Meditações em São João da Cruz e sobre o Bhagavad Gita
por Mario Sales FRC.:, S.:I.:,M.:M.:
Todo ser humano passa eventualmente por adversidades, de inúmeros tipos.
Questões de ordem moral, mental ou física, mas sempre transtornantes e desequilibradoras.
Desde agosto do ano passado atravesso uma dessas fases difíceis. Problemas os mais variados se sucedem, sem que haja aparência de término breve ou resolução rápida dos sofrimentos com os quais tenho tido que lutar.
Como dizia Freud, há um grave risco de condensação, qual seja o fenômeno de artificialmente fundir todos em um único problema, gigantesco e incomensurável.
Ter algum conhecimento da área da psicologia ajuda.
Não resolve, entretanto, lembrando outro aforismo psicanalítico: aquele que diz que os problemas emocionais nunca se resolvem de todo, mas são administráveis ao longo dos anos.
Então, mesmo tendo claro que é exatamente nesta hora que devemos empregar todos os nossos conhecimentos não para eliminar os problemas, mas para diminuir-lhes o impacto em nossa existência, é natural que um cansaço e uma falta de ânimo estejam associados a esta situação.
É o cansaço que cria a sensação de frustração e amargura.
Amargo é o que tem sabor ruim, desagradável, e a vida em meio ao sofrimento tem um sabor ruim.
Faz sentido chamar assim, portanto.
Só não esperava ver em mim, uma pessoa que tem se esforçado para aumentar a espiritualidade de outras pessoas em todas as partes onde estive, um grau de amargura como este que tenho experimentado.
A amargura corrói a obstinação, a determinação de não fraquejar diante dos obstáculos e de não se dar por vencido mesmo que tudo em volta diga que estamos derrotados.
E assim sentimos nossas forças e as daqueles que conosco participam deste drama, fraquejarem, lentamente.
É difícil evitar o desespero, pois a tentação de senti-lo é muito grande.
Trata-se de uma luta interna, silenciosa, enquanto os dias se desenrolam rotineiramente. Outras pessoas têm de vivenciar seus próprios problemas, comparamo-nos com eles e vemos que não somos únicos. Mesmo assim este é um triste consolo, paralisante, conformista, em desacordo com minha formação rosacruciana.
Que atitude tomar diante de situações que parecem sem solução e que se sucedem, numa espécie de avalanche?
Devemos ser serenos, mas como manter a calma e a serenidade necessária, em meio a sucessivas crises?
Como, enfim, diminuir a tristeza pela dor daqueles que amamos a qual não conseguimos aplacar ou atenuar? Todo nosso preparo e mesmo a oração, feita por desalento e falta de esperança parece inútil, nestas horas.
Sabemos que Deus nos ouve, porém ele não fala conosco, como falamos entre nós.
Não ouvimos nenhum som como resposta e isto, ao sofredor, torna-se fonte de mais tormento.
Só pelas Suas obras conhecemos Sua vontade.
Como as soluções não aparecem e os problemas aumentam em vez de diminuir, supomos imediatamente que fomos abandonados, que nossa prece não foi ouvida, que nosso pleito não foi atendido.
Será que este cenário sombrio é fiel aos acontecimentos ou serão nossos olhos marejados que não nos deixam enxergar?
Por mais piegas que esta pergunta pareça, ela é a mais pura tradução da dúvida mais comum em um coração atormentado por um sofrimento, seja uma doença, um embaraço de natureza moral, ou uma crise de fé.
Com o risco de parecer ingênuo, acredito que nada é tão ruim que não encerre um aspecto positivo. Só que, algumas vezes, mesmo pessoas como eu treinadas para superar adversidades com o concurso de duas poderosas armas, a reflexão e a oração, não escapam de sua natureza humana e a dúvida surge.
Tornar-se amargo então é apenas um passo.
