Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sábado, 30 de abril de 2011

O TZIMTZUM ESFÉRICO

por Mario Sales, FRC.:; S.:I.:; M.:M.:

Terminei de escrever uma resposta ao comentário que recebi ontem (“CONVERSANDO COM FERNANDO”), e lá pelas tantas vi que tinha cometido um sacrilégio cabalístico. Elaborei um conceito sem discutir antes com Frater Reginaldo do Recife, minha referência no assunto.
Quando comentava os aspectos paradoxais do casamento entre imanência e transcendência, citei ao meu leitor que uma das culturas que havia emitido conceitos que poderiam ser identificados com o modelo panenteísta era a cultura judaica, com a noção cabalística do século XVI de Luria conhecida por Tzimtizum.
E aí comentei que, embora no texto cabalístico de Isaac Luria, o Ari, se falasse que Deus era um Todo Circular que abria em seu centro um espaço para o surgimento da Criação, uma constricção em sua natureza, afirmei que em vez da imagem da rosquinha Donuts que eu sempre usava nas aulas do martinismo, dever-se-ia pensar em uma esfera que abria dentro de si uma outra esfera menor, um espaço esférico de criação finito no centro de uma esfera maior, o Ain-Sof, o Infinito.
Percebi então que isto não estava no Cabala, era uma imagem minha. Aí telefonei para Reginaldo em busca de socorro e respaldo. Encontrei-o no celular.
Sempre prestativo, avisou que voltaria para casa e pesquisaria. E assim foi. Meia hora depois ele liga e diz:
"- Aqui nos textos que eu tenho fala-se em círculo que se retrai, uma constricção, tzim, a contração, tizum, a expansão. Esfera não fala não."
E agora? Só que isto para mim estava claro. E me lembrei de um insight semelhante durante uma reunião martinista em que vi nitidamente que, no Quadro Universal de Martinéz de Pasqually, embora estivessem desenhados círculos, mais sentido faria se fossem considerados esferas que se tangenciavam, mesmo que apenas para servir de modelo didático. Apresentei um trabalho sobre o assunto. Publiquei nas páginas essencialmente Martinistas do Blog ("O Eixo Fogo Central Incriado"). E ficou por aí.
Agora a mesma maldição esférica vem mexer com minha visualização do Tzimtizum.
Falei pra Reginaldo: “- Se Luria não fala, é porque na época dele como na época de Martinez e Saint Martin todos pensavam bidimensionalmente. Tenho certeza que é uma esfera. Fica como outro Insight meu.”
Mestre Reginaldo riu. E eu também.
Mas eu estava falando a sério. Só que é engraçado esta maneira de pensar a herança mística e ocultista, modernizando-a quanto à sua representação espacial.
Eu cresci vendo televisão, sou um indivíduo visual.
Gosto de entender um conceito vendo-o em minha mente.
Todo mundo gosta. Falar sobre um conceito, por mais material e palpável que seja, não é a mesma coisa que poder mostrá-lo.
Quanto mais um conceito altamente abstrato.
E a didática se vale de modelos descritivos desde que o mundo é mundo.
O tzim tizum é assim. É um conceito aparentemente bidimensional por que na época todos eram bidimensionais, não porque Luria tenha visto assim.
A própria Terra, nosso planeta, ainda era meio plana. Digo meio plana porque Vasco da Gama já tinha feito o caminho das Índias, as Américas tinha sido descobertas , Colombo (século XV) já havia conversado com a Rainha Isabela e posto o ovo em pé. Só que a sociedade ainda não tinha absorvido o impacto epistemológico.
Levaria muito tempo para sair de um mundo plano para um mundo redondo, ou melhor esférico.
Hoje ainda estamos lendo coisas da época sobre o prisma da época, sem arriscar mudar uma linha sequer, com medo de perverter a tradição. Mas é preciso perder o receio, que todo estudante rosacruz tem, por respeito pela tradição que ele preserva, e avançar.
Temos de tridimensionalizar a Tradição, isto não me sai da cabeça.
E por falar nisso, vamos arriscar mais um pouco, isto aqui é apenas o meu blog, ninguém se importa se eu cometer algumas heresias em nome da da mais completa liberdade dentro da mais perfeita tolerância.
E se o tzim tizum não for uma singularidade? E se dentro de Deus, do Ein Sof, ocorreram outras constricções, que permitiram o surgimento de outros universos?

Já que são muitos planetas, muitas esferas, porque não muitos universos? Não é disso que a moderna cosmologia fala, não é sobre isso que os matemáticos especulam? Os famosos Universos paralelos, ou para usar um termo mais esférico, universos tangenciais? Quem sabe até, oscilando e interpenetrando-se eventualmente.
Por que não?
Antes acreditamos que éramos apenas nós no Universo.
Depois descobrimos que éramos muitos, milhões de estrelas cercadas de dezenas de planetas cada uma.
E se foram múltiplas constricções, não um Universo mas o Multiverso? Talvez estas sejam considerações para uma Neo-Cosmovisão Cabalística.
Bom, estas são minhas especulações.
Afinal este é o meu Imaginário.
Espero que o Velho Ari, Luria, o Leão, não esteja se sacudindo na tumba a esta hora

sexta-feira, 29 de abril de 2011

CONVERSANDO COM FERNANDO

Por Mario Sales, FRC.:,S.:I.:,M.:M.:



Gostaria de começar este texto agradecendo ao meu leitor que tem trocado interessantes comentários comigo.
Como todos sabem, eu apenas moro em São Paulo, já fazem 20 anos, mas sou carioca de nascimento. Nasci no Estado da Guanabara, estado que não existe mais desde a fusão com o Estado do Rio de Janeiro.
Os cariocas, nome que no Rio reservamos apenas aos nascidos na cidade do Rio de Janeiro, são muito parecidos com os gregos: adoram conversar.
Imagine o meu prazer em receber uma nova carta do meu leitor, outrora Incógnito, e agora para minha satisfação identificando-se como Fernando. Diz que não tornou-se “incognitus” por vontade própria mas que o Google o nomeou assim ao fazer o comentário no blog.
Agradeceu a visibilidade da resposta, mas quanto a isto eu explico: não consigo responder aos comentários pessoalmente a não ser que o comentarista deixe um email para resposta.
Eu até consigo ir até os blogs que a pessoa segue e mais nada.
E como gostei muito do detalhismo dos comentários de Fernando acabei respondendo pela capa do blog.
Neste segundo comentário, Fernando diz que acha intuitivamente que eu queria dizer panenteísmo e não panteísmo no meu comentário.
Bom, até ontem eu não sabia o que era panenteísmo, mas agora que estudei o assunto, se bem que superficialmente, e descobri o trabalho de Christian Krause, posso dizer que com certeza não concordo com ele e, de resto, repito a definição que peguei do dicionário de filosofia:
No “Dicionário de Filosofia de N.Abbagnano, Editora Mestre Jou, 2a edição em português de 1982, São Paulo (...) na página 711, (...) está escrito que panenteísmo é um "termo criado por Christian Krause para designar uma síntese entre teísmo e panteísmo a qual consistiria em admitir que tudo que existe, existe em Deus e existe como realização e revelação de Deus. Na realidade este ponto de vista é próprio do panteísmo clássico e, portanto não se vê utilidade no termo, o qual, com efeito, não teve aceitação"
Ou seja, em filosofia, um saber muito profissional, embora não pareça, existe um consenso de que a noção de panenteísmo não trouxe qualquer avanço conceitual em relação à noção de panteísmo.
O que Krause tentou foi criar um híbrido, que satisfizesse a sua necessidade pessoal de preservar a idéia de uma Entidade Divina definível no tempo e no espaço, localizado, portanto, com um Universo onde este mesmo Ser Divino estivesse como é dito, Onipresente, mas diluído, espalhado, não localizado.
As palavras chave da questão são imanência e transcendência.
Em filosofia, imanência tem três sentidos:
1. Entre os Escolásticos, imanência era uma ação cuja finalidade estivesse dentro dela mesma.
2. A limitação do uso de certo princípio à experiência possível e a recusa de admitir conhecimentos autênticos que superem os limites desta experiência.
3. A absorção de toda a realidade na consciência.
Explicando, sempre com ajuda do dicionário de Nicola Abbagnano.
1° conceito: os Escolásticos (Escolástica ou Escolasticismo é uma linha dentro da filosofia medieval, de acentos notadamente cristãos, surgida da necessidade de responder às exigências da fé, ensinada pela Igreja, considerada então como a guardiã dos valores espirituais e morais de toda a Cristandade. Por assim dizer, responsável pela unidade de toda a Europa, que comungava da mesma fé. Esta linha vai do começo do século IX até ao fim do século XVI ) falavam de uma ação imanente em oposição a uma ação transitiva. Como exemplo de imanente temos entender, sentir, querer, coisas que dizem respeito ao próprio autor da ação, que nunca escapam ao seu espaço. Já as transitivas tem como exemplo serrar, esquentar, quebrar, e dizem respeito a interação com uma matéria externa ao sujeito da ação. Esta distinção já estava presente em Aristóteles que fala de atividade e movimento, sendo atividades ações dentro do próprio agente (imanentes, para os escolásticos) e movimento algo que transcenda o próprio agente(transitiva para os escolásticos), com os mesmos exemplos acima. Também Espinosa usava esta concepção dizendo que “Deus é causa imanente e não transitiva de todas as coisas.”
O segundo significado está em Kant. Ele fala que imanentes são “os princípios cuja aplicação se atém em tudo e por tudo nos limites da experiência possível”. Dizendo de outra maneira, é Imanente aquilo que eu posso experimentar; ao contrário, o não experimentável, não perceptível aos sentidos, que se situa além da experiência material, ele chamou de Transcendente. Assim, princípios imanentes, segundo Kant, devem ater-se ao domínio da experiência e jamais ultrapassá-lo.
O terceiro sentido de Imanência é pós kantiano. Seus defensores são Fichte e Schelling. Nesta conotação, imanência significa que toda a realidade está contida no Eu. Nada existe fora do Eu ( ou Absoluto ou Consciência). Espinosa concordava com esta visão ao dizer que a ação de Deus é imanente porque não vai além do próprio Deus.
O que existe de comum entre estas três interpretações é que a Imanência restringe as consequências de uma ação ao próprio agente, seu causador.
Mas o que isso tem a ver com Panenteísmo? Quando Krause cria o termo Panenteísmo em sua obra System des Philosophie (1828), ele tenta fazer uma convergência entre imanência e transcendência. Deus seria algo que, ao mesmo tempo,  contém a criação e é o seu conteúdo.
A imagem do Círculo abaixo explica o paradoxo.
Tudo que está dentro do Círculo está contido pelo círculo e é, pois, seu conteúdo.
O círculo estabele a linha de contenção deste conteúdo, e é chamado de Continente.
Na teoria do panenteísmo, considera-se possível que algo esteja contido e ao mesmo tempo esteja em torno do conteúdo.


