por Mario Sales, FRC e SI
É comum no ambiente esotérico ouvirmos a expressão
"texto inspirador". Ela se refere, via de regra, a peças literárias,
de rara beleza ou profundidade que, uma vez consultadas desencadeiam em nós uma
sensação de enlevo e bem estar espiritual. São depoimentos, narrações de
eventos, coleções de metáforas ou símbolos descritos de forma clara ou obscura
de acordo com aquele que o escreve. Alguns destes textos são muito antigos,
centenários, enquanto outros datam de algumas dezenas de anos, mas todos se
igualam na capacidade de desencadear em nós um estado de reflexão mística e de
identificação com o que ali está escrito.
Identificação esta que tem a ver com os pressupostos da vida
mística, ou seja, com o reconhecimento naquele texto de conceitos que são
comuns ao discurso místico e esotérico mundial, como por exemplo, a noção de
vida eterna do espírito a despeito da mortalidade do corpo, ou como dizem
os rosacruzes, da personalidade-alma, e por decorrência deste conceito, o
axioma da reencarnação; a existência de um só Deus, só
perceptível por Sua Obra, um Ser incognoscível dada a Sua grandiosidade; a
noção de evolução espiritual cumulativa, aperfeiçoadora daquela
personalidade alma que atravessa centenas de vidas; o Panteísmo, a noção
de que Deus está em todas as coisas, seja na concepção espinosista de
classificar Deus como o conjunto de Sua Obra, seja na visão mística de atribuir
uma inteligência a este ser, uma Independência como Entidade, ao mesmo tempo em
que está misturado a toda a sua Criação (Panenteísmo).
Outros aspectos e paradigmas do discurso místico e esotérico
internacional (sempre entendendo esoterismo como a prática de
partilhar conhecimentos entre iniciados, com discrição, através de símbolos, e misticismo
como a busca de um contato interno com aquela inteligência Divina supra citada)
são a existência de grupos de seres em evolução paralela a nossa,
manifestando-se em planos diferentes do nosso, invisíveis aos olhos dos homens comuns,
que são a grande maioria; a noção de Campo Único, que em misticismo significa
que todos estamos ligados , dividindo experiências e impressões emocionais
pessoa-pessoa ou nação a nação, consciente ou inconscientemente (mais frequentemente);
e finalmente a noção de causalidade para os acontecimentos, uma das mais
fortes concepções místico-esotéricas, que é expressa geralmente pela frase
"nada acontece por acaso" ou, por outra,"tudo que acontece tem
uma razão"; e esta razão, via de regra, é didática, visa o aprendizado de
algum valor emocional ou espiritual que contribui para o aumento da sabedoria
desta personalidade alma em questão.
Ora, se reunimos estas noções em um texto (o espírito é 'eterno,
reencarna várias vêzes, nossa vida visa o aprendizado e o aperfeiçoamento, nada
é por acaso, Deus é um só e está em todas as coisas, o invisível é maioria e
abriga outros seres em seu bojo, e todos nós estamos ligados a tudo que existe,
seja nos planos visíveis como nos invisíveis) temos aí pelo menos sete grandes
conceitos que sempre estarão, juntos ou separados, presentes em textos de
natureza esotérica.
O resto vai depender do talento do escritor e de sua
capacidade literária, do grau de sua inspiração.
Portanto, muita da cultura mística, talvez a maior parte dela, é essencialmente literária, já que não é comum contemplar o invisível, ou ouvir a Voz do Silêncio.
A maioria de nós é formada por homens e mulheres comuns, com
limitações de percepção comuns a maioria dos seres humanos, e, por um motivo
qualquer, sem que possamos ver ou tocar estas coisas, cremos que aquelas afirmações são verdadeiras, ou por
senti-las em nosso interior como tal, ou por ter alguma experiência pessoal que
nos leve a pensar dessa forma.
Experiências fundamentadoras destas crenças, por outro lado,
a rigor, não são a maioria.
Cremos porque cremos e nem sempre sabemos descrever a razão
de nossas crenças. Os céticos, os não iniciados, descreveriam tal situação como
uma manifestação clara de superstição e falta de cientificidade, já que a base
do pensamento científico é a presença da experiência direta do fenômeno, para
depois surgir a crença, se bem que em astrofísica, a matemática vale mais que
os fatos, pelas dificuldades inerentes a este tipo de área. Que eu saiba
ninguém nunca chegou bem perto de um buraco negro para ver, em pessoa, como ele
funciona.