E com a amargura vem a revolta.Cobramos do Universo explicações, como se ele nos devesse alguma. Cobramos um socorro, como se este socorro já não tivesse sido encaminhado.
É que as vezes a dor é tão grande que não vemos mais nada a não ser nosso próprio sofrimento.
Faz parte da fragilidade humana, e é perfeitamente compreensível que seja assim.
Não devemos exigir de nós mais do que possamos dar em situações extremas.
São João da Cruz
Foi neste instante de minha reflexão que me chegou às mãos o volume de Obras Completas de Frei São João da Cruz, Ed. Vozes, 2007, 7ª edição.
São João da Cruz nasceu em Fontiveros, Ávila, Espanha, em 1542. Neste tomo maravilhosamente impresso em capa dura com detalhes em dourado, leio seus poemas místicos e entre estes, o poema intitulado “A Noite Escura”.
Logo me vem à mente a curiosidade de saber se este título inspirou o nome de um período muito conhecido dos rosacruzes chamado “A Noite Negra da Alma”.
Sigo em frente.
Eis o poema:
NOITE ESCURA
1.Em uma Noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada,
Oh! ditosa ventura!,
saí sem ser notada,
já minha casa estando sossegada.
2.Na escuridão, segura,
pela secreta escada, disfarçada,
Oh! ditosa ventura!,
Na escuridão, velada,
Já minha casa estando sossegada.
3.Em Noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
nem eu olhava cousa,
sem outra luz nem guia
além da que em meu coração me ardia.
4. Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia,
aonde me esperava
quem eu bem sabia,
em sítio onde ninguém aparecia.
5.Oh! Noite que me guiaste!,
Oh! Noite mais amável que a alvorada!,
Oh! Noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!
6.Em meu peito florido,
que inteiro para ele só guardava,
quedou-se adormecido,
e eu terna, o regalava,
e dos cedros o leque o refrescava.
7. Da ameia a brisa amena,
quando eu os seus cabelos afagava, com sua mão serena
o meu colo soprava,
e meus sentidos todos transportava.
8.Esquecida quedei-me,
o rosto reclinado sobre o Amado;
tudo cessou. Deixei-me,
largando o meu cuidado
por entre as açucenas olvidado.
Na página 439 desta magnífica edição leio que neste poema São João da Cruz fala “do modo e maneira que tem a alma no caminho da união de amor com Deus.”
Já na página 440, no 1° parágrafo do trecho chamado “Em que se trata da Noite do Sentido”, diz São João a alma conta, nesta primeira canção,
“Em uma Noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada,
Oh! ditosa ventura!,
saí sem ser notada,
já minha casa estando sossegada.”
o modo e maneira que teve em sair, - quanto ao apego, - de si e de todas as coisas, morrendo por verdadeira mortificação (par)a todas elas e a si mesma, para assim viver a vida doce e saborosa, com Deus. E diz como este sair de si e de todas as coisas se realizou “em uma noite escura” – o que aqui significa a contemplação purificadora, conforme se dirá mais adiante. Tal purificação produz passivamente na alma a negação de si mesma e de todas as coisas.”
Ainda no texto, encontramos mais a frente nas páginas 441 e 442, item 2, o seguinte comentário:
“Convém saber que a alma, quando determinadamente se converte a servir a Deus, de ordinário é criada e regalada pelo Senhor, com o mesmo procedimento que tem a mãe amorosa, com a criança pequenina. Ao calor de seus peitos a acalenta; com leite saboroso e manjar delicado a vai nutrindo, e em seus braços a carrega e acaricia. À medida, porém, que a criança vai crescendo, a mãe lhe vai tirando o regalo; e escondendo o terno amor que lhe tem, põe suco de aloés amargo no doce peito; desce o filhinho dos braços e o faz andar por seus próprios pés, para que, perdendo os modos de criança, se habitue a cosias maiores e mais substanciais. Qual amorosa mãe procede a graça de Deus, quando, por novo calor e fervor no serviço do Altíssimo, torna, por assim dizer, a gerar a alma.”
