por Mario Sales, FRC, Gr.:18-Gr. do C.:R.:C.:; SI (membro do CFD)
Por definição, eu sou um intelectual, um teórico, alguém
afeito aos textos e às interpretações destes textos. O pensamento do intelectual
se alimenta de informações, dados e conceitos que ele articula com o intuito de
descrever panoramas e paisagens do mundo que o cerca de acordo com seus
pressupostos de base.
Sim, pré-supostos, prévias suposições, pois, como lembrava
Kant, todos nós partimos de ideias a priori, convicções que nos levam a traçar
um caminho de forma peculiar, particular e única, em meio as informações e aos
fatos que estão a disposição de todos.
Mesmo terreno, mesmo relevo, estratégias de caminhada
diferentes.
Contemplando a realidade, os pensadores acabam, não por
descrevê-la com fidelidade, mas sim por interpretá-la.
Toda descrição é uma interpretação. A interpretação possível
diante das nossas limitações de percepção e capacidade de compreensão.
Embora a ciência positivista nos fale de conhecimento
fundamentado em fatos, nem toda fundamentação existente pode livrar o
homem de ciência da intromissão indesejada, mas inexorável, inevitável, da
subjetividade.
Assim, belos discursos muitas vezes ocultam apaixonadas
convicções, não tão belas. A lógica se oferece como auxiliar tanto os bons
quanto para os maus.
Posso argumentar com precisão e coerência a favor ou contra
a tirania, dependendo de minhas convicções, as quais estão lá, a priori, dentro
de mim, antes do discurso, antes da argumentação.
Os campos de concentração nazistas de Auschwitz-Birkenau são
um exemplo da lógica e da organização a serviço do mal, da destruição e da
morte.
Por isso o intelecto é chamado de “A Falsa Luz”, aquela que
brilha sem calor e sem vida, a luz artificial.
Os valores espirituais, entretanto, são mais profundos e
confiáveis, e muitas vezes geram discursos óbvios, aparentemente sem nenhuma
originalidade, mas refletem uma realidade muito mais confiável e estável que as
miríades caleidoscópicas do intelecto.
Portanto, é preciso ter cuidado com o intelecto,
principalmente quando se é um intelectual.
É preciso não se deixar arrastar pelo Ego e não se fascinar
pela própria eloquência, confundindo a lógica interna de um discurso com a
realidade a qual ela se refere.
Há muito tempo superei esta ilusão.
Mantenho meu discurso na coleira da espiritualidade, e
embora ele ladre e rosne às vezes, está sob o controle desta.
Não tenho mais o prazer que tinha quando jovem da polêmica
pela polêmica, de discutir exaustivamente sobre qualquer coisa apenas por
exercício. Se me empenho em um debate isto tem a ver com motivos mais elevados,
a defesa de valores espirituais ou morais, mas não opiniões pessoais.
Não me importo com a vitória ou a derrota em contendas
orais, à semelhança do que acontecia na Ágora de Atenas com os debates entre
mestres da Sofística. Nada disso, hoje em dia, me atrai ou me dá prazer.
Aliás, não busco o prazer na existência, mas a serenidade,
este bem tão precioso quando difícil de ser preservado.
Às vezes, a serenidade lembra a água que enche nossas mãos,
na pia, enquanto fazemos nossa higiene matinal, e que nos ajuda a lavar o
rosto, mas, ao mesmo tempo escorre pelos dedos. Para que consigamos nos
refrescar e terminar as abluções, enchemos as mãos mais de uma vez no fluxo de
água da torneira, e a água torna a escorrer e a escapar de nós, por mais que
façamos para retê-la.
A verdade é que o frescor da água é diretamente proporcional
ao seu fluxo e se a água que colocamos nas mãos não escorresse e não fosse substituída
por outra porção mais fresca, seu efeito benéfico e agradável se esmaeceria em
pouco tempo. A água , quando estagnada, tende a perder seu vigor e apodrece.
O espírito é fluido e ágil e o intelecto, mecânico e lento.