Outro exemplo: uma esponja cheia de água.
Neste particular, apenas para efeito didático, temos um conteúdo dentro de um continente diferente do círculo acima, mas ainda assim, temos uma estrutura externa à água que a absorve e a contém.
Embora pareça que ambos estão unidos por completo isto não corresponde a realidade. A água não se fundiu com a esponja, mas percorre milhares de microcanais existentes em sua estrutura, contida dentro destes canalículos, cada um funcionando a seu tempo como um círculo continente que contém a água dentro dele, o conteúdo.
Mesmo aqui, aonde parece existir fusão, existe coexistência em espaços diferentes de duas realidades: os canais da esponja e a água dentro destes canais.
A idéia de Krause propõe a possibilidade de uma convivência entre dois conceitos irreconciliáveis e por isso foi rejeitada pela filosofia. Pasmem, no entanto, não foi rejeitada pela religião onde é possível que Krause tenha se inspirado.
Embora, como meu querido Fernando diga, existam sinais de Panenteísmo em Platão e Plotino, na verdade o conceito ainda não existia e não podemos a rigor dizer tal coisa. Mas entendo que a idéia estivesse em gestação em certas doutrinas de cunho metafísico religioso como em Plotino que representa o neo platonismo ligado ao Cristianismo.
O que Fernando não diz em defesa do Panenteísmo, mas eu descobri estudando o assunto, é que o Cabala tem características panenteístas num de seus mais consagrados conceitos com o qual, talvez, Krause tenha se familiarizado no século XIX, o conceito de Tzimtzum.
Como é sabido, o Tzimtzum é descrito originalmente por Isaac Luria(1534-1572), um cabalista do século XVI, muito estudado no Martinismo.
Para Luria, Deus não criou o Universo expandindo-se mas contraindo-se como uma rosquinha de Donut, e abrindo dentro de si mesmo um “espaço conceitual” aonde a criação foi possível. Isto é puro panenteísmo, já que Deus está lá fora, em volta de tudo, e penetrando tudo, e no seu centro estamos nós. Este modelo salva conceitualmente o panenteísmo harmonizando Imanência e Transcendência.
Certo? Não, errado. Por que aqui, o que temos não é imanência, mas um conteúdo criado dentro de um ser Criador. Não há nem a integração e aparente fusão do modelo da Esponja. O que temos não é nem mesmo o modelo da Rosquinha, mas uma esfera dentro de outra esfera.


A esfera interna é Olam, o mundo ou o universo criado, finito, dentro de Deus , o Incriado, o Infinito, mas sem sombra de dúvida, dele, mundo, separado, pois Deus é o Continente Criador e a Criação, com tudo que existe dentro dela, o conteúdo, separado e no centro do Criador.
Se dissermos que o Tzimtzum é um modelo panenteísta estaremos errando pois, na idéia de Krause, tem que haver concomitância entre Imanência e Transcendência e não convívio; tem de haver simultaneidade e não sucessividade (primeiro o círculo e depois o seu interior).
Isto não satisfaz o místico. O místico percebe a presença de Deus em si e no mundo. Imagens materiais não resolvem este problema conceitual. Menos uma: a água.



Eu pensei em usar a água como exemplo por causa de Espinosa. Espinosa era panteísta e não panenteísta, porque defendia a tese de que existia uma substância primordial aonde tudo se encontrava e do qual tudo era apenas uma modificação, (ou como dizia meu professor Ivair, o irmão mais novo de Claudio Ulpiano, uma dobra de tecido).



Cada realidade, cada ser, cada pedra, seriam apenas dobras de uma realidade comum, a chamada Substância, onde tudo reside e de onde tudo provém. Lemos em http://cogitamundo.wordpress.com/2008/12/08/espinosa-deus-e-natureza/ : “Spinoza defendeu que Deus e Natureza eram dois nomes para a mesma realidade, a saber, a única substância em que consiste o universo e do qual todas as entidades menores constituem modalidades ou modificações. Ele afirmou que Deus sive Natura (“Deus ou Natureza” em latim) era um ser de infinitos atributos, entre os quais a extensão (sob o conceito atual de matéria) e o pensamento eram apenas dois conhecidos por nós.”


Lembrei-me então de falar da água como exemplo final desta imanência do panteísmo que não é igual a proposta do panenteísmo. Imanência é a água e uma estátua de gelo, duas coisas formadas de uma mesma substância que, dependendo de seu estado, pode ter características gasosas, líquidas ou sólidas. Isto é imanência e variedade. Sempre água e sempre diferente.
Como estátuas de gelo, que são água, mas apenas formas extraídas de uma mudança de estado físico, por diminuição do movimento das moléculas internas, causado pela mudança de temperatura (frio).
Esta é a idéia mística de imanência, o verdadeiro panteísmo.
Deus ou Tudo, como dizia Tales de Mileto, é Água.
Continue mandando emails Fernando e se quiser conversar "face to face" anote aí meu Skype: mario.sergio.sales.
Grande abraço

quinta-feira, 28 de abril de 2011

NOMES, TERMOS, SIGNIFICADOS

Por Mario Sales, FRC.: ; S.:I.: ; M.:M.:

Um leitor do blog que não se identifica, e usa o curioso codinome de “Incognitus”, manda um comentário simpático em relação ao texto “Todos somos diferentes”, publicado semana passada. Entretanto, referindo-se ao trecho em que está escrito “por que o místico, em geral, segue uma linha panteísta, melhor dizendo, não há alguém, em algum lugar, com quem negociar ou contra quem se revoltar.”, questiona se o termo correto em vez de panteísmo não seria panenteísmo.
Fiquei curioso. Não conhecia o termo panenteísmo.
E, como todo bom ignorante, fui ao dicionário.
Primeiro, consultei o Dicionário de Filosofia de N.Abbagnano, Editora Mestre Jou, 2a edição em português de 1982, São Paulo. Lá na página 711, lá embaixo, canto direito, está escrito que panenteísmo é um "termo criado por Christian Krause para designar uma síntese entre teísmo e panteísmo a qual consistiria em admitir que tudo que existe existe em Deus e existe como realização e revelação de Deus. Na realidade este ponto de vista é próprio do panteísmo clássico e portanto não se vê utilidade no termo, o qual com efeito não teve aceitação." 
No Dicionário Houaiss, edição de 2009, Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, na página 1422, lemos lá embaixo na primeira das 3 colunas da página que panenteísmo é “um termo criado pelo pensador alemão Cristian Krause (1781-1832) para designar sua doutrina, caracterizada como uma síntese entre o teísmo e o panteísmo, pois calcada na suposição de que a totalidade do Universo está situada no interior de uma única divindade primordial.
Na página seguinte, 1423, na parte de baixo da 2ª coluna, encontramos a definição de panteísmo, que é o sentido que quis dar no trecho do meu ensaio supra citado, referindo-se “a doutrina filosófica caracterizada por uma extrema aproximação ou identificação total entre Deus e o Universo, concebidos como realidades conexas ou como uma única realidade integrada.”
Esclarecido o ponto, fiquei encafifado com a descoberta de mais um pensador místico, graças ao comentário do leitor, e fui fazer as pesquisas de praxe acerca do mesmo.
Na Wikipedia achei a seguinte referência a este pensador:




