Por
Mario Sales
Fé, como confiança inabalável na intervenção de
poderes divinos, é algo praticamente impossível.
Poucos seriam aqueles que poderíamos elencar entre os
quais possuem ou possuíram este tipo de convicção, aonde o medo não tenha
estado totalmente ausente, mas tenha sido de tal modo subjugado que não tenha
sido capaz de gerar o surgimento da dúvida ou da ansiedade.
Se esta espécie de Fé, como eu disse, inabalável,
fosse possível, traria consigo como corolário, a serenidade perfeita, total.
Só que não é assim. Serenidade total, pois, é um
horizonte desejável, mas não um estado permanente, enquanto estamos em corpos
frágeis, mortais e entre personalidades, digamos assim, não muito evoluídas.
Considerando estes aspectos óbvios da natureza da vida
humana, vejo como produtos de uma época e de um tipo de visão de mundo, textos aonde
a Fé é descrita, explicada e revelada como algo apreensível pela razão, e daí
possível de ser posta em prática com a simplicidade de quem segue um manual.
A Fé, a confiança de que a Providencia Divina nos
socorrerá pronta e rapidamente, talvez seja possível na ausência total de um pensamento
crítico ou racional, o que equivaleria ao estado de inocência, descrito nas
passagens bíblicas. Só que crianças, via de regra, não precisam rezar, já que
suas existências, se forem minimamente normais, reproduzem um estado de
harmonia com a natureza que perdemos enquanto envelhecemos e nos instruímos.
Quem recebeu alguma informação intelectual foi exposto
também a valores, entre os quais a Fé em sua própria cultura intelectual. E
isto significa, aprendeu a pensar e a ser prudente.
E manda a prudência que confiemos nas nossas
experiências mais que em nossas crenças. Que nossas crenças sempre podem estar
equivocadas enquanto a experiência demonstra um modo de ser do mundo que se
tiver um caráter repetitivo e estável, como o ciclo dos dias e noites, deve
merecer de nós toda confiança possível.
Místicos prudentes também confiam em suas
experiências, não nas experiências externas, mas nas suas experiências
internas. Sentimentos como amor, misericórdia, inveja, ira, compaixão, não são
mensuráveis, palpáveis, mas são absolutamente perceptíveis e reais. É neste mundo
interior emocional que o místico prudente faz seus estudos e aprofunda seu
autoconhecimento, além de aperfeiçoar seu conhecimento da natureza humana em
geral.
Assim entende que a Fé mais perfeita, como a do
Cristo, que alegava que se a mesma fosse “do tamanho de um grão de mostarda e
disséssemos a este Monte: “Move-te!
” ele se moveria” este mesmo Cristo é aquele que no Gólgota suava
sangue de ansiedade, sabedor do sofrimento que em poucas horas o aguardava. Não
havia nele falta de Fé, mas clareza de que, independente de nossa conexão com o
Altíssimo, existem experiências desagradáveis, mas incontornáveis, que roubam a
serenidade até de Altos Iniciados, quanto mais de pessoas comuns como nós, que “não
somos dignos de desatar-lhes as sandálias”.
Faço estas considerações por motivos pessoais e pela
leitura de um pequeno trecho da Lição XII, “A Força da Fé”, página 53, de um
agradável livro de Francisco Valdomiro Lorenz, “Lições Práticas de Ocultismo
Utilitário”, presente de meu querido amigo Inc.
“Poderia ser explicada”, diz o trecho” com maior
clareza a força da fé? Porque, pois, há tanta gente, no mundo, que vive doente,
pobre, miserável, ao passo que outros tem abastança, saúde, cultura? Quem vê
estas coisas pelo prisma espiritual, reconhece que esse estado de coisas é
devido a duas causas: o Karma, que é a Lei de Causa e Efeito, e regulariza as
ações de uma ou mais encarnações; e a falta de verdadeira Fé na possibilidade
dum melhoramento da situação. ”
A afirmação em si é contraditória. Por um lado, afirma
que estamos sujeitos a Lei de Karma, afirmação com a qual concordo, mas insinua
que esta sujeição determina nosso sucesso e insucesso; e por outro lado, alega
que este mesmo sucesso e insucesso estão ligados a intensidade e qualidade de
nossa Fé na providência divina. Existem, portanto, várias possibilidades:
pessoas com bom Karma e pouca fé; bom Karma e muita fé; mal Karma e pouca fé; e
mal Karma e muita fé.