De qualquer maneira, os místicos argumentam que suas crenças
são fundamentadas, não em experiências externas, mas em experiências internas,
de forte cunho emocional e psicológico, e embora impossíveis de serem
testemunhadas por terceiros deixam marcas indiscutíveis naquele que as
atravessa. Não se trata de uma crença sem uma fundamentação em fatos e
ocorrências, mas sim de crenças fundamentadas em fatos e ocorrências íntimas,
impossíveis de serem demonstradas exteriormente.
Racionalmente falando, o fato de crermos porque, diante do
que sentimos, seria impossível não crer, a grosso modo, pode sim tanto (A)refletir
um alto grau de sensibilidade espiritual, quanto (B)a presença de um pensamento
fortemente supersticioso, já que, dentro de nós, o psicológico, nossas crenças
e nossa personalidade, e nosso lado psíquico, nossas experiências místicas, se
misturam dentro de nossa mente.
Não há como distinguir com facilidade uma situação da outra.
E para sermos sinceros, no ambiente esotérico encontramos estes dois tipos de
pessoas, (A) e (B).
O primeiro tipo(A) é alguém marcado pela experiência
devocional, espiritual, com um mundo interior extremamente rico e dinâmico, em
suma , um verdadeiro iniciado; o segundo (B) é impressionável e dado a crenças
infundadas. Não há marcas em suas testas que os distingam. Só os reconheceremos como membros
de um ou de outro grupo quando conversarmos com eles. Existem entretanto
algumas características de seu discurso que podem ser marcas de reconhecimento.
Por exemplo, para o verdadeiro iniciado, o misticismo não pode ser
essencialmente literário. Sua erudição não pode estar acima de sua vivência e
experimentação das emoções ligadas à sua condição de Iniciado. Sabe que textos
foram feitos para serem bóias de navegação, mas não são embarcações em si, nem
constituem provas de quaisquer conceitos. Sagrados ou não para aquele que os
lê, textos são apenas textos, e no máximo nos remetem a considerações que
poderão nos levar a experimentar certas sensações, estas sim importantes, nas
quais verificaremos a verossimilhança ou não do que está descrito no texto. Os
textos mais poderosos não são, portanto, os mais longos ou obscuros, como
supõem os esoteristas literários, mas sim aqueles que tem em si sinais
indicativos deste ou daquele tipo de perspectiva de mundo, de uma visão do
chamado real, nos propondo outras possibilidades de contemplar e nos relacionar
com o que está a nossa volta.
Para tornar mais clara esta idéia, lançarei mão da arte. Ao
contemplarmos um quadro, podemos olhá-lo de forma desarmada ou municiados de
informações que modificam a nossa percepção dos detalhes.
A contemplação estética tem dois lados: o lado da
sensibilidade, que se aperfeiçoa com a prática de contemplar, e o lado
racional, que se aperfeiçoa com o acúmulo de informações sobre os estilos de
pintura existentes e as características estéticas de cada artista.
Como no impressionismo[1].
Podemos olhar um quadro de Monet e dizermos :"Lindo". Ou podemos, por
outra, "pensar" o quadro, o que só é possível se tivermos informações
acerca das características básicas de um quadro desta escola de pintura. Se
apenas observamos o quadro, desarmados, como eu disse, podemos gostar ou não
gostar do que vemos. Mas, gostemos ou não, estando de posse de algumas informações
ele nos parecerá muito mais interessante.
Como o fato de que o quadro impressionista deve ser uma
pintura que mostra as tonalidades que os objetos adquirem ao refletir a luz do
sol num determinado momento, pois as cores da natureza mudam constantemente,
dependendo da incidência da luz do sol; que por isso também, é uma pintura
instantânea (captação do momento), recorrendo, até, à aspectos da fotografia;
que as figuras não devem ter contornos nítidos pois o desenho deixa de ser o
principal meio estrutural do quadro, passando a ser a mancha/cor; que as
sombras devem ser luminosas e coloridas, tal como é a impressão visual que nos
causam e que o preto jamais é usado em uma obra impressionista plena; que os
contrastes de luz e sombra devem ser obtidos de acordo com a lei das cores
complementares e assim, um amarelo próximo a um violeta produz um efeito mais
real do que um claro-escuro muito utilizado pelos academicistas no passado; que
essa orientação viria dar mais tarde origem ao pontilhismo;
que as cores e tonalidades não devem ser obtidas pela mistura de pigmentos e, pelo
contrário,devem ser puras e dissociadas no quadro em pequenas pinceladas
deixando ao observador, ao admirar a pintura, a tarefa de combinar as várias cores,
obtendo o resultado final, fazendo com que a mistura deixe, portanto, de ser técnica
para se tornar óptica; que os pintores impressionistas preferem representar uma
natureza morta a um objeto; e que entre eles dá-se uma grande valorização de
decomposição das cores. Nosso olhar ao pousar sobre o aquele quadro, municiado
destas informações, não será o mesmo.
