Por Mario Sales FRC.:,S.:I.:,M.:M.:
Confesso que meu espírito científico não aumentou durante meu trabalho como médico, mas como repulsa aos disparates que testemunhei enquanto místico. A vivência das escolas esotéricas nos coloca em contato com as personalidades as mais variadas, desde pessoas crédulas e de poucas luzes até seres altamente refinados espiritualmente, verdadeiras luzes na humanidade, como é o caso de meu querido amigo, mestre e frater Reginaldo Leite. Existem, claro, os meros eruditos, aqueles que estão tão entupidos de informações que não conseguem realizar sínteses conceituais, mas que se deleitam em discutir filigranas nas informações que lhe chegam aos ouvidos com uma veemência que, os que testemunham suas falas supõem que o assunto em discussão é uma questão de vida ou morte.
O que me chamou atenção nestes anos, no entanto, é a pouca capacidade crítica da maioria dos membros destas mesmas ordens.
Não que a capacidade crítica e o bom senso sejam uma obrigação para ser membro de uma escola esotérica. Pessoalmente, no entanto, acho que deviam ser.
Um ambiente como o ambiente esotérico, que lida com ensinamentos extremamente sutis, sobre assuntos altamente subjetivos, deveria ser banhado por uma enorme dose de objetividade.
Isto retiraria das escolas esotéricas qualquer sombra religiosa que ainda persista na mente e no espírito do iniciado, deixando o campo livre para a religiosidade pura.
A Religião não é o problema. Ela é uma etapa importante do refinamento espiritual de todos nós. A questão é que junto com as religiões vem o pensamento dogmático, amarrado, e talvez o melhor místico seja o religioso em crise de fé com suas crenças, porque neste instante, torna-se flexível quanto a aceitar novos paradigmas. E o mais importante: se não houvesse qualquer sombra de religião nas escolas esotéricas não correríamos o risco de termos um esoterismo também dogmático, pois se a mente dos membros de determinada Ordem não se mantiver flexível com a troca, teremos apenas transformado um dogmático religioso num dogmático místico. E isto é a morte do misticismo.
Por isso, junto com a iniciação, que trabalha o mais profundo da sensibilidade de cada um deve haver a preocupação de trabalhar as habilidades reflexivas do iniciado, para municiá-lo contra discursos autoritários disfarçados de esoterismo.
Ora, tudo isto me vêm a mente enquanto leio um trecho de uma carta de Spinoza à um amigo, Boxel, onde ele faz reflexões sobre a importância do discernimento diante de declarações sobre fatos que careçam de demonstração.
Na carta, Spinoza comenta:
“O homem pereceria de sede e fome se se negasse a beber ou a comer antes de haver demonstrado plenamente que a bebida e a comida lhe caem bem; mas não acontece o mesmo na contemplação. Pelo contrário, devemos evitar admitir como verdadeiro o que é apenas verossímil, pois uma vez admitida uma falsidade, seguem infinitas. (...) concedendo que, na falta de demonstrações, devemos contentar-nos com verossimilhanças. Digo que a demonstração verossímil deve ser tal que, ainda que possamos duvidar dela, não podemos contradizê-la, já que aquilo que se pode contradizer não é semelhante ao verdadeiro, mas ao falso.”[1]
Muitas vezes, em escolas esotéricas, somos confrontados com declarações as mais ingênuas sobre assuntos os mais variados, geralmente tópicos do próprio esoterismo, sem que aquêle que faz tais declarações sequer suponha necessário qualquer prova daquilo que está sendo afirmado, por mais fantástica que seja sua afirmação. Parte do princípio de que, por estar em ambiente afável e em harmonia com suas crenças, não precisará de tais demonstrações. Só que, via de regra, trata-se de um raciocínio falso, com conclusões falsas, relembrando Aristóteles, porque parte de premissas falsas.
Uma delas é de que todos ali naquele ambiente acreditam nas mesmas coisas que ele acredita.
A outra é que todos ali são tão pouco criteriosos quanto ele quanto a aceitar como fato o que na verdade é apenas uma declaração de uma crença ou o simples repassar de uma informação não demonstrada.
Só que em escolas esotéricas isto é comum. Não é algo estimulado pelas escolas, mas acontece.
Fala-se de acontecimentos impressionantes, de fenômenos parapsicológicos que um ou outro diz ter experimentado e mostra-se admiração pela capacidade deste frater e desta sóror sem que, em momento algum, tais “poderes” tenham sido testemunhados.
Certa feita, ainda no tempo da Academia de Yoga, em Campos dos Goytacazes, no Rio, passei por uma experiência bastante didática em relação a estes assuntos.
Em frente a Academia existia um cinema chamado Cine Goitacá, cujo dono era um rosacruz inativo, mas que tinha atingido graus acima do nono. Não me lembro do seu nome, mas certa feita, curioso, viera me visitar. Sentamos no carpete da sala de prática enquanto ele me contava sua afinidade pelos assuntos do misticismo e me dizia que gostaria de se reativar na Rosacruz porque tinha aprendido coisas muito interessantes e até desenvolvido algumas habilidades parapsicológicas através dos exercícios. Ato contínuo, disse-me que tinha dotes telecinéticos e, amarrando um barbante em uma moeda, demonstrou-me esses dotes. A moeda, parada e pendendo pela força da gravidade na linha presa em seus dedos imóveis, após algum tempo em que ele ficou contemplando-a, começou a oscilar e depois a descrever círculos cada vez mais amplos, que demonstravam, já que a mão de meu interlocutor estava imóvel, que movia-se apenas pelos seus impulsos mentais e não por razões mecânicas.
Não fez ele, desta demonstração, algo especialmente importante. Apenas mostrou-me sua habilidade como parte de seu argumento, de modo desinteressado, como deve ser a atitude de quem sabe que poderes telecinéticos em nada modificam a vida de quem os tenha para melhor. Mas hoje me lembro com nitidez deste episódio porque exemplifica a atitude que devíamos ter, uns com os outros, dentro dos muros de nossas ordens, apenas por respeito a inteligência de nosso interlocutor. Este rosacruz demonstrou algo em vez de afirmar que podia fazer alguma coisa que não fosse demonstrada. Não que as coisas relatadas entre místicos e esoteristas sejam estranhas a este meio, mas exatamente por isso, pelo fato destas declarações, sem quaisquer demonstrações, serem freqüentes, deveríamos insistir em mudar o nosso procedimento e só falar daquilo que pudéssemos demonstrar, para refrear a nossa própria língua e melhorar a qualidade de nosso trabalho esotérico.
A Prudência é um dos mais importantes degraus da Escada de Rá. Seria prudente que mantivéssemos nossa cabeça aberta, mas não tão aberta, como dizia Carl Sagan, que nosso cérebro caia.
[1] Carta 56 de Spinoza a Boxel, G IV,PP.260-1, citada no artigo “A Negação do Livre Arbítrio” de Marilena Chauí, in “O Mais potente dos Afectos: Spinoza e Nietzsche”, pág.77
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