Novos comentários
sobre a leitura
por Mario Sales, FRC,SI,CRC 18°
"1.Um clássico é um livro que nunca
terminou de dizer aquilo que tinha pra dizer.
2.Os clássicos são aqueles livros
que chegam até nós trazendo consigo marcas das leituras que precederam a nossa
e atrás de si, os traços que deixaram na cultura ou nas culturas.
3.Um clássico é uma obra que
provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas
continuamente as repele.
4.O clássico não necessariamente
nos ensina algo que não sabíamos; às vêzes, descobrimos nele algo que sempre
soubéramos ou acreditávamos saber, mas que desconhecíamos que ele o dissera
pela primeira vez."
Ítalo Calvino in "Por que Ler
os Clássicos", Ed. Compahia das Letras
Em uma dessas noites da Confraria do Vinho In Vino Veritas,
aqui em casa, queixei-me das dificuldades da leitura da Doutrina Secreta, (DS)
de Helena Petrovna Blavatsky (HPB). A pergunta a seguir era inevitável:
"Mas porque então você está lendo?"
Melhor seria que Calvino, eminente escritor italiano do
século XX, nascido em Cuba, e não eu, tivesse dado a resposta acima. Só que eu
ainda não a conhecia.
Respondi, se me lembro bem, que me sentia na obrigação de
conhecer as obras clássicas do esoterismo, se não todas pelo menos aquelas que
puder digerir em uma encarnação.
Gosto de conversar sobre o que conheço, não de especular
sobre que o que nunca contemplei. E em esoterismo como na vida social em geral,
ouvimos discursos absurdos que traem o desconhecimento do assunto de quem fala.
É apenas por isso, por amor ao conhecimento fundamentado,
que eu e Flavio continuamos a desbravar as florestas cerradas da DS da Editora
Pensamento, agora lidando com o III° volume, "Antropogênese".
Supõe-se, ao ler este título, que HPB e seus mentores
dedicar-se-ão, ato contínuo, a narrar a formação inicial do homem e da
humanidade, bem como seu desenvolvimento.
No entanto, com inegável talento para o Caos descritivo, ela
inicia o tomo estudando novamente as Estâncias de Dizyan, de I até XII.
Em um trecho anterior às "Estâncias", intitulado
"Notas preliminares sobre as Estâncias Arcaicas e os quatro continentes
pré históricos", na pág. 15, HPB alerta que realizou "...uma tradução
a mais literal possível; mas algumas das Estâncias... ", continua ela,
" ...são demasiado obscuras para que possam ser compreendidas sem uma
explicação...", e por isso HPB se propõe a explicá-las "...versículo
por versículo."
Se este projeto se mantivesse fiel a sua proposta, eu nada
teria a comentar. Só que é exatamente pela ausência de uma linha lógica e
encadeada de pensamento, (espargindo de modo anárquico e, às vêzes, desnecessário, milhares de informações pulverizadas, ao mesmo tempo, com o objetivo de
demonstrar erudição), que o leitor desarmado sente-se atormentado com as
frequentes quebras de estilo, tão bruscas e grosseiras ao longo da narrativa,
que o livro cairia das mãos de qualquer leitor menos maduro com facilidade.
Nestas "Notas Preliminares...", HPB é, ao
contrário, bem clara. Diz que "...no que concerne à evolução da
Humanidade, a DS enuncia três novas proposições, que se acham em contradição
formal com a ciência moderna [ciência de sua época, séc.XIX], e também com os
dogmas religiosos correntes".
Segundo HPB, a DS "...ensina...(a) a evolução
simultânea de sete grupos humanos em sete diferentes partes do globo;(b) o
nascimento do corpo astral antes do corpo físico, servindo o primeiro de modelo
ao segundo; e (c) que o homem nesta ronda, precede todos os animais - inclusive
os antropóides - do Reino Animal."
Deduzimos, ingenuamente, que ela começaria o texto deste
terceiro volume por aí, certo? Errado. Basta que olhemos o índice da parte I
(Antropogênese) na página 7, para vermos que a coisa para HPB, não pode ser tão
simples. Dos 26 tópicos enumerados ali, só o 25º fala especificamente de
"grupos humanos em desenvolvimento"ou, como HPB prefere, de raças raiz.
Até chegar aí ela se demorará em considerações paralelas
sobre símbolos do Oriente e do Ocidente, sem que fique clara a razão e a
importância pela qual ela o faz.
É como se, subitamente, HPB perdesse o foco e se esquecesse
do que estava falando. Não se trata de mudança de estilos literário como já
ouvi comentarem. É perda de linha de raciocínio pura e simples.
E o que nos causou mais perplexidade foi que, na página 53
ela lança sem aviso números permutados ao texto, ao modo da Gematria e da
Themurah.
Sem uma orientação prévia, de repente, lê-se na linha
seguinte: "A Cabala nos ensina que estes Sephirot eram números ou
emanações da Luz Celeste" e acrescenta a este trecho um parênteses
inexplicável "(20612:6561)".