Que alguém com bom Karma e muita Fé encontre
serenidade e prosperidade material, compreende-se; mas o que dizer das pessoas com bom Karma e pouca fé? Serão serenas, ou a falta de Fé inviabiliza o bom Karma,
como fatores que se anulam na equação?
Por outro lado, que adiantará pouca ou muita Fé se o
Karma for mal?
A Fé a que o autor citado se refere é a Fé num Poder
Maior, Espiritual. Penso, entretanto, em pessoas como Stephen Hawking, cujo
Karma dificílimo de sofrer por toda a vida de uma doença degenerativa incurável
não o impediu de ter uma existência produtiva, filhos, ocupar uma cátedra que
pertenceu a Sir Isaac Newton, sem provavelmente jamais ter conhecido nenhum
tipo de experiência religiosa. O Prof. Hawking é um homem de notável senso de
Fé, mas sua Fé apoia-se na ciência, não em aspectos espirituais.
Este homem é um desafio para interpretações
espiritualistas superficiais ou simplistas.
O que o manteve vivo e produtivo para além das
previsões e das expectativas mais otimistas dos seus neurologistas foi sua
extrema curiosidade e inteligência. Foi sua vontade de conhecer mais e mais a
natureza do Universo que o manteve ligado a existência e a transformou em algo
profundamente interessante, a tal ponto que a morte teve que esperar, e ainda
espera, enquanto em sua cadeira de rodas adaptada ele sonha com números e
buracos negros.
Lembrem a frase do autor do livro: “Porque, pois, há
tanta gente, no mundo, que vive doente, pobre, miserável, ao passo que outros
tem abastança, saúde, cultura? ”
Hawking funde estes aparentes opostos. Ele é um doente
grave, mas nem é pobre, nem miserável, nem muito menos inculto e sua atividade
mental é tão rica que não podemos muito menos negar-lhe grande saúde intelectual.
É a Fé espiritual que nos sustenta, é o Karma que nos
derrota? Nem sempre.
O mundo interior humano é muito complexo.
Eu mesmo não viveria sem a minha Fé espiritual, sem a
confiança que tenho em Deus, mas não acho que meu Karma seja melhor ou pior por
isso, ou ao contrário, que um Karma bom ou mau determine a intensidade ou a
qualidade de minha Fé na Providência Divina.
São forças autônomas, que às vezes se inter-relacionam,
sem se determinar.
Todos, crentes ou não, com bons ou maus Karmas,
devemos buscar serenidade em nossas existências e talvez aquilo que mais
consiga nos dar serenidade seja tornarmo-nos, como lembrava Nietzsche, aquilo
que somos, seguir nossa Physys, nossa natureza, e mergulharmos de cabeça neste
talento especial que nos distingue, seja ele qual for.
Metas claras, definidas, e uma mente e um corpo harmônicos
com nossas metas, talvez sejam o segredo da serenidade e de uma vida realizada
e feliz.
A Espiritualidade e a Fé não são chaves para a
felicidade, pelo contrário, podem ser um caminho de dor e angústia. Tudo
depende de que o indivíduo respeite ou não sua própria natureza e se entregue a sua
missão no mundo com paixão.
Mesmo que sua Fé seja apenas na Ciência é possível
vislumbrar em sua existência lampejos do Eterno.
A Santidade verdadeira, talvez, seja estar em paz consigo, apenas isso.
A Santidade verdadeira, talvez, seja estar em paz consigo, apenas isso.
E o que poderia nos dar mais paz do que uma vida de
realizações?
É algo em que se pensar.
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