Karl Christian Friedrich Krause

“Karl Christian Friedrich Krause (Eisenberg, 4 de maio de 1781 - Munique, 27 de setembro de 1832) foi um filósofo alemão.Foi professor em Jena (1802), Göttingen (1823) e Munique (1831). A filosofia de Krause pretendia ser uma continuação autêntica do pensamento de Kant, contra o que ele considerava as falsas interpretações de Fichte, Schelling e Hegel. Para Krause, Deus, conhecido intuitivamente pela consciência, não é uma personalidade, mas uma essência que contém o próprio universo. Mas isso não significa que Krause aceitasse a designação de panteísmo pois não identifica Deus com o universo, mas antes considera o mundo como mundo-em-Deus.O homem e o universo formam um todo orgânico feito à imagem de Deus e a vida do todo se desenvolveria segundo uma lei perfeita. Para Krause, haveria na humanidade a unidade do Espírito e da Natureza. A humanidade compõe-se de seres que se influenciam reciprocamente e estão vinculados a Deus. Os períodos históricos seriam etapas sucessivas da ascensão a Deus, que culminaria com uma humanidade racional.”
O interessante em sua abordagem é a recusa em identificar Criador e Criação, quase como com receio de que essa desindividualização da divindade significasse o desaparecimento da mesma.
É difícil pensar o inimaginável. Deus é assim. Nem por isso ele deixaria de existir se reconhecêssemos sua complexidade.
As imagens do renascentismo italiano, o Deus da belíssima Capela Sistina, com barbas brancas e um corpo com musculatura definida, saudável, ou o conceito de Pai defendido no discurso cristão, que nos remete a relações familiares, de proteção e intimidade, servem muito bem ao apelo didático de transmitir a idéia de uma divindade, desde o início definida como Incognoscível.
Todos sabemos no entanto que são apenas modelos e não um retrato fiel de alguma coisa que é impossível descrever.
Por isso talvez a insegurança do filósofo. Naquela época pré quântica, quando tudo parecia bem mais estável e sólido, a idéia de algo indefinível e amorfo era no mínimo desconfortável. Entendo a situação psicológica de um homem do século XVIII.
Fiquei pensando, depois desta análise, no esforço que o intelecto humano faz para justificar intelectualmente aquilo que seu coração lhe diz que é verdadeiro.
Lembrou a clássica oposição entre Criacionismo e Método científico.

O discurso, por mais complexo e bem elaborado, apenas reflete a crença de quem o escreve e em si, não prova ou refuta totalmente determinado ponto de vista ou opinião.
Daí a importância de fundamentar o que se diz com a experiência, conquista pós positivista, mas que começoiu a ser desenhada lá atrás com a obra de Francis Bacon , lord chanceler da Inglaterra e Imperator da Ordem Rosacruz do século XVI.
Bom, é isso. Agradeço ao leitor “Incognitus” pelo mote de pesquisa. E se for possível, na próxima vez que mandar um comentário, revele-se, identificando-se por seu nome verdadeiro. Será uma grande alegria conversar com alguém, que ao contrário do Todo Poderoso, tem rosto e carteira de identidade.
Grande abraço.

terça-feira, 26 de abril de 2011

LUZ E TREVAS

Por Mario Sales, FRC.: ; S.:I.: ; M.:M.:


Algumas semanas atrás, o blog foi sacudido por um debate acerca da pertinência de uma prática ocultista ortodoxa em nossos dias.
Minha posição foi de que não havia cabimento em tal coisa, dado o simples fato de que a própria arte mágica ter evoluído com o passar dos anos, no que fui combatido energicamente por dois cavalheiros dos quais até hoje não sei o nome.
Talvez tenham imaginado que em meu arrazoado eu queria renegar 36 anos de prática mística esotérica rosacruciana ou seis anos de Maçonaria e de Martinismo.
Não sei bem.
Se foi essa a impressão que ficou, tratou-se obviamente de um equívoco.
Se existe algo de que não posso nem quero me desfazer, é da minha condição de Iniciado.
Como tal, tenho um papel ou papéis definidos a desempenhar, dentre eles o que mais me orgulha, o de ponte entre três nobres ordens.

Rosacrucianizar o Martinismo e a Maçonaria, no sentido de transmitir a ambos a sede de conhecimento e a ambição espiritual dos artesãos rosacruzes, esta é uma nobre missão.
Martinizar o rosacrucianismo, levando-o a uma maior atividade templária, da mesma forma, fortalece as duas ordens e amplia os horizontes de seus membros.
Em qualquer Ordem em que estejamos, entretanto, não abdicamos de nossa condição de Iniciado em combate, sim, em confronto permanente com as forças das Trevas, que só um iniciado pode reconhecer e combater com a devida obstinação.
Era isso também que eu defendia naquele debate de semanas atrás citado acima (O OCULTISMO E A TEURGIA ESTÃO FORA DE MODA 1,2 e 3).

Hoje não combatemos no mundo visível, no mundo dos mantos e cajados. Hoje combatemos em terreno muito mais refinado e impreciso em contornos: combatemos dentro do mental.
Quem prestar atenção perceberá que uma apatia importante se alastra por todo o planeta. Chamemos este desânimo coletivo de Trevas.
São estas Trevas que nos desafiam com sua anedonia, sua ausência de objetivos, sua ética amoral e confusa.
Em muitas ordens esotéricas vemos este ataque de forma ostensiva, com um grande número de Frateres e Sórores abandonando as fileiras da Ordem , bem como mestres Maçons abandonando suas Lojas, e Martinistas que, desmotivados, se afastam de suas Heptadas mal atingem o que acham ser o último grau , o de S.:I.:, como um curso que se acaba e não uma convivência que se aprimora e que se inicia.
Lutamos, nós, os iniciados modernos, contra o poderoso Demônio do Desânimo, que não tem corpo, nem forma, nem voz, e que é capaz de ter múltiplos rostos e múltiplas vozes, sempre com um discurso envolvente, aliciando os que consegue para um caminho sem volta.

Uma vez que convença o incauto de que não vale a pena dedicar-se a prática do Misticismo, de que ficar descansando em sua casa, em frente a uma televisão idiotizante, é melhor do que buscar conhecimento e iluminação, a batalha contra as Trevas, para este irmão, estará perdida.
Hoje, meus caros, a luta se trava dentro de nós. Não temos mais bandeiras claras pelo quais lutar, viver ou morrer. Nossos cuidados com segurança, nossos toques, palavras de passe e sinais, tudo parece sem sentido.

Estamos em tempos de uma perigosa paz que nos amortece os reflexos e que nos enfraquece de modo importante, progressivo.
É preciso estar atento. A nossa própria batalha de Kurukshetra expandiu-se, os lados estão definidos, mas os soldados ainda podem trocar de lado se assim o quiserem, a qualquer momento.
Nós, os representantes da Luz, devemos estar a postos, e como Ulisses, muitas vezes lutar será amarrar-se a um mastro e colocar cera nos ouvidos de nossos companheiros para que não sejam seduzidos pelo canto das sereias do mal que tentam nos afastar da senda esotérica.


