Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

quinta-feira, 30 de maio de 2013

MISTICISMO LITERÁRIO E MISTICISMO REAL

por Mario Sales, FRC e SI



É comum no ambiente esotérico ouvirmos a expressão "texto inspirador". Ela se refere, via de regra, a peças literárias, de rara beleza ou profundidade que, uma vez consultadas desencadeiam em nós uma sensação de enlevo e bem estar espiritual. São depoimentos, narrações de eventos, coleções de metáforas ou símbolos descritos de forma clara ou obscura de acordo com aquele que o escreve. Alguns destes textos são muito antigos, centenários, enquanto outros datam de algumas dezenas de anos, mas todos se igualam na capacidade de desencadear em nós um estado de reflexão mística e de identificação com o que ali está escrito.
Identificação esta que tem a ver com os pressupostos da vida mística, ou seja, com o reconhecimento naquele texto de conceitos que são comuns ao discurso místico e esotérico mundial, como por exemplo, a noção de vida eterna do espírito a despeito da mortalidade do corpo, ou como dizem os rosacruzes, da personalidade-alma, e por decorrência deste conceito, o axioma da reencarnação; a existência de um só Deus, só perceptível por Sua Obra, um Ser incognoscível dada a Sua grandiosidade; a noção de evolução espiritual cumulativa, aperfeiçoadora daquela personalidade alma que atravessa centenas de vidas; o Panteísmo, a noção de que Deus está em todas as coisas, seja na concepção espinosista de classificar Deus como o conjunto de Sua Obra, seja na visão mística de atribuir uma inteligência a este ser, uma Independência como Entidade, ao mesmo tempo em que está misturado a toda a sua Criação (Panenteísmo).



Outros aspectos e paradigmas do discurso místico e esotérico internacional (sempre entendendo esoterismo como a prática de partilhar conhecimentos entre iniciados, com discrição, através de símbolos, e misticismo como a busca de um contato interno com aquela inteligência Divina supra citada) são a existência de grupos de seres em evolução paralela a nossa, manifestando-se em planos diferentes do nosso, invisíveis aos olhos dos homens comuns, que são a grande maioria; a noção de Campo Único, que em misticismo significa que todos estamos ligados , dividindo experiências e impressões emocionais pessoa-pessoa ou nação a nação, consciente ou inconscientemente (mais frequentemente); e finalmente a noção de causalidade para os acontecimentos, uma das mais fortes concepções místico-esotéricas, que é expressa geralmente pela frase "nada acontece por acaso" ou, por outra,"tudo que acontece tem uma razão"; e esta razão, via de regra, é didática, visa o aprendizado de algum valor emocional ou espiritual que contribui para o aumento da sabedoria desta personalidade alma em questão.
Ora, se reunimos estas noções em um texto (o espírito é 'eterno, reencarna várias vêzes, nossa vida visa o aprendizado e o aperfeiçoamento, nada é por acaso, Deus é um só e está em todas as coisas, o invisível é maioria e abriga outros seres em seu bojo, e todos nós estamos ligados a tudo que existe, seja nos planos visíveis como nos invisíveis) temos aí pelo menos sete grandes conceitos que sempre estarão, juntos ou separados, presentes em textos de natureza esotérica.
O resto vai depender do talento do escritor e de sua capacidade literária, do grau de sua inspiração.


Portanto, muita da cultura mística, talvez a maior parte dela, é essencialmente literária, já que não é comum contemplar o invisível, ou ouvir a Voz do Silêncio.
A maioria de nós é formada por homens e mulheres comuns, com limitações de percepção comuns a maioria dos seres humanos, e, por um motivo qualquer, sem que possamos ver ou tocar estas coisas, cremos que aquelas afirmações são verdadeiras, ou por senti-las em nosso interior como tal, ou por ter alguma experiência pessoal que nos leve a pensar dessa forma.
Experiências fundamentadoras destas crenças, por outro lado, a rigor, não são a maioria.
Cremos porque cremos e nem sempre sabemos descrever a razão de nossas crenças. Os céticos, os não iniciados, descreveriam tal situação como uma manifestação clara de superstição e falta de cientificidade, já que a base do pensamento científico é a presença da experiência direta do fenômeno, para depois surgir a crença, se bem que em astrofísica, a matemática vale mais que os fatos, pelas dificuldades inerentes a este tipo de área. Que eu saiba ninguém nunca chegou bem perto de um buraco negro para ver, em pessoa, como ele funciona.



