Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sábado, 29 de maio de 2021

A MARCA DE CAIM

 

Por Mario Sales


 



“Então disse Caim ao Senhor: É maior a minha maldade que a que possa ser perdoada. Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua face me esconderei; e serei fugitivo e vagabundo na terra, e será que todo aquele que me achar, me matará. O Senhor, porém, disse-lhe: Portanto qualquer que matar a Caim, sete vezes será castigado. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que o não ferisse qualquer que o achasse.”

Gênesis 4:13-15

E eu, que já era Caim e levava a marca na fronte, imaginara naquele instante exato que o sinal não era um estigma infamante, mas antes um distintivo e que minha maldade e infelicidade me faziam superior a meu ai, superior aos homens bons e piedosos…Hoje sei muito bem que nada na vida repugna tanto ao homem do que seguir pelo caminho que o conduz a si mesmo!

Demian, Herman Hesse

 

O esoterismo é um campo de conhecimento muito curioso.

Grande parte dos esoteristas acreditam como uma questão de dogma que o nome de seu campo deve ser a senha para seu comportamento.

Por isso, ser esoterista é acreditar que o segredo deve ser preservado a todo custo.

O que exatamente está sendo mantido em sigilo é discutível e incerto, mas primeiramente, devem ser ocultados os textos internos das ordens iniciáticas, e tornar-se membro de uma delas, AMORC, outras denominações de cunho rosacruciano e a Maçonaria, é aprender a não revelar estes textos passados entre os membros de forma velada.

Talvez a quebra deste axioma tenha começado pela maçonaria. Embora dentro de seus templos alardeasse sua esotericidade, a maioria de seus textos foram entregues ao publico profano através de livrarias que se especializaram em publicar livros e mais livros sobre assuntos maçônicos. Os autores realmente importantes da Maçonaria não hesitaram, mesmo tendo jurado segredo, em revelar com erudição e entusiasmo, conhecimentos que, a priori deveriam ficar dentro dos templos. Nada disso foi punido, ninguém foi chamado às falas, pelo contrário, ganharam notoriedade entre seus pares, foram alçados a categoria de sumidades em assuntos maçônicos, convidados para palestras aqui e ali e, óbvio, ganharam algum dinheiro vendendo deus textos, disputados pelas tais livrarias acima citadas.

A AMORC vem em segundo lugar. Tem afirmado ao longo de décadas que seu estudo é reservado apenas aos membros regulares, porém grande quantidade ou quase toda a informação delicada e secreta já foi publicada e é consumida avidamente por leitores leigos, não iniciados, em todo o mundo.

A coleção Renes, editora carioca, patrocinou a edição de dezenas de títulos daquilo que intitulou “Biblioteca Rosacruz”, alguns deles, como os de autoria de Raymond Bernard, com revelações acerca dos Mestres Ascencionados da Fraternidade Branca que no passado seriam consideradas transgressões do segredo.

É curioso o fato que se interpelamos algum irmão mais antigo sobre este paradoxo a resposta invariavelmente é de que Raymond Bernard podia fazer estas revelações, e até descrever em detalhes rituais secretos ocorridos em locais privados chamados por ele Mansões da Rosacruz, sem que isso lhe acarretasse nenhuma punição. E podia porque “deveria” ter permissão para isso.

Se colocarmos na balança as revelações feitas por este ilustre Frater com o que um membro ordinário e comum da Ordem quisesse revelar, na minha modesta opinião, nada poderia chegar aos pés das descrições que estavam em seus livros em termos de, digamos assim, informação reservada. Mesmo assim esses livros continuam a ser publicados e lidos por quem quer que os compre, em qualquer livraria ou sebo que os venda, sem nenhuma restrição, sem necessidade de ser ou não membro da Ordem ou mesmo ter tido qualquer iniciação mais profunda nos conhecimentos ditos esotéricos.

Se todos podem ler sobre coisas tão delicadas como difíceis de crer, o que realmente temos a ocultar?

Por que dizemos que somos uma ordem discreta ou secreta como querem os mais conservadores?

Ou mantemos este discurso com uma intenção meramente de marketing, visando dourar a pílula para atrair os curiosos interessados, ou dizendo com outra metáfora, passando verniz em um velho cajado de madeira?

Tocar neste tema as vezes fere ainda algumas sensibilidades. Para o bem de nossa Ordem, entretanto, não deveríamos ter assuntos proibidos, a não ser, coisa que não acredito, que tenhamos receio em discutir nossos assuntos abertamente, como é nossa tradição. Frater Charles Parucker, nosso antigo Grande Mestre da Língua Portuguesa, gostava de repetir um mantra: a Ordem Rosacruz AMORC era baseada na mais completa liberdade, dentro da mais completa tolerância.