Trata-se de um período dos mais difíceis e só os verdadeiramente tocados pela espada iniciática poderão ultrapassá-lo ilesos. Os que não tiverem em suas testas e em seus ombros o toque da iniciação serão arrastados pela Magia do Mal que tentará das mais variadas maneiras, convencê-los de que desistir e sair da senda é a melhor coisa a fazer. O Demônio do Desânimo trabalha com sutileza, como de resto qualquer demônio age. Começará fazendo com que o Iniciado se esqueça de seus ensinamentos exatamente quando mais precisar deles, diante de uma demanda profana qualquer, um problema financeiro, ou pessoal.
Lançará véus mágicos sobre seus olhos de modo a impedir que ele veja as soluções possíveis e impedirá sua visualização embotando suas idéias e provocando-lhe sono e desmotivação.
Não é uma guerra aberta, franca, mas uma seqüência de escaramuças, uma atividade de guerrilha, com técnicas de sabotagem e destruição dos fundamentos da sua estrutura de convicções.
Só os soldados treinados e experientes conseguirão superar tais ataques, súbitos, sempre inesperados, dia após dia, semana após semana.
E este é um motivo pra desespero? De forma alguma.
Para o Verdadeiro Iniciado, tudo isto não passa de mero exercício e treinamento, aonde ele aperfeiçoa seus dons e habilidades.
A Batalha contra o Demônio do Desânimo é eterna, mas pode ser superada pelo bom humor associado a pensamentos elevados e atividades de engrandecimento espiritual.
Uma coisa é certa: afastar-se de seus quartéis-generais, suas Ordens, suas Egrégoras, é tudo o que o Iniciado não deve fazer nesses sombrios momentos que atravessamos.
Precisamos do reforço positivo de nossos ambientes espirituais, não importa qual seja ele, de maneira a assegurar que pelo fato de muitos vigiarem, em muitas direções nossa segurança aumente e o inimigo jamais nos surpreenda despreparados.
A Egrégora é nossa redoma de proteção.
Não devemos desprezá-la, mas utilizá-la a nosso favor e a favor de todos que estão como nós sob sua proteção.
Este combate entre a Luz e as Trevas já dura desde que a Humanidade surgiu e provavelmente não cessará. É possível, entretanto, transformá-lo de ameaça em uma oportunidade de aperfeiçoamento moral espiritual pois só podemos demonstrar nossa capacidade quando respondemos a um desafio de grande importância.
É isso que nos fortalece e estimula.
Não fomos feitos para as redes e para o Paraíso, imóvel, sem evolução.
Somos energias em deslocamento, forças de transformação, que só encontram seu sentido na existência quando em movimento e ação.
Não esqueçamos a lição mais importante da iniciação: não somos nós que agimos, mas Deus que age em nós.

O único pecado é a Omissão. Agindo estaremos sempre em consonância com a vontade divina e a vitória de nossos melhores desejos é certa.
Que a voz de Krishna em nossos ouvidos, nos sirva de inspiração:
“Levante-se e prepare-se para lutar. Depois de conquistar seus inimigos você terá um reino próspero. (...) Você, ó Savyasacin, poderá ser nada mais que um instrumento na luta.”

domingo, 24 de abril de 2011

TODOS SOMOS DIFERENTES

“A reação psíquica determinada pela experiência com a morte, ou mesmo diante de um diagnóstico médico associado com a perspectiva de vir a morrer, foi descrita por Elisabeth Kubler-Ross como tendo cinco estágios (Berkowitz, 2001): Negação, raiva, barganha, depressão e aceitação.”

Por Mario Sales, FRC.:; S.:I.:;M.:M.:

Foi considerando os estágios psicológicos ligados a doenças terminais que comecei a considerar se não podem existir estágios semelhantes na “morte” de uma personalidade para dar lugar a uma nova manifestação espiritual. Todos nós atravessamos pequenas mortes psicológicas ao longo da vida.
Mudanças implicam a morte de certas compreensões para dar lugar às novas.
Sempre que evoluímos, evoluímos não de forma gradual e suave, mas por sucessivas rupturas com perspectivas que durante muito tempo foram a base psicológica de nossa forma de ver o mundo.
Matar o velho é a expressão.
Em misticismo usamos uma expressão menos dramática e violenta, mas nem por isso deixando de representar uma forte mudança de foco: passar por uma iniciação.
A cada iniciação, dá-se uma pequena morte, um pequeno ensaio de transformação, e já que hoje é Domingo de páscoa, o dia da ressureição, um renascimento, que está representado didaticamente na metamorfose da lagarta.
A literatura já explorou este momento muitas vezes, mas talvez seja em Richard Bach (Ilusões) que encontremos a síntese mais poética: “O que a lagarta chama de morte, o Mestre chama de borboleta”, diz ele.
Sim, uma intensa e significativa transformação, mas em se tratando de seres humanos, não tão indolor assim.
Por isso merece uma análise mais demorada, até para gerar marcos ou bóias que possamos deixar para facilitar o caminho a outros na senda mística. É isto que aqueles como eu, que envelheceram neste caminho, devem fazer: deixar sinais para os que passarão pela mesma senda.