Ao ler este trecho, senti-me perplexo. Poderiam as atribulações que ora atravesso, e que tantos atravessam em seus lares de diferentes modos, serem uma prova de que Deus me acha apto a suportá-las? De que agora já posso “andar por meus próprios pés, perdendo os modos de criança?”. Para o santo, ter atribulações é assumir novos papéis na existência, espiritualmente, concluo. É estar diante da maturidade espiritual, e não do abandono do amor de Deus.
De qualquer forma, senti-me de alguma forma confortado por este trecho, ( “...o faz andar por seus próprios pés...”) principalmente no que tange a noção de que a intensidade da Dor corresponde ao grau de Maturidade Espiritual do sofredor.
Esta noção de proporcionalidade e adequação do sofrimento sempre me foi extremamente simpática.
Mais a frente, na página 444 e 445, item 5, São João tece considerações sobre “algumas imperfeições que têm os principiantes acerca do hábito da soberba”.
Diz ele:
“Também alguns destes têm em pouco (caso) suas (próprias) faltas; outros se entristecem em demasia quando vêem suas quedas, pensando que já haviam de ser santos; e, assim, aborrecem-se contra si mesmos, com impaciência, o que é outra imperfeição. Costumam ter grandes ânsias de que Deus lhes tire as imperfeições e faltas, mais pelo motivo de se verem sem a importunação delas, e em paz, do que por amor a Deus. Não reparam que se ele as tirasse se tornariam, porventura, mais soberbos e presunçosos.”
Este pedaço foi como um tapa na testa.
Fala sobre a perfeição espiritual, mas também, por decorrência, da relação com a divindade através de um alto grau de Vaidade pessoal. Só aquele que se tem em alta conta supõe que receberá do Altíssimo um tratamento diferenciado de qualquer um que esteja na carne, no mesmo momento que ele ou não. Todos passam dissabores, já falamos nisto. Porque eu não deveria passar? Por que razão misteriosa eu deveria ser poupado ou qualquer pessoa que amo, de atravessar situações de desafio e dificuldades? Ninguém quer ter problemas, mas se não os tivermos tornar-nos-emos mais felizes ou “mais presunçosos” nesta particular fase da evolução?
Lamentamos nossos problemas. Mas o que nos torna lamentadores? O hábito de lastimar-se por nosso destino ou uma vaidade extrema que supõe que não merecemos um tratamento igual a todos que existem do Altíssimo?
Em Eclesiastes , capítulo 1, versículo 14 diz-se que “Vi todos os trabalhos que se faziam debaixo do Sol e eis que tudo era vaidade e um esforço para alcançar o vento”. Esta chamaremos de Vaidade Positiva; mas lendo São João vejo que existe uma Vaidade Negativa, aquela que supõe, de forma fantasiosa, que merecemos ficar isentos de erro ou de dor, sem sofrimento algum, dada nossa própria auto nomeada dignidade, em nosso não tão modesto julgamento.
Ambas as possibilidades denunciam uma personalidade de pouca sabedoria e de fraco caráter.
As coisas reais não são bem assim. E desse erro nasce a lamentação.
Não é aceitar apenas, mas entender que isto tudo, problemas, dissabores, são coisas normais na existência e ninguém escapa de ter os seus. Por que conosco deveria ser diferente? Nossa força e nossa paz estão em nós e não nos acontecimentos. Ondas fortes sempre atingirão nosso casco que navegará firme se for sólido e não se as ondas não estiverem lá. Como o Mar, o Caos é imprevisível. Navegamos no Caos. O Mar sustenta o Navio; logo, é o Caos que nos sustenta, com toda a sua imprevisibilidade. Nele existem possibilidades imensas, não só uma força descomunal, mas a energia da própria Vida.
