suas famílias foram para o continente em setembro 1583, mas descobriram que Laski estava falido e aquém dos favores da corte de seu próprio país. Dee e Kelley começaram uma vida nômade na Europa central, mas continuaram suas conferências espirituais, que Dee registrou meticulosamente. Tiveram audiências com o imperador Rodolfo II e com o rei Stefan I da Polonia, e tentaram convencê-los da importância de suas comunicações angélicas. Foram ignorados por ambos.
Durante uma conferência espiritual na Boêmia (que corresponde atualmente a parte da República Tcheca) em 1587, Kelley disse a Dee que o anjo Uriel ordenou que os dois homens compartilhassem suas esposas. Kelley, que nessa época estava se tornando um alquimista proeminente e era muito mais procurado que Dee, pode ter desejado usar isto como uma maneira de acabar com as conferências espirituais. A ordem provocou em Dee uma profunda angústia, mas ele não duvidou de sua autenticidade e aparentemente deixou que ela fosse em frente, mas pouco depois abandonou as conferências e não voltou a ver Kelley.”
Dee era uma autoridade em esoterismo e Alquimia, mas uma criança psicológica.
Acredito que dar importância a Alquimia, como se esta fosse um exercício de ciência prática e não uma tradição simbólica e eminentemente simbólica, seria no mínimo ingênuo.
Não existe densidade metodológica alguma em um procedimento que se baseia em textos os quais seus próprios autores admitem “foram feitos para enganar”.
Para encerrar essas reflexões, queria lembrar minha falecida e divertida mãe. Ela tinha o hábito de relatar pela manhã que havia sonhado algo muito importante. E antes que pudéssemos dizer alguma coisa, começava a descrever uma sequência de imagens desconexas e confusas que obedeciam apenas a logica onírica. Em seguida vinham as suas interpretações, absolutamente arbitrárias, que se baseavam no fato de que seus sonhos eram tão esotéricos que se prestavam a qualquer interpretação, inclusive aquela que ela elegia como verdadeira.
Esse é o problema com o Esoterismo que as vezes é esotérico demais.
Pode ser que não seja um texto obscuro por ser profundo, mas porque internamente não tenha mesmo nenhum sentido a ocultar, a não ser aquele que nossa imaginação e vontade eleja como verdadeiro.
E como na história, esoteristas precisam ter um olhar objetivo e inocente como a criança que, ao contrário de todos na festa, tem uma visão tão livre de pré-conceitos que pode dizer, sem receio de errar: “O Rei está nu.”
(1) https://pt.wikipedia.org/wiki/Alquimia