Quando estamos próximos de um novo patamar evolucional certos acontecimentos denunciam sua proximidade. A cultura mística japonesa fala de um estado de bem aventurança que surge apenas, e somente apenas quando atingirmos o mais profundo desespero. Os rosacruzes também se referem a um período de angústia pré iluminação, não a noite negra da alma, mas outro período, que será atravessado pelo iniciado com mais consciência do que a noite negra, o qual nem por isso deixará de ser difícil.
Mas a questão é: existirão fases internas discerníveis na experiência iniciática, para além destas duas fases, desespero e despertar, treva intensa imediatamente antes da luz ofuscante?
Primeiro, sigamos algumas etapas neste raciocínio psicológico: qual aspecto da vida humana é o mais difícil de combater na busca pela iluminação? O budismo nos diz a resposta: o apego, a sensação de que somos donos de alguma coisa ou ainda, capazes de reter com nossas mãos o fluxo das mudanças.
Em Buda, lemos: Existe a Dor; a fonte da Dor é o apego; desfazendo-se o apego, desfaz-se a Dor.
Simples assim. Psicologicamente falando, entretanto, extremamente complexo.
Somos criados, educados para crer nas relações de apego. Falamos de modo mais ou menos despreocupado, todo os dias de nossa vida em “minha mulher”, meus filhos”, “minha posição social”, “minha cultura intelectual”, ou quando queremos demonstrar mais espiritualidade “meu Deus”. São clássicas expressões de apego disfarçadas de identificação. Eu não estou falando do “meu carro”, ou da “minha casa”, ou do “meu dinheiro”. Não. Isto é banal. Falo de coisas mais sutis, coisas que não são coisas, mas pessoas, sentimentos, crenças.
Aí mora o perigo.
Quando algo nos atinge às vezes é mais fácil administrar do que quando atinge alguém que amamos e que por isso, esperamos que goze de uma proteção mística de tudo que possamos considerar nefasto ou doloroso. Só que as coisas não são assim, e o livro de Jó, simbolicamente, fala sobre esses momentos.
O salmo 91 não corresponde aos fatos, mas a um compreensível desejo humano de segurança e estabilidade, de uma época em que a negociação com a Divindade fazia parte do cotidiano. Aliás, até hoje faz, dependendo do nível espiritual da pessoa.
A Divindade só é interessante e merecerá nosso louvor se nos cobrir de graças. Nenhum mal poderá nos suceder já que isto não é condizente com nosso desejo.
Queremos saúde, física e mental, prosperidade material para nós e para os nossos familiares. Se apenas uma dessas condições não for contemplada, perdemos nossa confiança na Divindade que minutos antes louvávamos. Ou podemos ir para o outro extremo: o ceticismo não metodológico, mas como princípio, uma outra forma de religião, só que às avessas. Nada referente ao Divino deve ser verdade e a religião, considerada a única expressão da religiosidade, com seus erros e injustiças, com seus fanáticos e fundamentalistas, deve ser vista como fonte do mal e da ignorância e por isso, deve ser combatida como uma abominação supersticiosa num mundo abençoado pelo conhecimento científico.
Todos sabemos que ambas as posições são falhas.
Primeiro, a experiência mística nada tem a ver com a negociação de favores materiais presente em todas as épocas; e o ceticismo absoluto nega-se a admitir a sensibilidade interna como imanente ao ser, parte importante do indivíduo, e que tem na religião uma de suas expressões, mas não a única.
Deus é testemunha que por vários motivos não nutro simpatia pelo trabalho histórico da Igreja de Roma, mas isto nada tem a ver com a religiosidade presente neste ou naquele santo católico, neste ou naquele homem ou mulher que deposita nesta linha religiosa suas crenças e esperanças. Somos, frente a vida, livres para sentir Deus, cada um ao seu modo, desde que sejamos capazes de uma experiência autêntica, pessoal, algo que não pode ser ensinado ou explicado, nem intermediado, mas que pode ser sentido.
Voltemos ao nosso raciocínio. O apego é o grande problema para o místico, em qualquer linha em que ele esteja. Não apenas para o místico ocidental, mas também para o oriental. É tão difícil experimentar o desapego para quem é como para quem não é Budista.
No Ocidente, no entanto, por causa do apelo consumista, tudo fica muito mais complicado.
E aí entram aquelas fases que falamos antes: Negação, raiva, barganha, depressão e aceitação.
Quando confrontados com alguma perda, atravessamos também fases semelhantes.
Primeiro tentamos negar (“Não pode ser verdade!) depois a raiva, a revolta (Por que eu? Por que meu pai, ou minha mulher, ou minha filha?); depois a barganha: ( se você Deus desfizer magicamente tal situação, prometo que farei isto ou aquilo) .
Vamos analisar estas três fases: do ponto de vista místico as coisas não são bem assim. Principalmente por que o místico, em geral, segue uma linha panteísta, melhor dizendo, não há alguém, em algum lugar, com quem negociar ou contra quem se revoltar.
Talvez seu sofrimento seja mais intenso justamente por causa da consciência que possui, por sua formação mística, de que as coisas que ocorrem estão dentro da lei de ação e reação, o Karma, que tem sempre suas razões para desencadear este o aquele contexto situacional. O místico, por ser panteísta, pensa como Espinosa.
E conclui: fatos são fatos e não se pode lutar contra eles ou tentar negá-los, apenas administrá-los. Mais: a formação mística ensina que tudo tem uma razão e esta razão visa algum bem para nós ou para aquele que foi atingido por qualquer evento particularmente triste.
Não quer dizer que devemos agradecer sorridentes pela dor ou pela desdita, mas que, na verdade, deveríamos, porque atrás de cada problema existe uma bênção oculta, como a pérola dentro da concha. Só que devemos reconhecer que este não é um movimento fácil para ninguém que foi criado em valores ocidentais, ou que esteja mergulhado na ilusão da estabilidade ou do conforto material. E hoje isto vale para algumas regiões orientais também, diga-se de passagem.
As pessoas tendem,  de maneira ingênua filosoficamente, a supor que coisas constantes são eternas e que nunca se modificarão. A começar por sua própria existência física.
Todos têm uma estranha sensação de eternidade física e ficam embaraçados e desconfortáveis ao discutir sua própria morte. Ninguém, como o filósofo, após beber a cicuta, lembraria de dívidas banais, tomados pelo pavor da morte e do aniquilamento.
Ninguém levantaria o lençol da cabeça para dizer: “Não esqueça que devemos um Galo a Asclepíades” como Sócrates faz, descrito por Platão no diálogo Fédon.
Não. Não discutimos nossa morte, apenas nossa dor. Como se falar dessas mazelas normais da existência fosse uma prova de que nossa vida é particularmente original.
Não é. Todas as nossas existências, com suas pequenas iniciações, dificuldades, com nossos erros e acertos, suas perdas e ganhos, são extremamente banais e monótonas.
Místicos e filósofos concordam com isso.
Não há nada de especial em nós apenas por sermos humanos e passarmos por problemas que todos os seres humanos passam, todos os dias, independente das crenças ou dos valores ou do país em que estejam, nesta ou em outras encarnações.
Místicos e filósofos são estóicos e espartanos, e não podem ser de outra forma.
Não somos donos de nada, não possuímos nada; tudo que temos hoje não teremos amanhã; tudo que não temos agora, estará em nossas mãos mais a frente, se assim for interessante para o nosso crescimento. Esta é a Lei. Somos forças em ação fluindo por um universo em movimento. Sem estabilidade, sem imobilidade.
Vida é movimento. Parar é a morte.
Já que sabemos disso, nós místicos substituímos os três primeiros passos da Dra Kubler Ross por um apenas: tristeza e busca de aceitação interior, baseado no nosso modo de ver a Vida. Sabemos que devemos aceitar e administrar os fatos, mas isto não implica que não soframos com eles, que não tomemos providências para diminuição dos danos, que não façamos a coisa certa. Cumpriremos nossa função de socorrer quem precisar, e atender as necessidades de quem a tiver, mas procurando, por dentro, isso sim, manter a mente quieta e atenta aos acontecimentos, tentando ver aonde está o aprendizado ou a lição a se extrair desta experiência, que é o papel de qualquer experiência que atravessemos, gerar conhecimento, gerar mais evolução, mais consciência.
Segundo a Dra Ross, ainda existem duas fases: depressão e aceitação. A Aceitação, do ponto de vista místico, já aconteceu. Quanto a Depressão, se a reconhecermos como a sensação do desespero antes da luz surgir, esta fase, concedo, os místicos também experimentarão, humanos que são.
A Oração ajuda, mas não diminui a tristeza e a Dor. Faz parte da experiência e é legítimo que passemos por isso. Nada de considerar a Dor como algo a ser tratado. Não se trata de uma doença. É tão legítimo e mesmo saudável chorar por nossas perdas como comemorar nossas vitórias, já que não estou falando de Iluminados, mas de pessoas comuns que abraçaram a causa do misticismo.
Podemos concluir que a experiência do sofrimento é tão difícil para aqueles que tem formação mística como para aqueles que não a tem. A diferença talvez esteja na serenidade ao atravessar estas fases que a formação mística nos proporciona, não a serenidade dos santos , ainda, mas a serenidade das pessoas que sabem que tudo passa e que qualquer que seja a nossa Dor , um dia ela termina, do mesmo modo que começou.
As fases da Dra Kubler Ross são válidas sim , mas dependem das crenças e dos valores daqueles que as atravessam e não podem, a meu ver, serem consideradas universais.
Pode-se sofrer de várias maneiras e morrer de modos os mais variados. Ninguém atravessa a doença ou a morte ou a Dor da mesma maneira. Isto é certo sobre nós, seres humanos: todos somos diferentes.

domingo, 17 de abril de 2011

“PANTA REI”

por Mario Sales, FRC.:; S.:I.:; M.:M.:


A instabilidade das coisas é vista como um problema pela maioria das pessoas.
Pelo hábito com estruturas aparentemente estáveis supomos que a estabilidade seja mais adequada que a instabilidade.




Talvez porque nosso sistema nervoso, a estrutura neurológica que nos permite a percepção do mundo, não lide muito bem com referenciais instáveis, e precise amadurecer para dar conta de tamanha variabilidade de momento a momento.
Só que tudo que temos está sujeito à mudança e à transformação permanente, a começar por nossos filhos que nos avisam dia após dia que estamos envelhecendo, já que nós mesmos não percebemos com clareza a passagem dos anos em nós.




Certo dia acordamos, como em tantos outros antes daquele e percebemos de forma súbita, no espelho, que nosso rosto se modificou e que os anos passaram.
Vemos as crianças crescerem e se transformarem em adolescentes sem que saibamos com clareza como tais coisas aconteceram. É surpreendente a nossa incapacidade de acompanhar de forma consciente tudo que acontece ao nosso redor imediato.
Somos, quase em tempo integral, inconscientes das mudanças que nos envolvem e que envolvem o mundo que nos cerca.
Instável. Sempre em movimento.
Este é o nosso modo de estar no mundo.
Fantasiosamente, queremos que as coisas durem, que permaneçam, e a única realidade, lembra o Zen Budismo, é a impermanência.




É comum em mosteiros construírem-se com todo carinho, ao longo de meses, com areia colorida, um lindo mandala, com motivos florais, para que depois de pronto, o Mestre venha e o destrua com gestos rápidos.
É preciso que haja empenho neste trabalho de construção do mandala, senão a experiência de ver um trabalho tão detalhado e tão precioso ser destruído não será suficientemente didática e emocionalmente forte.




Dizem que Heráclito era o mestre présocrático da Impermanência com sua frase “um homem não pode banhar-se no mesmo rio duas vêzes”, demonstrando assim o fluxo das águas e da vida. Só que seu discípulo Crátilo era mais radical. Quanto a impermanência das coisas, lembrava que “as águas que banham a ponta dos pés não banharão os tornozelos”.
Heráclito

Tudo flui, dizia ele, ou em grego, Panta Rei.
Queremos que as coisas que chamamos boas sejam permanentes na forma. Não são.
Queremos que as coisas ruins passem depressa. Isto é certo, passarão. Por que tudo desaparece nas areias do tempo.




E por mais eterno que tenha parecido, inevitavelmente tornar-se-á uma lembrança, como um sonho, do qual lembramos às vezes com dificuldade, e do qual guardamos apenas alguns aspectos.
É assim que a Vida flui, semelhante a água que escorre pelo ralo, ininterrupta, puro movimento.