Somos apenas seres humanos e nossa vida em si já é um fenômeno inexplicável, considerando as inúmeras dificuldades de se conseguir uma manifestação biológica que necessita de tantas condições favoráveis para se manifestar, e uma certa estabilidade geológica de alguns séculos ao menos para que possa gerar civilização. Como nos tornamos o que nos tornamos, conhecendo um pouco da fúria Cosmológica, é realmente algo admirável e surpreendente. Quanto a felicidade então, este é um capítulo a parte. Problemas sempre aparecerão, e teremos de lidar com eles.
Esperemos que a revolta, fruto da Vaidade Negativa, não nos seduza e que não cobremos da Vida um tratamento especial ou diferenciado daquele que qualquer ser humano igual a nós obteve em qualquer época, como se, por alguma razão, tivéssemos um direito inexplicável a isso.
Não. Não devemos pedir a Deus que nos poupe da Dor ou da Alegria, ou melhor, que nos poupe da Vida. Peçamos força e clareza de mente e principalmente humildade diante de Sua Inexplicável Vontade, compreendendo e não aceitando apenas que esta é a energia da Vida e que ela não nos é hostil por ser intensa e poderosa. Que não devemos temê-la, mas contemplá-la, fascinados, como quando vamos a praia ver a ressaca do mar e as ondas altas que batem violentamente no cais. Trabalhemos, confiemos e oremos. Afinal de contas, Freud estava enganado: tudo tem solução.
2ª Parte: Meditações sobre o Bhagavad Gita
Contemplei até aqui alguns aspectos da doutrina mística cristã católica.
Nas próximas linhas, discutirei comigo mesmo a amargura e o sofrimento do ponto de vista do Hinduísmo e para isso trabalharei com o texto fundamental e central do Mahabharata, A Saga dos Bharatas, principalmente entre eles a de Arjuna, o príncipe inseguro, que é iniciado em meio a batalha iminente acerca das suas responsabilidades e obrigações como elemento ativo e ao mesmo tempo passivo da Vontade Divina, aqui representada por Krishna, o Azul, aquele que veio do Céu.
Usarei para fundamentar esta meditação dois textos clássicos.
O primeiro, a primorosa edição de 1976 do “Bhagavad Gita Como ele É”, Edição Completa, comentada por Sua Divina Graça, A.C.Bhakitivedanta Swami Prabhupada, fundador da Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna.
A outra obra tem por título “A Yoga do Bhagavad Gita”, Introdução à Ciência Indiana Universal da realização Divina, de Paramahansa Yogananda, publicado pela Self Realization Fellowship, copyright 2009.
Primeiro, consideremos a cena: o Bhagavad Gita, ou A Sagrada Canção do Senhor, coração central do Mahabharata, um poema de 10000 versos, do qual o Bhagavad Gita é a principal parte. Ele narra o espaço de uma conversa de uma hora de duração. Estamos em um campo de batalha chamado Kurukshetra, segundo Paramahansa (página 18), kuru, da raiz sânscrita kri, “trabalho, ação material”, e kshetra, “campo”. Diz Yogananda:
“Este “campo de ação” é o corpo humano, com suas faculdades físicas, mentais e espirituais, as quais compõem o teatro de operações aonde se desenrolam todas as atividades de uma pessoa”.
Kurukshetra
Ou seja, desde o início de seu texto, Paramahansa configura uma perspectiva simbólica para todos os eventos descritos nesta encantadora narrativa, base da vida hinduísta. Embora Krishna represente um Avatar da divindade, o próprio Visnhu encarnado, o aspecto de Preservação da Trindade Hindu, na verdade o Hinduísmo é uma religião sem profeta. Não há uma personalidade divina a se adorar, mas preceitos éticos a seguir. Normas de boa conduta espiritual, digamos assim, mas muito, muito distantes das preocupações moralistas e repressoras da cultura pós catolicismo.