De qualquer maneira, os místicos argumentam que suas crenças são fundamentadas, não em experiências externas, mas em experiências internas, de forte cunho emocional e psicológico, e embora impossíveis de serem testemunhadas por terceiros deixam marcas indiscutíveis naquele que as atravessa. Não se trata de uma crença sem uma fundamentação em fatos e ocorrências, mas sim de crenças fundamentadas em fatos e ocorrências íntimas, impossíveis de serem demonstradas exteriormente.
Racionalmente falando, o fato de crermos porque, diante do que sentimos, seria impossível não crer, a grosso modo, pode sim tanto (A)refletir um alto grau de sensibilidade espiritual, quanto (B)a presença de um pensamento fortemente supersticioso, já que, dentro de nós, o psicológico, nossas crenças e nossa personalidade, e nosso lado psíquico, nossas experiências místicas, se misturam dentro de nossa mente.



Não há como distinguir com facilidade uma situação da outra. E para sermos sinceros, no ambiente esotérico encontramos estes dois tipos de pessoas, (A) e (B).
O primeiro tipo(A) é alguém marcado pela experiência devocional, espiritual, com um mundo interior extremamente rico e dinâmico, em suma , um verdadeiro iniciado; o segundo (B) é impressionável e dado a crenças infundadas. Não há marcas em suas testas que os  distingam. Só os reconheceremos como membros de um ou de outro grupo quando conversarmos com eles. Existem entretanto algumas características de seu discurso que podem ser marcas de reconhecimento. Por exemplo, para o verdadeiro iniciado, o misticismo não pode ser essencialmente literário. Sua erudição não pode estar acima de sua vivência e experimentação das emoções ligadas à sua condição de Iniciado. Sabe que textos foram feitos para serem bóias de navegação, mas não são embarcações em si, nem constituem provas de quaisquer conceitos. Sagrados ou não para aquele que os lê, textos são apenas textos, e no máximo nos remetem a considerações que poderão nos levar a experimentar certas sensações, estas sim importantes, nas quais verificaremos a verossimilhança ou não do que está descrito no texto. Os textos mais poderosos não são, portanto, os mais longos ou obscuros, como supõem os esoteristas literários, mas sim aqueles que tem em si sinais indicativos deste ou daquele tipo de perspectiva de mundo, de uma visão do chamado real, nos propondo outras possibilidades de contemplar e nos relacionar com o que está a nossa volta.
Para tornar mais clara esta idéia, lançarei mão da arte. Ao contemplarmos um quadro, podemos olhá-lo de forma desarmada ou municiados de informações que modificam a nossa percepção dos detalhes.