Conviver com a Impermanência é nosso desafio educacional mais importante.
Esforcemo-nos para entendê-la e aceitá-la.
A vida com certeza fica mais fácil.

sábado, 16 de abril de 2011

AMARGURA

Meditações em São João da Cruz e sobre o Bhagavad Gita


por Mario Sales FRC.:, S.:I.:,M.:M.:

Todo ser humano passa eventualmente por adversidades, de inúmeros tipos.
Questões de ordem moral, mental ou física, mas sempre transtornantes e desequilibradoras.
Desde agosto do ano passado atravesso uma dessas fases difíceis. Problemas os mais variados se sucedem, sem que haja aparência de término breve ou resolução rápida dos sofrimentos com os quais tenho tido que lutar.
Como dizia Freud, há um grave risco de condensação, qual seja o fenômeno de artificialmente fundir todos em um único problema, gigantesco e incomensurável.
Ter algum conhecimento da área da psicologia ajuda.
Não resolve, entretanto, lembrando outro aforismo psicanalítico: aquele que diz que os problemas emocionais nunca se resolvem de todo, mas são administráveis ao longo dos anos.
Então, mesmo tendo claro que é exatamente nesta hora que devemos empregar todos os nossos conhecimentos não para eliminar os problemas, mas para diminuir-lhes o impacto em nossa existência, é natural que um cansaço e uma falta de ânimo estejam associados a esta situação.
É o cansaço que cria a sensação de frustração e amargura.
Amargo é o que tem sabor ruim, desagradável, e a vida em meio ao sofrimento tem um sabor ruim.
Faz sentido chamar assim, portanto.
Só não esperava ver em mim, uma pessoa que tem se esforçado para aumentar a espiritualidade de outras pessoas em todas as partes onde estive, um grau de amargura como este que tenho experimentado.
A amargura corrói a obstinação, a determinação de não fraquejar diante dos obstáculos e de não se dar por vencido mesmo que tudo em volta diga que estamos derrotados.
E assim sentimos nossas forças e as daqueles que conosco participam deste drama, fraquejarem, lentamente.
É difícil evitar o desespero, pois a tentação de senti-lo é muito grande.
Trata-se de uma luta interna, silenciosa, enquanto os dias se desenrolam rotineiramente. Outras pessoas têm de vivenciar seus próprios problemas, comparamo-nos com eles e vemos que não somos únicos. Mesmo assim este é um triste consolo, paralisante, conformista, em desacordo com minha formação rosacruciana.
Que atitude tomar diante de situações que parecem sem solução e que se sucedem, numa espécie de avalanche?
Devemos ser serenos, mas como manter a calma e a serenidade necessária, em meio a sucessivas crises?
Como, enfim, diminuir a tristeza pela dor daqueles que amamos a qual não conseguimos aplacar ou atenuar? Todo nosso preparo e mesmo a oração, feita por desalento e falta de esperança parece inútil, nestas horas.
Sabemos que Deus nos ouve, porém ele não fala conosco, como falamos entre nós.
Não ouvimos nenhum som como resposta e isto, ao sofredor, torna-se fonte de mais tormento.
Só pelas Suas obras conhecemos Sua vontade.
Como as soluções não aparecem e os problemas aumentam em vez de diminuir, supomos imediatamente que fomos abandonados, que nossa prece não foi ouvida, que nosso pleito não foi atendido.
Será que este cenário sombrio é fiel aos acontecimentos ou serão nossos olhos marejados que não nos deixam enxergar?
Por mais piegas que esta pergunta pareça, ela é a mais pura tradução da dúvida mais comum em um coração atormentado por um sofrimento, seja uma doença, um embaraço de natureza moral, ou uma crise de fé.
Com o risco de parecer ingênuo, acredito que nada é tão ruim que não encerre um aspecto positivo. Só que, algumas vezes, mesmo pessoas como eu treinadas para superar adversidades com o concurso de duas poderosas armas, a reflexão e a oração, não escapam de sua natureza humana e a dúvida surge.
Tornar-se amargo então é apenas um passo.
E com a amargura vem a revolta.Cobramos do Universo explicações, como se ele nos devesse alguma. Cobramos um socorro, como se este socorro já não tivesse sido encaminhado.
É que as vezes a dor é tão grande que não vemos mais nada a não ser nosso próprio sofrimento.
Faz parte da fragilidade humana, e é perfeitamente compreensível que seja assim.
Não devemos exigir de nós mais do que possamos dar em situações extremas.


São João da Cruz

Foi neste instante de minha reflexão que me chegou às mãos o volume de Obras Completas de Frei São João da Cruz, Ed. Vozes, 2007, 7ª edição.
São João da Cruz nasceu em Fontiveros, Ávila, Espanha, em 1542. Neste tomo maravilhosamente impresso em capa dura com detalhes em dourado, leio seus poemas místicos e entre estes, o poema intitulado “A Noite Escura”.
Logo me vem à mente a curiosidade de saber se este título inspirou o nome de um período muito conhecido dos rosacruzes chamado “A Noite Negra da Alma”.
Sigo em frente.


Eis o poema:


NOITE ESCURA

1.Em uma Noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada,
Oh! ditosa ventura!,
saí sem ser notada,
já minha casa estando sossegada.


2.Na escuridão, segura,
pela secreta escada, disfarçada,
Oh! ditosa ventura!,
Na escuridão, velada,
Já minha casa estando sossegada.


3.Em Noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
nem eu olhava cousa,
sem outra luz nem guia
além da que em meu coração me ardia.


4. Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia,
aonde me esperava
quem eu bem sabia,
em sítio onde ninguém aparecia.


5.Oh! Noite que me guiaste!,
Oh! Noite mais amável que a alvorada!,
Oh! Noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!


6.Em meu peito florido,
que inteiro para ele só guardava,
quedou-se adormecido,
e eu terna, o regalava,
e dos cedros o leque o refrescava.


7. Da ameia a brisa amena,
quando eu os seus cabelos afagava, com sua mão serena
o meu colo soprava,
e meus sentidos todos transportava.


8.Esquecida quedei-me,
o rosto reclinado sobre o Amado;
tudo cessou. Deixei-me,
largando o meu cuidado
por entre as açucenas olvidado.


Na página 439 desta magnífica edição leio que neste poema São João da Cruz fala “do modo e maneira que tem a alma no caminho da união de amor com Deus.”
Já na página 440, no 1° parágrafo do trecho chamado “Em que se trata da Noite do Sentido”, diz São João a alma conta, nesta primeira canção,


“Em uma Noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada,
Oh! ditosa ventura!,
saí sem ser notada,
já minha casa estando sossegada.”


o modo e maneira que teve em sair, - quanto ao apego, - de si e de todas as coisas, morrendo por verdadeira mortificação (par)a todas elas e a si mesma, para assim viver a vida doce e saborosa, com Deus. E diz como este sair de si e de todas as coisas se realizou “em uma noite escura” – o que aqui significa a contemplação purificadora, conforme se dirá mais adiante. Tal purificação produz passivamente na alma a negação de si mesma e de todas as coisas.”


Ainda no texto, encontramos mais a frente nas páginas 441 e 442, item 2, o seguinte comentário:
“Convém saber que a alma, quando determinadamente se converte a servir a Deus, de ordinário é criada e regalada pelo Senhor, com o mesmo procedimento que tem a mãe amorosa, com a criança pequenina. Ao calor de seus peitos a acalenta; com leite saboroso e manjar delicado a vai nutrindo, e em seus braços a carrega e acaricia. À medida, porém, que a criança vai crescendo, a mãe lhe vai tirando o regalo; e escondendo o terno amor que lhe tem, põe suco de aloés amargo no doce peito; desce o filhinho dos braços e o faz andar por seus próprios pés, para que, perdendo os modos de criança, se habitue a cosias maiores e mais substanciais. Qual amorosa mãe procede a graça de Deus, quando, por novo calor e fervor no serviço do Altíssimo, torna, por assim dizer, a gerar a alma.”