A batalha de Kurukshetra é, portanto, a batalha de todos nós, dia após dia, para tocar nossa vida, diante das atribulações cotidianas. E diz mais a frente Paramahansa, de modo inspirado (página 22, embaixo):
“Portanto, o Gita aponta, logo na primeira estrofe, a primordial necessidade que o homem tem da introspecção todas as noites, de modo que possa distinguir claramente que força – o bem ou o mal – venceu a batalha cotidiana. Para viver em harmonia com o plano de Deus, o homem precisa repetir para si próprio, todas as noites, a indagação sempre pertinente: “Reunidas no espaço sagrado do corpo - o campo das ações boas e más -, que fizeram minhas tendências opostas? Que lado nesta guerra incessante, venceu hoje? Vamos, me diga: as más tendências corruptas, tentadoras, e as forças opostas da autodisciplina e do discernimento, que fizeram?”
Para o Hinduísmo, alguns conceitos são fundamentais.
Talvez o mais interessante deles seja o conceito de Maya, a Ilusão.
Maya é o cenário da batalha, os figurantes, o script.
Maya cria o contexto dentro do qual lutaremos nossa própria batalha de Kurukshetra. Nada em Maya é real, mas deve parecer que seja. Como em uma peça de teatro, ou durante a projeção de um filme, concordamos em aceitar como reais as cenas que se desenrolam a nossa frente de modo que possamos experimentar as emoções e os sentimentos como se fossem nossos.
Súbito, as luzes da sala se acendem, o espetáculo se apaga, e acordamos daquele sonho artístico sem que nada, nenhuma parte de
nós, tenha sido mudada pela experiência que testemunhamos como observadores e partícipes emocionais. Apenas nosso mundo interior sai modificado daquela experiência. E é exatamente isto que fomos lá buscar: experiências emocionais, nada mais.
Maya, A Ilusão
Este é um conceito chave no Hinduísmo. Kurukshetra, a batalha interior, desenrola-se em um campo imaginário, e o que chamamos real é parte deste campo.
Não importa o que nos aconteça ou o drama que vivenciemos. O que importa é a pergunta de Paramahansa:
“Reunidas no espaço sagrado do corpo, as forças opostas, que fizeram?”
Um teste de aperfeiçoamento, um seminário espiritual. A vida cotidiana para o Hinduísta, é estudo ou divertimento, nunca dor. Este é seu horizonte. Não necessariamente sua pratica. Este é o seu objetivo como praticante desta filosofia de vida. Se ele chegará a viver por esses princípios, só o tempo e seu esforço pessoal poderão dizer.
Não que não exista a Dor, o Sofrimento, a Amargura.
Só que ela tem um contexto.
O Gita começa com a hesitação de um rei.
Arjuna contempla seus parentes no campo de batalha e sente suas forças lhe fugirem. Tomado pela compaixão por aqueles que ama – “seus pais, avós, mestres, tios maternos, irmãos, filhos, netos, amigos, e também seu sogro e bem querentes” – diz : “Meu querido Krishna, vendo meus amigos e parentes presentes diante de mim com tal ânimo para lutar, sinto os membros de meu corpo tremer e minha boca secar.”
Conheço bem a sensação.
Diante da confirmação de alguns problemas recentes, também senti a mesma sensação. Minha tristeza foi imensa, não por mim, mas por outros, colocados diante de mim, trazidos ao meu campo pessoal para comigo partilhar a disputa entre o bem e o mal.
Arjuna continua:
“Todo meu corpo está tremendo e meu cabelo está arrepiado. Meu arco Gandiva está escorregando de minha mão, e minha pele está ardendo//Sinto-me incapaz de permanecer aqui por mais tempo. Estou me esquecendo de mim e minha mente está girando.Prevejo só o mal...//...//Ó Govinda, de que nos valem reinos, felicidade ou até a própria vida quando todos aqueles pelos quais podemos desejar estão agora dispostos neste campo de batalha? Ó madhusudana, quando Mestres, pais, filhos, avós, tios maternos, sogros, netos, cunhados e todos os parentes estão diante de mim, então por que desejaria eu matá-los (ou vê-los sofrer, digo eu) ainda que eu sobreviva? ...”