O quadro a nossa frente continua a ser o que era antes de
termos toda essa informação, mas nosso olhar se modificou, pela cultura que
absorvemos, pela educação de nosso sentido de visão.
A nossa experiência estética, portanto, foi levada a um
plano superior, mais profundo, mais detalhado.
Isto não substitui, no entanto, a necessidade de termos
sensibilidade, mas apenas instrumentaliza esta sensibilidade de dados que
aprofundarão a experiência.
Textos esotéricos são, da mesma forma, experiências
limitadas pela sensibilidade do leitor e pela sua capacidade intelectual de
compreender todos os aspectos históricos e simbólicos presentes ali. Não podem
ser a base de nossa experiência mística, mas podem se submetidos a uma exegese
mais elaborada se estivermos capacitados por informações mais detalhadas destes
mesmos textos. Isto, a semelhança dos quadros, não tornará desnecessário que
tenhamos sensibilidade interior e intuitividade para interpretar o verdadeiro
sentido destes textos, mas aguçará nossa capacidade de interpretação e nos
mostrará aspectos que antes talvez nos passassem despercebidos.
Este longo arrazoado nos permite agora dizer que erudição
mística nada tem a ver com o misticismo enquanto experiência pessoal e não a
substitui, mas pode ser um instrumento útil no aprofundamento desta
experiência.
E como não são instâncias intercambiáveis, posso ter três
situações distintas quanto a classificação dos tipos psicológicos de
esoteristas: primeiro, aqueles que acreditam que só a sua experiência interior
é suficiente para atingir Deus e que não se interessam em consultar mais de um
texto sagrado, mesmo que não conheçam bem o texto sagrado eleito; segundo,
aquele que crê que pode atingir conhecimento místico pela leitura ininterrupta
de textos esotéricos e que supõe que esta erudição lhe trará um misticismo mais
profundo; e terceiro e último, aquele que usa estrategicamente esta erudição
como auxiliar de suas experiências místicas, ou como complementação destas
mesmas experiências, no sentido de auxiliá-lo a compartilhar aquilo que, via de
regra, é impossível de descrever.
O terceiro tipo tem um forte senso de pertencimento ao grupo
humano e sabe que sua experiência, (a considerar um dos axiomas da visão
mística do mundo, aquele que diz que todos fazemos parte de um Campo Único) como
citei acima, pode ser mais uma bóia que facilitará a navegação daqueles que são
companheiros de oceano ou de outros que singrarão, no futuro, as mesmas águas.
Esta noção de que o que se sabe e o que se compreende
precisa ser compartilhado de modo consciente e compreensível, da mesma maneira
que é compartilhado automaticamente de modo inconsciente e, às vêzes,
incompreensível, faz deste terceiro tipo de esoterista um ser diferenciado,
misericordioso, preocupado tanto com sua evolução como com a evolução de toda a
humanidade.
Compartilhar não é necessariamente escrever sobre alguma
coisa. Mas o texto embora limitado, é uma forma internacional de consolidar
idéias, conceitos e visões de mundo.
Se bem que não suficiente, é um instrumento válido para
disseminar o conhecimento e aprofundar a sensibilidade de cada caminhante da
senda.
Guardadas as devidas proporções, o Misticismo Literário deve
caminhar lado a lado com o Misticismo Real, experimental, este sim fundamentado
na vivência do místico e sustentador de crenças embasadas naquilo que é
possível perceber em nossos corações e mentes.
[1]
Impressionismo foi um movimento artístico que surgiu na pintura francesa
do século XIX. O nome do movimento é derivado da obra
"Impressão, nascer do sol" (1872), de Claude Monet. Tudo
começou com um grupo de jovens pintores que rompeu com as regras da pintura
vigentes até então.
Olá Frater Mário, saudações fraternais!
ResponderExcluirMais uma vez consolidando ideias! Parabéns pela sua inspiração de trazer para o raciocinio essa correlação.
Monet, um de meus preferidos, proferiu a frase
"Todos discutem minha arte e fingem compreender, como se fosse necessário compreendê-la, quando é simplesmente necesssário amar."
Perfeitamente ajustada a ideia central!
Indico, dentro dessa caminhada entre esoterismo e arte, o livro Do Espiritual na Arte de Wassily Kandinsky. Denso, desafiador, revelador.
Até breve
Paz profunda!