Ao ler este trecho, senti-me perplexo. Poderiam as atribulações que ora atravesso, e que tantos atravessam em seus lares de diferentes modos, serem uma prova de que Deus me acha apto a suportá-las? De que agora já posso “andar por meus próprios pés, perdendo os modos de criança?”. Para o santo, ter atribulações é assumir novos papéis na existência, espiritualmente, concluo. É estar diante da maturidade espiritual, e não do abandono do amor de Deus.
De qualquer forma, senti-me de alguma forma confortado por este trecho, ( “...o faz andar por seus próprios pés...”) principalmente no que tange a noção de que a intensidade da Dor corresponde ao grau de Maturidade Espiritual do sofredor.
Esta noção de proporcionalidade e adequação do sofrimento sempre me foi extremamente simpática.
Mais a frente, na página 444 e 445, item 5, São João tece considerações sobre “algumas imperfeições que têm os principiantes acerca do hábito da soberba”.
Diz ele:
“Também alguns destes têm em pouco (caso) suas (próprias) faltas; outros se entristecem em demasia quando vêem suas quedas, pensando que já haviam de ser santos; e, assim, aborrecem-se contra si mesmos, com impaciência, o que é outra imperfeição. Costumam ter grandes ânsias de que Deus lhes tire as imperfeições e faltas, mais pelo motivo de se verem sem a importunação delas, e em paz, do que por amor a Deus. Não reparam que se ele as tirasse se tornariam, porventura, mais soberbos e presunçosos.”
Este pedaço foi como um tapa na testa.
Fala sobre a perfeição espiritual, mas também, por decorrência, da relação com a divindade através de um alto grau de Vaidade pessoal. Só aquele que se tem em alta conta supõe que receberá do Altíssimo um tratamento diferenciado de qualquer um que esteja na carne, no mesmo momento que ele ou não. Todos passam dissabores, já falamos nisto. Porque eu não deveria passar? Por que razão misteriosa eu deveria ser poupado ou qualquer pessoa que amo, de atravessar situações de desafio e dificuldades? Ninguém quer ter problemas, mas se não os tivermos tornar-nos-emos mais felizes ou “mais presunçosos” nesta particular fase da evolução?
Lamentamos nossos problemas. Mas o que nos torna lamentadores? O hábito de lastimar-se por nosso destino ou uma vaidade extrema que supõe que não merecemos um tratamento igual a todos que existem do Altíssimo?
Em Eclesiastes , capítulo 1, versículo 14 diz-se que “Vi todos os trabalhos que se faziam debaixo do Sol e eis que tudo era vaidade e um esforço para alcançar o vento”. Esta chamaremos de Vaidade Positiva; mas lendo São João vejo que existe uma Vaidade Negativa, aquela que supõe, de forma fantasiosa, que merecemos ficar isentos de erro ou de dor, sem sofrimento algum, dada nossa própria auto nomeada dignidade, em nosso não tão modesto julgamento.
Ambas as possibilidades denunciam uma personalidade de pouca sabedoria e de fraco caráter.
As coisas reais não são bem assim. E desse erro nasce a lamentação.
Não é aceitar apenas, mas entender que isto tudo, problemas, dissabores, são coisas normais na existência e ninguém escapa de ter os seus. Por que conosco deveria ser diferente? Nossa força e nossa paz estão em nós e não nos acontecimentos. Ondas fortes sempre atingirão nosso casco que navegará firme se for sólido e não se as ondas não estiverem lá. Como o Mar, o Caos é imprevisível. Navegamos no Caos. O Mar sustenta o Navio; logo, é o Caos que nos sustenta, com toda a sua imprevisibilidade. Nele existem possibilidades imensas, não só uma força descomunal, mas a energia da própria Vida.
Somos apenas seres humanos e nossa vida em si já é um fenômeno inexplicável, considerando as inúmeras dificuldades de se conseguir uma manifestação biológica que necessita de tantas condições favoráveis para se manifestar, e uma certa estabilidade geológica de alguns séculos ao menos para que possa gerar civilização. Como nos tornamos o que nos tornamos, conhecendo um pouco da fúria Cosmológica, é realmente algo admirável e surpreendente. Quanto a felicidade então, este é um capítulo a parte. Problemas sempre aparecerão, e teremos de lidar com eles.
Esperemos que a revolta, fruto da Vaidade Negativa, não nos seduza e que não cobremos da Vida um tratamento especial ou diferenciado daquele que qualquer ser humano igual a nós obteve em qualquer época, como se, por alguma razão, tivéssemos um direito inexplicável a isso.
Não. Não devemos pedir a Deus que nos poupe da Dor ou da Alegria, ou melhor, que nos poupe da Vida. Peçamos força e clareza de mente e principalmente humildade diante de Sua Inexplicável Vontade, compreendendo e não aceitando apenas que esta é a energia da Vida e que ela não nos é hostil por ser intensa e poderosa. Que não devemos temê-la, mas contemplá-la, fascinados, como quando vamos a praia ver a ressaca do mar e as ondas altas que batem violentamente no cais. Trabalhemos, confiemos e oremos. Afinal de contas, Freud estava enganado: tudo tem solução.


2ª Parte: Meditações sobre o Bhagavad Gita


Contemplei até aqui alguns aspectos da doutrina mística cristã católica.
Nas próximas linhas, discutirei comigo mesmo a amargura e o sofrimento do ponto de vista do Hinduísmo e para isso trabalharei com o texto fundamental e central do Mahabharata, A Saga dos Bharatas, principalmente entre eles a de Arjuna, o príncipe inseguro, que é iniciado em meio a batalha iminente acerca das suas responsabilidades e obrigações como elemento ativo e ao mesmo tempo passivo da Vontade Divina, aqui representada por Krishna, o Azul, aquele que veio do Céu.

 

Usarei para fundamentar esta meditação dois textos clássicos.
O primeiro, a primorosa edição de 1976 do “Bhagavad Gita Como ele É”, Edição Completa, comentada por Sua Divina Graça, A.C.Bhakitivedanta Swami Prabhupada, fundador da Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna.
A outra obra tem por título “A Yoga do Bhagavad Gita”, Introdução à Ciência Indiana Universal da realização Divina, de Paramahansa Yogananda, publicado pela Self Realization Fellowship, copyright 2009.
Primeiro, consideremos a cena: o Bhagavad Gita, ou A Sagrada Canção do Senhor, coração central do Mahabharata, um poema de 10000 versos, do qual o Bhagavad Gita é a principal parte. Ele narra o espaço de uma conversa de uma hora de duração. Estamos em um campo de batalha chamado Kurukshetra, segundo Paramahansa (página 18), kuru, da raiz sânscrita kri, “trabalho, ação material”, e kshetra, “campo”. Diz Yogananda:
“Este “campo de ação” é o corpo humano, com suas faculdades físicas, mentais e espirituais, as quais compõem o teatro de operações aonde se desenrolam todas as atividades de uma pessoa”.



Kurukshetra
Ou seja, desde o início de seu texto, Paramahansa configura uma perspectiva simbólica para todos os eventos descritos nesta encantadora narrativa, base da vida hinduísta. Embora Krishna represente um Avatar da divindade, o próprio Visnhu encarnado, o aspecto de Preservação da Trindade Hindu, na verdade o Hinduísmo é uma religião sem profeta. Não há uma personalidade divina a se adorar, mas preceitos éticos a seguir. Normas de boa conduta espiritual, digamos assim, mas muito, muito distantes das preocupações moralistas e repressoras da cultura pós catolicismo.



A batalha de Kurukshetra é, portanto, a batalha de todos nós, dia após dia, para tocar nossa vida, diante das atribulações cotidianas. E diz mais a frente Paramahansa, de modo inspirado (página 22, embaixo):
“Portanto, o Gita aponta, logo na primeira estrofe, a primordial necessidade que o homem tem da introspecção todas as noites, de modo que possa distinguir claramente que força – o bem ou o mal – venceu a batalha cotidiana. Para viver em harmonia com o plano de Deus, o homem precisa repetir para si próprio, todas as noites, a indagação sempre pertinente: “Reunidas no espaço sagrado do corpo - o campo das ações boas e más -, que fizeram minhas tendências opostas? Que lado nesta guerra incessante, venceu hoje? Vamos, me diga: as más tendências corruptas, tentadoras, e as forças opostas da autodisciplina e do discernimento, que fizeram?”




Para o Hinduísmo, alguns conceitos são fundamentais.
Talvez o mais interessante deles seja o conceito de Maya, a Ilusão.
Maya é o cenário da batalha, os figurantes, o script.
Maya cria o contexto dentro do qual lutaremos nossa própria batalha de Kurukshetra. Nada em Maya é real, mas deve parecer que seja. Como em uma peça de teatro, ou durante a projeção de um filme, concordamos em aceitar como reais as cenas que se desenrolam a nossa frente de modo que possamos experimentar as emoções e os sentimentos como se fossem nossos.


Súbito, as luzes da sala se acendem, o espetáculo se apaga, e acordamos daquele sonho artístico sem que nada, nenhuma parte de
nós, tenha sido mudada pela experiência que testemunhamos como observadores e partícipes emocionais. Apenas nosso mundo interior sai modificado daquela experiência. E é exatamente isto que fomos lá buscar: experiências emocionais, nada mais.