Arjuna aqui sofre pelos que ama. Identifico-me com ele. O que o faz sofrer não é o medo da batalha, mas o receio do sofrimento daqueles que amamos. Isto nos causa mais dor do que o nosso próprio sofrimento.
Krishna representa a Consciência de Deus em nós. Por isso ele se apresenta como um cocheiro, aquele que guia nosso corpo, nossa quadriga, os quatro sentidos materiais mais a visão representada pelo próprio Krishna, já que é Deus que nos faz ver as coisas com clareza e não nosso cérebro.
Arjuna, desolado e sentado na quadriga, é nossa alma, insegura, hesitante.
No segundo capítulo, Krishna dará a iniciação a Arjuna e lhe falará da necessidade de superar seus medos.
Usará expressões fortes para erguê-lo da inação, como por exemplo: “Ó Filho de Prtha, não se entregue a esta impotência degradante. Ela não condiz com você. Largue tal fraqueza mesquinha de coração e levante-se, ó castigador dos inimigos.”
Mas Arjuna não se recobra da insegurança, e mais a frente admitirá sua paralisia psicológica diante do dilema ou do drama que se descortina a sua frente, dizendo “Agora estou confuso sobre meu dever e perdi toda a compostura por causa da fraqueza. Nesta condição, peço que Você me diga claramente o que é melhor para mim.Agora sou Seu discípulo e uma alma rendida a Você. Por favor, instrua-me.”
Desespero e rendição. Uma dos conceitos tradicionais no Hinduísmo é que quando se atinge o nível mais alto de desespero e falta de fé em si, Deus entra em nós, e nos ocupa o Vazio deixado pela nossa fuga da batalha.
Ele nos carrega nas costas, digamos assim, quando fraquejamos.
Só quando nos sentimos derrotados pelo desânimo estamos abertos a presença do Altíssimo porque finalmente aí, e só aí, o Ego desiste de seu papel de pseudocontrolador dos fatos e assume sua própria impotência diante do imprevisível, do imponderável.
É só aí, quando o Ego se afasta, que Deus pode passar. E nada como o sofrimento e a amargura para nos jogar por terra; nós não, nosso Ego, nosso falso Eu.
Livres das nossas falsas concepções acerca de nós mesmo, tristes, humilhados, rendemo-nos finalmente ao mestre interior, a Consciência de Deus em nós, e pedimos-lhe, com humildade, que nos oriente.
E continua Arjuna, ou nós mesmos, falando:
“Não consigo afugentar este pesar que está secando meus sentidos. Não serei capaz de destruí-lo mesmo que ganhe um reino incomparável na terra, com soberania semelhante à dos semideuses no céu.//Govinda, não lutarei”
Estamos, nós e Arjuna, derrotados pela amargura.
Estamos paralisados por ela. Não sabemos como reagir, como lutar.
Só Deus pode nos devolver a paz de espírito.
Só por Sua Sagrada intervenção poderemos recuperar nosso equilíbrio. Mesmo sabendo que tudo é Maya, o Hinduísta sofre tanto quanto o não Hinduísta.
Nada de distanciamento oriental, de ausência de sentimentos.
Tudo bobagem de ocidental ignorante acerca da humanidade de todos nós em qualquer parte do planeta.
Aliás, é pela mesma entrega presente em São João da Cruz que o Hinduísta pode superar seus impasses e seus dramas.
Lá como aqui, estamos todos em Suas sagradas mãos e quanto mais rendidos à Sua Divina Vontade, mais poderemos usufruir de Seu poder e consolo. Lá como aqui discute-se a importância do desapego para alcançar a paz. Mas como não ter apego aqueles que amamos?
