SOBRE OS CONFLITOS HERMENÊUTICOS NO “GRUPO DE ESTUDOS CABALISTICOS” DAS SEXTAS FEIRAS
Por Mario Sales
“Mostrarei compaixão quando escolher mostrar compaixão apesar
de que não o mereça”
Talmud, Berajot 7ª, citado nos
comentários ao Zohar, Hakdamá, seção de Bereshit, Ediciones Obelisco, pág 44
“Pergunta o autor se essa “justiça” é a caridade. Caridade é
o conceito de dar alguma coisa gratuitamente, sem que isso seja merecido. A
resposta é não. O conceito de dádiva gratuita é como uma “cota de malha”, usada
sobre o “corpo”. O “corpo” é Tiferet-Beleza, que é o conceito de dar,
comedidamente. (Ora) Se Deus concedesse Seu bem gratuitamente, sem que fosse
merecido, não seria um bem perfeito”
Comentário do Rabino Arieh Kaplan,
ao verbete 75 do Sepher Al Bahir, ed. Imago, 1ª edição 1980, pág. 173
Vejam como são as coisas.
Não fosse o esforço de leitura de vários textos e de
diferentes fontes, o estudante de Cabala ingênuo acreditaria estar diante de
uma explicação definitiva quando lesse alguma das duas versões acima.
Não é tão simples, no entanto.
Estudar Cabala é mergulhar não só em uma cultura específica,
com um raciocínio lógico peculiar e estranho, como logo se percebe nas
primeiras páginas, mas que está longe de ser um campo homogêneo aonde certos
conceitos gozam de interpretações padrão aceitas por toda a comunidade.
Cota de malha
É comum em textos judaicos a referência a um trecho da
Torah, como forma de justificar determinada linha de pensamento, mas isto não
implica segurança de que aquela interpretação encontra respaldo indiscutível.
Ninguém seria tolo de negar autoridade ao Rabino Arieh
Kaplan para promover a interpretação do Bahir, como o faz em sua edição
comentada. Da mesma maneira, devemos dar ao Talmud o mesmo tipo de atenção e respeito.
Nos trechos acima evidencio o conflito entre duas visões,
entre duas interpretações, feitas em textos de caráter referencial na Cabalá. A
ponto de, ao fazermos a leitura ontem a noite do Bahir, eu ter defendido a tese
de que a interpretação sobre a Natureza da Caridade do Rabino era a imagem
clara de uma perspectiva característica do judaísmo ao contrário da visão
Cristã, mais conhecida, de dar por dar, sem olhar a quem.
O termo “comedido”, no comentário do rabino Kaplan,
significa moderado, eu diria mais, cuidadoso, dando a impressão de alguém que
pensa, reflete antes de dar, como se avaliasse o receptor da dádiva, ou seja,
estabelecesse a partir de um critério particular se este seria ou não merecedor
da dádiva antes de oferecê-la.
Mais à frente, em seu desdobramento, o Rabino esclarece:
“Para que esse bem
seja perfeito, deve ser merecido. Esse é o conceito de “justiça” (Tzedek) onde
uma recompensa justa é concedida a uma ação justa para obtê-la. ” (Idem, pág
173)
Mais clareza e conflito entre duas interpretações é impossível.
Ao que se depreende, o contexto interpretativo às vezes define a linha de
interpretação, que não parte de princípios gerais, mas de circunstâncias do
texto em análise, o que torna a leitura dos textos cabalísticos e sua
interpretação atomizada, às vezes sem obedecer a princípios gerais e
consagrados.
Este tipo de conclusão é absurda, senão não teríamos como
falar em um campo de saber definido, mas a tentação de se fazer este
julgamento, pelo menos a partir da minha enorme ignorância, é forte.
O belíssimo texto em espanhol que introduz o Zohar,
traduzido pelo Projeto Amós, em 2006, em Barcelona, continua em sua linha
dizendo que:
“Desde esse ponto de vista, tanto a sefira de Hockmah como a
de Biná representam um grande nível de bondade, devido ao seu alto nível
espiritual”
Já o rabino Kaplan rebate com o seguinte raciocínio:
“Se Deus concedesse Seu bem gratuitamente, sem que fosse
merecido, não seria um bem perfeito. Por que não sendo merecido, seria o “pão
da vergonha” (Maguid Mesharim, Bereshit). Além disso, uma vez que o receptor
está recebendo sem dar, quando recebe não se assemelha, de forma alguma, a Deus...Para
que esse bem seja perfeito, deve ser merecido. Esse é o conceito de “justiça”
(Tzedek) onde uma recompensa justa é concedida a uma ação justa para obtê-la.”
E continua:
“Diz-se que esse conceito de “justiça” está na “cabeça”, que
é definida como “verdade” (EMeT). “Verdade” já foi definida nesse contexto,
consistindo de Hockmah-Sabedoria, Biná-Compreensão e Daat-Conhecimento.”
Para os cabalistas de Barcelona, a tríade superior da Árvore
representa a bondade infinita de Deus, caracterizada pela dádiva indiscriminada.
Para o Rabino Kaplan, a mesma tríade, se bem que com a
Participação de Daat, configura a Justiça, e o critério de discriminação entre
dádivas merecidas e não merecidas.
Deus dá a todos generosamente, e como lembra Paulo apóstolo
em Atos, 10-34, “Deus não faz acepção de pessoas”, ou deve haver sim um
critério para a dádiva, baseado na Verdade oriunda da Justiça?
Talvez uma conciliação possível dessas duas visões seja a de
que o rabino fala sobre o Receptor, que como ele mesmo lembra, mais a frente, “o
homem deve fazer por ser merecedor desse bem” enquanto que os cabalistas de
Barcelona referem-se a Deus, o Doador, e não ao homem, quando dizem que Deus
escolhe mostrar compaixão mesmo que aquele que a recebe não o mereça.
O Doador, portanto, é sempre dádiva, mas o receptor deve
esforçar-se para tornar-se digno desta dádiva, o que de certa maneira, torna-o harmônico
com a dádiva em si.
Quanto melhores formos como seres humanos, mais assemelhar-nos-emos
ao Criador e mais aptos estaremos a receber e compartilhar de Sua infinita
bondade, sendo que esta semelhança entre o homem e Deus garante a eficácia da
dádiva ou graça perfeita.
O Bem doado a um indivíduo despreparado (ou indigno)
para recebe-lo é como uma energia que não encontrando um bom condutor se esvai
e desaparece sem causar benefício real.
Esta interpretação, no entanto, é um esforço pessoal meu de tentar
conciliar posturas hermenêuticas aparentemente antagônicas.
Nunca é demais supor que meu juízo de valor possa estar
comprometido pelo meu pouco conhecimento deste campo tão rico e heterogêneo.
Que o Senhor do Universo me inspire em minhas leituras.