Maya, A Ilusão


Este é um conceito chave no Hinduísmo. Kurukshetra, a batalha interior, desenrola-se em um campo imaginário, e o que chamamos real é parte deste campo.
Não importa o que nos aconteça ou o drama que vivenciemos. O que importa é a pergunta de Paramahansa:
“Reunidas no espaço sagrado do corpo, as forças opostas, que fizeram?”
Um teste de aperfeiçoamento, um seminário espiritual. A vida cotidiana para o Hinduísta, é estudo ou divertimento, nunca dor. Este é seu horizonte. Não necessariamente sua pratica. Este é o seu objetivo como praticante desta filosofia de vida. Se ele chegará a viver por esses princípios, só o tempo e seu esforço pessoal poderão dizer.
Não que não exista a Dor, o Sofrimento, a Amargura.
Só que ela tem um contexto.
O Gita começa com a hesitação de um rei.
Arjuna contempla seus parentes no campo de batalha e sente suas forças lhe fugirem. Tomado pela compaixão por aqueles que ama – “seus pais, avós, mestres, tios maternos, irmãos, filhos, netos, amigos, e também seu sogro e bem querentes” – diz : “Meu querido Krishna, vendo meus amigos e parentes presentes diante de mim com tal ânimo para lutar, sinto os membros de meu corpo tremer e minha boca secar.”
Conheço bem a sensação.
Diante da confirmação de alguns problemas recentes, também senti a mesma sensação. Minha tristeza foi imensa, não por mim, mas por outros, colocados diante de mim, trazidos ao meu campo pessoal para comigo partilhar a disputa entre o bem e o mal.
Arjuna continua:
“Todo meu corpo está tremendo e meu cabelo está arrepiado. Meu arco Gandiva está escorregando de minha mão, e minha pele está ardendo//Sinto-me incapaz de permanecer aqui por mais tempo. Estou me esquecendo de mim e minha mente está girando.Prevejo só o mal...//...//Ó Govinda, de que nos valem reinos, felicidade ou até a própria vida quando todos aqueles pelos quais podemos desejar estão agora dispostos neste campo de batalha? Ó madhusudana, quando Mestres, pais, filhos, avós, tios maternos, sogros, netos, cunhados e todos os parentes estão diante de mim, então por que desejaria eu matá-los (ou vê-los sofrer, digo eu) ainda que eu sobreviva? ...”
Arjuna aqui sofre pelos que ama. Identifico-me com ele. O que o faz sofrer não é o medo da batalha, mas o receio do sofrimento daqueles que amamos. Isto nos causa mais dor do que o nosso próprio sofrimento.
Krishna representa a Consciência de Deus em nós. Por isso ele se apresenta como um cocheiro, aquele que guia nosso corpo, nossa quadriga, os quatro sentidos materiais mais a visão representada pelo próprio Krishna, já que é Deus que nos faz ver as coisas com clareza e não nosso cérebro.




Arjuna, desolado e sentado na quadriga, é nossa alma, insegura, hesitante.
No segundo capítulo, Krishna dará a iniciação a Arjuna e lhe falará da necessidade de superar seus medos.
Usará expressões fortes para erguê-lo da inação, como por exemplo: “Ó Filho de Prtha, não se entregue a esta impotência degradante. Ela não condiz com você. Largue tal fraqueza mesquinha de coração e levante-se, ó castigador dos inimigos.”
Mas Arjuna não se recobra da insegurança, e mais a frente admitirá sua paralisia psicológica diante do dilema ou do drama que se descortina a sua frente, dizendo “Agora estou confuso sobre meu dever e perdi toda a compostura por causa da fraqueza. Nesta condição, peço que Você me diga claramente o que é melhor para mim.Agora sou Seu discípulo e uma alma rendida a Você. Por favor, instrua-me.”
Desespero e rendição. Uma dos conceitos tradicionais no Hinduísmo é que quando se atinge o nível mais alto de desespero e falta de fé em si, Deus entra em nós, e nos ocupa o Vazio deixado pela nossa fuga da batalha.
Ele nos carrega nas costas, digamos assim, quando fraquejamos.
Só quando nos sentimos derrotados pelo desânimo estamos abertos a presença do Altíssimo porque finalmente aí, e só aí, o Ego desiste de seu papel de pseudocontrolador dos fatos e assume sua própria impotência diante do imprevisível, do imponderável.
É só aí, quando o Ego se afasta, que Deus pode passar. E nada como o sofrimento e a amargura para nos jogar por terra; nós não, nosso Ego, nosso falso Eu.
Livres das nossas falsas concepções acerca de nós mesmo, tristes, humilhados, rendemo-nos finalmente ao mestre interior, a Consciência de Deus em nós, e pedimos-lhe, com humildade, que nos oriente.
E continua Arjuna, ou nós mesmos, falando:
“Não consigo afugentar este pesar que está secando meus sentidos. Não serei capaz de destruí-lo mesmo que ganhe um reino incomparável na terra, com soberania semelhante à dos semideuses no céu.//Govinda, não lutarei”
Estamos, nós e Arjuna, derrotados pela amargura.
Estamos paralisados por ela. Não sabemos como reagir, como lutar.
Só Deus pode nos devolver a paz de espírito.
Só por Sua Sagrada intervenção poderemos recuperar nosso equilíbrio. Mesmo sabendo que tudo é Maya, o Hinduísta sofre tanto quanto o não Hinduísta.
Nada de distanciamento oriental, de ausência de sentimentos.
Tudo bobagem de ocidental ignorante acerca da humanidade de todos nós em qualquer parte do planeta.
Aliás, é pela mesma entrega presente em São João da Cruz que o Hinduísta pode superar seus impasses e seus dramas.
Lá como aqui, estamos todos em Suas sagradas mãos e quanto mais rendidos à Sua Divina Vontade, mais poderemos usufruir de Seu poder e consolo. Lá como aqui discute-se a importância do desapego para alcançar a paz. Mas como não ter apego aqueles que amamos?
Ao se render a Krishna, Arjuna se entrega nas mãos de Deus. É o próprio Deus, a voz do Mestre Interior em nós, que Guia nosso corpo como Krishna guia a Quadriga de Arjuna em Kurukshetra, vem nos iniciar nos conhecimentos transcendentais que nos livrarão deste impasse, desta paralisia congelante e inútil.
E diz Krishna:
“Ó Filho de Kunti, o aparecimento temporário de felicidade e sofrimento e seu desaparecimento no devido curso, são como o aparecimento das estações de inverno e verão. Surgem da percepção sensorial, ó descendente de Bharata, e é preciso aprender a tolerá-los sem se perturbar.// Ó melhor entre os Homens (Arjuna), a pessoa que não se perturba com felicidade e tristeza e permanece firme em ambas, é certamente elegível para a liberação.// Aqueles que são videntes da verdade concluíram que não há continuidade para o inexistente e não há interrupção para o existente. Estes videntes chegaram a esta conclusão estudando a natureza de ambos.//( e conclui) Saiba que o que penetra todo o corpo é indestrutível. Ninguém é capaz de destruir a alma imperecível”
Aqui Krishna rejeita o conceito de Morte como falso. Lembra-me Saint Martin, dizendo que não conhece dois tipos de Vida, mas apenas uma Vida.
E se a Morte for falsa, como tudo mais em Maya, o Sofrimento e a própria amargura também o são.
Mas então, se tudo é Ilusão, apenas Maya, por que sofremos? Por que nos confundimos com a Ilusão, cremos nela, numa espécie de fé maligna naquilo que não existe ao mesmo tempo que duvidamos daquilo que existe?
“Aqueles que são videntes da verdade concluíram que não há continuidade para o inexistente e não há interrupção para o existente.”
Acreditamos na Dor e na Amargura, não na presença de Deus dentro e ao redor de nós. Temos pouca noção de Sua ostensiva presença, nos apoiando, nos sustentando, nos mantendo em conexão com a vida. Sabemos como lamentar o que não perdemos, mas não temos noção do que possuímos. Só pela Iluminação, que só é possível quando jogamos a toalha e nos rendemos a Deus de maneira incondicional, é que começamos a enxergar o que está e sempre esteve a nossa frente. O Sofrimento intenso não nos permite necessariamente a Iluminação, mas destrói as fantasias do Ego e permite que a Luz finalmente brilhe em nós.
É como a explosão que desobstrui a estrada interditada.
Às vezes só com dinamite é que a coisa anda.
Se há sofrimento ainda há ilusão. Ainda existe falta de equanimidade. Verão – Inverno, depois Verão, depois Inverno de novo, como diria o personagem de Peter Sellers em “Being There”, que no Brasil chamou-se “Muito além do Jardim”, Chouncey Gardner.
Tudo segue em ciclos, alternando-se, ritmicamente.
E Krishna continua:
“Aquele que pensa que a entidade viva é a que mata ou é morta, não compreende. Aquele que tem conhecimento sabe que o Eu não mata nem é morto. //Para a alma não há nascimento nem morte. Nem uma vez que exista ela vai deixar de existir. Ela é não nascida, eterna, sempre existente, imortal e primordial. Ela não morre quando o corpo morre.”
Não há Morte, ou Doença, ou Dor verdadeira, são apenas contextos de uma representação teatral para que pensemos ou reflitamos sobre nós mesmos, para que aprendamos algo de novo sobre nossa vida e nossa relação com a Vida.
Alcançaremos este grau de consciência?
Quem sabe. Talvez o Conhecimento ajude; e a Oração também.
Talvez ambas.
De qualquer forma sem que nos entreguemos nas Mãos do Altíssimo, chamemo-lo de Deus ou de Krishna, nada acontecerá.
Tem que ser uma entrega total ou não será entrega. A partir daí as coisas começarão a acontecer.
Não antes. Quanto a este aspecto não há discussão.
A Dor e a Amargura nos guiarão nesta direção.