Ao se render a Krishna, Arjuna se entrega nas mãos de Deus. É o próprio Deus, a voz do Mestre Interior em nós, que Guia nosso corpo como Krishna guia a Quadriga de Arjuna em Kurukshetra, vem nos iniciar nos conhecimentos transcendentais que nos livrarão deste impasse, desta paralisia congelante e inútil.
E diz Krishna:
“Ó Filho de Kunti, o aparecimento temporário de felicidade e sofrimento e seu desaparecimento no devido curso, são como o aparecimento das estações de inverno e verão. Surgem da percepção sensorial, ó descendente de Bharata, e é preciso aprender a tolerá-los sem se perturbar.// Ó melhor entre os Homens (Arjuna), a pessoa que não se perturba com felicidade e tristeza e permanece firme em ambas, é certamente elegível para a liberação.// Aqueles que são videntes da verdade concluíram que não há continuidade para o inexistente e não há interrupção para o existente. Estes videntes chegaram a esta conclusão estudando a natureza de ambos.//( e conclui) Saiba que o que penetra todo o corpo é indestrutível. Ninguém é capaz de destruir a alma imperecível”
Aqui Krishna rejeita o conceito de Morte como falso. Lembra-me Saint Martin, dizendo que não conhece dois tipos de Vida, mas apenas uma Vida.
E se a Morte for falsa, como tudo mais em Maya, o Sofrimento e a própria amargura também o são.
Mas então, se tudo é Ilusão, apenas Maya, por que sofremos? Por que nos confundimos com a Ilusão, cremos nela, numa espécie de fé maligna naquilo que não existe ao mesmo tempo que duvidamos daquilo que existe?
“Aqueles que são videntes da verdade concluíram que não há continuidade para o inexistente e não há interrupção para o existente.”
Acreditamos na Dor e na Amargura, não na presença de Deus dentro e ao redor de nós. Temos pouca noção de Sua ostensiva presença, nos apoiando, nos sustentando, nos mantendo em conexão com a vida. Sabemos como lamentar o que não perdemos, mas não temos noção do que possuímos. Só pela Iluminação, que só é possível quando jogamos a toalha e nos rendemos a Deus de maneira incondicional, é que começamos a enxergar o que está e sempre esteve a nossa frente. O Sofrimento intenso não nos permite necessariamente a Iluminação, mas destrói as fantasias do Ego e permite que a Luz finalmente brilhe em nós.
É como a explosão que desobstrui a estrada interditada.
Às vezes só com dinamite é que a coisa anda.
Se há sofrimento ainda há ilusão. Ainda existe falta de equanimidade. Verão – Inverno, depois Verão, depois Inverno de novo, como diria o personagem de Peter Sellers em “Being There”, que no Brasil chamou-se “Muito além do Jardim”, Chouncey Gardner.
Tudo segue em ciclos, alternando-se, ritmicamente.
E Krishna continua:
“Aquele que pensa que a entidade viva é a que mata ou é morta, não compreende. Aquele que tem conhecimento sabe que o Eu não mata nem é morto. //Para a alma não há nascimento nem morte. Nem uma vez que exista ela vai deixar de existir. Ela é não nascida, eterna, sempre existente, imortal e primordial. Ela não morre quando o corpo morre.”
Não há Morte, ou Doença, ou Dor verdadeira, são apenas contextos de uma representação teatral para que pensemos ou reflitamos sobre nós mesmos, para que aprendamos algo de novo sobre nossa vida e nossa relação com a Vida.
Alcançaremos este grau de consciência?
Quem sabe. Talvez o Conhecimento ajude; e a Oração também.
Talvez ambas.
De qualquer forma sem que nos entreguemos nas Mãos do Altíssimo, chamemo-lo de Deus ou de Krishna, nada acontecerá.
Tem que ser uma entrega total ou não será entrega. A partir daí as coisas começarão a acontecer.
Não antes. Quanto a este aspecto não há discussão.
A Dor e a Amargura nos guiarão nesta direção.