E ele vivia esse lema.

Jamais o vi usar sua autoridade como algo ameaçador ou sua posição de modo intempestivo.

Era um homem extremamente sério, mas também bondoso e sua força entre nós estava centrada na sua personalidade ao mesmo tempo reservada e cordial.

Nosso tema não é esse, entretanto. Falávamos do segredo.

A terceira Ordem a considerar, se bem que não podemos classificá-la desse modo, é a Sociedade Teosófica. Pela natureza de seu trabalho, jamais defendeu uma posição de sigilo quanto aos seus ensinamentos, mesmo tendo mantido, enquanto Blavatsky estava conosco, alguns pequenos grupos de estudo mais avançados, que estudavam com HPB pessoalmente. Em relação a isso, talvez o motivo de não existir proibição de discussão pública dos conhecimentos teosóficos fosse o fato de que os livros de Blavatsky são tão obscuros e as vezes confusos que só isso representava um obstáculo a sua compreensão e interpretação, livros secretos em si mesmos, que não poderiam ser compreendidos a não ser com muito esforço e persistência intelectual, coisa que a esmagadora maioria dos seres humanos não possui.

Desde os primórdios em Adyar, na Índia, a ST tem produzido e publicado seus textos e dentro do possível, multiplicado suas representações em volta do planeta na intenção de dar a mais ampla divulgação a estes mesmos textos, para o maior número possível de pessoas.

Ou seja, Maçonaria e AMORC querem ser sociedades discretas ou secretas, mas de forma persistente publicam seus chamados segredos para que qualquer um possa lê-los e conhecê-los. A Sociedade Teosofica, ao contrário, quer ser lida, embora só tenha conhecido uma grande expansão de interesse em seu trabalho nos últimos anos, realizando uma profecia de Blavatsky de que seus ensinamentos só ganhariam importância 100 anos após sua morte.

Então, de novo, que segredo é este, fisicamente falando, que guardamos? Existe, em algum lugar, um manual de Magia repleto de palavras mágicas que um maçon, um rosacruz ou um teosofista pudesse usar para realizar atos milagrosos e transcendentais? Isso eu posso responder, sem quebrar nenhum juramento: não existe.

Existe alguma informação facilmente usável que não poderá ser jamais contemplada por um profano?

Também creio que não.

Na maçonaria contemporâneo, o grau de conhecimento ocultista está perto de zero. AMORC me passou, ao longo de quarenta e sete anos de afiliação, duas técnicas realmente poderosas, das quais uma está amplamente descrita para leigos não iniciados em um texto que se encontra em sebos hoje em dia, chamado “Princípios rosacruzes para o Lar e para os Negócios”.

Spencer Lewis não tinha medo de contar o que sabia. Mais do que isso, queria contar. Sabia que nenhum segredo realmente importante do ocultismo pode ser violado apenas pela revelação de seu aspecto formal.

Ele sabia, como eu sei, que nenhum objeto tem poder algum que não lhe seja dado pelo seu manipulador.

E o poder do indivíduo vem de sua evolução espiritual e de sua intuição que não podem ser desenvolvidas de modo rápido e fácil.

Sim, os textos estão aí, mas como se estivessem escritos em línguas extintas que poucos de nós saberiam traduzir. Embora pareçam fáceis e acessíveis escondem em seu interior tantos pressupostos simbólicos que são para poucos e não para todos.

Repito o que sempre digo: não existe risco algum de profanação daquilo que é verdadeiramente esotérico, principalmente se estiver em forma literária, já que, como lembrava Papus, “se o não iniciado conseguir um texto esotérico primeiramente não terá interesse em ler; se o ler, não o compreenderá; e se compreender, não acreditará.”

Interesse, capacidade de entendimento e aceitação, três condições que não são frequentes entre os seres humanos. Usando uma metáfora de Herman Hesse em seu livro “Demian”, só os que tem a “marca de Caim” terão essas três virtudes juntas em si, mesmo que não tenham sido jamais iniciados em qualquer ordem esotérica tradicional.

Porque são esses homens que fazem as Ordens existirem, não ao contrário. São homens fadados a buscarem por eles mesmo, dentro de si, sem recorrer a outros recursos senão sua introspecção e consciência.

É neles que devemos nos concentrar, já que serão os responsáveis por transmitir adiante a “sagrada luz que nos foi confiada.”

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