Flavio e eu nem nos olhamos, tamanha nossa perplexidade.
Continuamos a ler na esperança de que mais a frente surgisse uma explicação.
Mas nada acontecia.
Que significariam estes números? Porque e para que foram
colocados ali? Por que os dois pontos entre ambos?
Fui para a internet e após pesquisar um pouco achei em um
site, www.nova-acropole.pt/a_lexaritmos, o que nos pareceu ser a razão de ser
destes números.
Ao que parece esses Lexaritmos são parte de um código usados
em diversas culturas para ocultar de profanos conhecimentos sagrados. Por que
trazê-los ao texto naquele momento continuou sendo um mistério para nós.
Este aspecto, a codificação do que já é esotérico de per si,
talvez mereça um post a parte.
O que tanto eu quanto Flavio notamos foi a falta de senso de
momento no texto e no contexto para o aparecimento destes números.
Este episódio mostra o que falei acima: em certos momentos
as mudanças de direção da DS são tão bruscas que mostram apenas perda de linha
de raciocínio e não mudança de estilo literário, como alguns
eufemicamente dizem. Já vi alguns esoteristas atribuírem o fenômeno,
reconhecido por outros, ao fato de que três grandes mestres segundo consta
usavam HPB como veículo de suas próprias idéias. O que em si, seja ou não um
fato, não melhora o problema da compreensibilidade do texto em questão.
Após todas estes questionamentos, muitos podem indagar qual
a motivação que nos faz continuar a leitura deste texto. Além do comentário de
Calvino em epígrafe , a resposta é simples: somos dois rosacruzes, e já que é
assim, somos extremamente curiosos.
Perguntamos-nos todas as quartas feiras porque um texto tão
confuso tornou-se um clássico; tentamos identificar aonde o texto está confuso
devido à uma tradução inadequada de Raymundo Mendes Sobral, aonde são erros de
impressão da própria editora Pensamento e aonde existem indícios de que o texto
foi adulterado por terceiros, ainda em Adyar, leia-se Ane Besant e Leadbeater,
no período imediatamente em seguida a morte de HPB.
Não é possível que este livro seja um clássico do esoterismo
apenas pela simplicidade intelectual de seus leitores que julgaram ao longo de
décadas o conteúdo pelo volume de informações ou, por reverência inexplicável, abstiveram-se de analisar criticamente o texto em questão, mesmo que suas colocações sejam inverossímeis, já que como
qualquer texto esotérico religioso ele só pode ser avaliado no terreno da fé.
É preciso crer que o que HPB narra é real, não só para ela,
para se continuar a leitura. Ou pelo menos deixar em suspenso, como bons
fenomenologistas husserlianos, a decisão sobre o que é ou não verdade em seus
relatos, até que mais dados estejam disponíveis.
Antes de tudo, por sermos esoteristas rosacruzes , é preciso
conhecer o texto, ir ao texto, com coragem, mas com humildade, sem no entanto,
em nenhum momento, eximir-se de pensar aquilo que estamos lendo.
Como quando conceitos cabalisticos são alterados sem pudor.
Na página 55, e convenhamos, isto não deve ser atribuído a HPB, mas aos seus
tradutores, uma das obras fundamentais do Cabala Judaico, o Sepher Yetzirah, é
traduzido para o português como "Número da Criação". Ora, de acordo
com Arieh Kaplan, minha referência em textos fundamentais de Cabala, no livro
"Sêfer Ietsirá" , O Livro da Criação, ed. Sêfer, 3a edição revisada,
set de 2005, o trecho 1:1 do Yetzirah, em outra forma de grafar, diz que "...E criou o Universo com três livros
(Sefarim), com texto (Sefer), com número (Sefar) e com comunicação (Sipur).
Portanto traduzir Sefer (texto ou livro) como se fosse Sefar (número) é uma
falha grosseira de tradução que nesta versão da DS, para mim e para Flávio,
hoje, já não surpreende.
Nessa hora sempre aparece a "turma do deixa disso"
que argumenta que se trata de uma vertente interpretativa diferente, mas não
errônea. Este argumento não se sustenta mais, hoje. Traduções melhores, a
internacionalização do conhecimento do hebraico e a melhoria do conhecimento
histórico, tiram este debate da sombra cinza aonde querem colocá-lo. Trata-se
de um erro de tradução, puro e simples, sobre o qual HPB não tem nenhuma
responsabilidade.
Continuaremos a ler e criticar o texto, mas também a
estudá-lo na sincera intenção de entendê-lo.
Infelizmente aqui não podemos contar com o contraponto das
traduções iniciadas em 2012 e disponíveis em: http://www.filosofiaesoterica.com/userfiles/A_DOUT_SEC_1_PASSO_A_PASSO_04_02_2015.pdf ,as quais não alcançaram ainda este trecho em que estamos trabalhando.
O que nos consola é que existe um genuíno interesse em
restaurar as informações da DS, tanto por teósofos como por não teósofos,
curiosos, como os rosacruzes.
Nenhum esforço é em vão. Em breve teremos resultados.
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