A contemplação estética tem dois lados: o lado da sensibilidade, que se aperfeiçoa com a prática de contemplar, e o lado racional, que se aperfeiçoa com o acúmulo de informações sobre os estilos de pintura existentes e as características estéticas de cada artista.
Como no impressionismo[1]. Podemos olhar um quadro de Monet e dizermos :"Lindo". Ou podemos, por outra, "pensar" o quadro, o que só é possível se tivermos informações acerca das características básicas de um quadro desta escola de pintura. Se apenas observamos o quadro, desarmados, como eu disse, podemos gostar ou não gostar do que vemos. Mas, gostemos ou não, estando de posse de algumas informações ele nos parecerá muito mais interessante.
Como o fato de que o quadro impressionista deve ser uma pintura que mostra as tonalidades que os objetos adquirem ao refletir a luz do sol num determinado momento, pois as cores da natureza mudam constantemente, dependendo da incidência da luz do sol; que por isso também, é uma pintura instantânea (captação do momento), recorrendo, até, à aspectos da fotografia; que as figuras não devem ter contornos nítidos pois o desenho deixa de ser o principal meio estrutural do quadro, passando a ser a mancha/cor; que as sombras devem ser luminosas e coloridas, tal como é a impressão visual que nos causam e que o preto jamais é usado em uma obra impressionista plena; que os contrastes de luz e sombra devem ser obtidos de acordo com a lei das cores complementares e assim, um amarelo próximo a um violeta produz um efeito mais real do que um claro-escuro muito utilizado pelos academicistas no passado; que essa orientação viria dar mais tarde origem ao pontilhismo; que as cores e tonalidades não devem ser obtidas pela mistura de pigmentos e, pelo contrário,devem ser puras e dissociadas no quadro em pequenas pinceladas deixando ao observador, ao admirar a pintura, a tarefa de combinar as várias cores, obtendo o resultado final, fazendo com que a mistura deixe, portanto, de ser técnica para se tornar óptica; que os pintores impressionistas preferem representar uma natureza morta a um objeto; e que entre eles dá-se uma grande valorização de decomposição das cores. Nosso olhar ao pousar sobre o aquele quadro, municiado destas informações, não será o mesmo.
O quadro a nossa frente continua a ser o que era antes de termos toda essa informação, mas nosso olhar se modificou, pela cultura que absorvemos, pela educação de nosso sentido de visão.
A nossa experiência estética, portanto, foi levada a um plano superior, mais profundo, mais detalhado.
Isto não substitui, no entanto, a necessidade de termos sensibilidade, mas apenas instrumentaliza esta sensibilidade de dados que aprofundarão a experiência.
Textos esotéricos são, da mesma forma, experiências limitadas pela sensibilidade do leitor e pela sua capacidade intelectual de compreender todos os aspectos históricos e simbólicos presentes ali. Não podem ser a base de nossa experiência mística, mas podem se submetidos a uma exegese mais elaborada se estivermos capacitados por informações mais detalhadas destes mesmos textos. Isto, a semelhança dos quadros, não tornará desnecessário que tenhamos sensibilidade interior e intuitividade para interpretar o verdadeiro sentido destes textos, mas aguçará nossa capacidade de interpretação e nos mostrará aspectos que antes talvez nos passassem despercebidos.
Este longo arrazoado nos permite agora dizer que erudição mística nada tem a ver com o misticismo enquanto experiência pessoal e não a substitui, mas pode ser um instrumento útil no aprofundamento desta experiência.
E como não são instâncias intercambiáveis, posso ter três situações distintas quanto a classificação dos tipos psicológicos de esoteristas: primeiro, aqueles que acreditam que só a sua experiência interior é suficiente para atingir Deus e que não se interessam em consultar mais de um texto sagrado, mesmo que não conheçam bem o texto sagrado eleito; segundo, aquele que crê que pode atingir conhecimento místico pela leitura ininterrupta de textos esotéricos e que supõe que esta erudição lhe trará um misticismo mais profundo; e terceiro e último, aquele que usa estrategicamente esta erudição como auxiliar de suas experiências místicas, ou como complementação destas mesmas experiências, no sentido de auxiliá-lo a compartilhar aquilo que, via de regra, é impossível de descrever.
O terceiro tipo tem um forte senso de pertencimento ao grupo humano e sabe que sua experiência, (a considerar um dos axiomas da visão mística do mundo, aquele que diz que todos fazemos parte de um Campo Único) como citei acima, pode ser mais uma bóia que facilitará a navegação daqueles que são companheiros de oceano ou de outros que singrarão, no futuro, as mesmas águas.
Esta noção de que o que se sabe e o que se compreende precisa ser compartilhado de modo consciente e compreensível, da mesma maneira que é compartilhado automaticamente de modo inconsciente e, às vêzes, incompreensível, faz deste terceiro tipo de esoterista um ser diferenciado, misericordioso, preocupado tanto com sua evolução como com a evolução de toda a humanidade.
Compartilhar não é necessariamente escrever sobre alguma coisa. Mas o texto embora limitado, é uma forma internacional de consolidar idéias, conceitos e visões de mundo.
Se bem que não suficiente, é um instrumento válido para disseminar o conhecimento e aprofundar a sensibilidade de cada caminhante da senda.
Guardadas as devidas proporções, o Misticismo Literário deve caminhar lado a lado com o Misticismo Real, experimental, este sim fundamentado na vivência do místico e sustentador de crenças embasadas naquilo que é possível perceber em nossos corações e mentes.


[1] Impressionismo foi um movimento artístico que surgiu na pintura francesa do século XIX. O nome do movimento é derivado da obra "Impressão, nascer do sol" (1872), de Claude Monet. Tudo começou com um grupo de jovens pintores que rompeu com as regras da pintura vigentes até então.

Um comentário:

  1. Olá Frater Mário, saudações fraternais!

    Mais uma vez consolidando ideias! Parabéns pela sua inspiração de trazer para o raciocinio essa correlação.

    Monet, um de meus preferidos, proferiu a frase

    "Todos discutem minha arte e fingem compreender, como se fosse necessário compreendê-la, quando é simplesmente necesssário amar."

    Perfeitamente ajustada a ideia central!

    Indico, dentro dessa caminhada entre esoterismo e arte, o livro Do Espiritual na Arte de Wassily Kandinsky. Denso, desafiador, revelador.

    Até breve

    Paz profunda!

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