O espírito plana e voa no espaço e o intelecto precisa do solo para se
deslocar. O intelecto se apoia em alguma coisa que ele chama sólida enquanto o
espírito e as coisas do espírito flutuam.
Só que sou um espiritualista ocidental, mergulhado até os
cabelos nas paixões do dia a dia, com responsabilidades profissionais e
familiares, sujeito às demandas da natureza humana.
A busca da serenidade para mim como para muitos místicos
modernos é feita em meio ao burburinho das modernas praças do mercado,
conhecidas hoje como praça de alimentação de um shopping center, ou no meio do
trânsito sempre caótico das cidades, por menores que sejam.
E como não sou um místico oriental nem estou afastado das
atribulações diárias dentro de um mosteiro, protegido das aflições humanas e do
convívio social por muros de pedra e jardins de isolamento, estou também
sujeito às mesmas paixões que estes meus companheiros de jornada.
Vivo, como lembra o martinismo, as dualidades da vida
mundana. Por isso meu discurso, embora preso na coleira da espiritualidade, às
vêzes ladra, late alto, para temor de alguns e susto de outros.
São resquícios da paixão em mim, a qual não me embaraça, já
que sou um ser humano como qualquer outro, cuja humanidade manifesta-se
exatamente nestes momentos de emoção e sentimento, emoção e sentimento estes
que resvalam para o discurso e para a argumentação.
Mas não me orgulho disso, nem uso tais acontecimentos como
sinais de perfeição. Pelo contrário, embora releve e compreenda a mim mesmo por
ser um homem comum, minha vista olha para o alto da montanha e minha ambição é
subir mais e mais e não ficar aqui, na planície, contendo com algum esforço
minha besta fera na coleira.
Há pessoas que se orgulham dessas paixões. Confundem
evolução espiritual com heroísmo, força física, honra.
Não é a toa que vejo entre místicos rosacruzes e maçons um
certo fascínio romântico e fantasioso pelos templários, suas espadas e sua
época histórica, como se os místicos de hoje pudessem, com facilidade, ao menos
levantar o espadagão que eles carregavam, ou suportarem mesmo que por poucos
minutos, o ambiente grosseiro e altamente violento das escaramuças dos cruzados
com assaltantes de estrada ou com muçulmanos na disputa militar pela posse da
cidade santa.
O fato é que aquele mundo, aquela época, que invade o
imaginário de alguns esoteristas hoje em dia, para ser franco, caracterizou-se
pela barbárie e pela carnificina. Não havia nada de nobre ou romântico em
sentir o ferro entrar na própria carne, enquanto as roupas pesadas e quentes
abafavam um ferimento que, se não causasse morte imediata, via de regra
infeccionava, e lentamente, não imediatamente, após dias de febre, levaria a
vítima a um quadro de agonia e morte.
Eram outros tempos e se nos filmes tudo parece nobre,
heróico e inspirador, acreditem, a história real era outra.
O místico ocidental se identifica com heróis violentos, em parte porque vive em um mundo violento, mas em parte também porque, além disso, vive uma ilusão de
civilização e harmonia, que desaparece após um simples assalto, coisa tão comum
em cidades modernas.
Mesmo assim, a violência em nossa área do planeta é
exponencialmente menor do que naquela idade média olhada às vêzes com suspiros
e admiração pelos de imaginação fértil.
Em outras áreas, no entanto, Oriente Médio, Síria, Mongólia, e mesmo
no México com a guerra dos cartéis do tráfico de drogas, a vida humana vale
muito pouco e a violência continua igual aquela das cruzadas.
Por causa das comunicações, mesmo que não estejamos nesses
locais, participamos através das informações que nos chegam, em tempo real,
desses eventos.
E é em meio a este caos social que vamos tentar como
místicos modernos encontrar serenidade. Não a serenidade do mundo, pois o mundo
não é sereno nem nunca será, mas a serenidade possível dentro de nós, a qual
uma vez encontrada e desfrutada, é como a água bíblica que nos liberta de toda
a sede para todo o sempre.
Não, não somos templários, nem queremos ser. Queremos a
nobreza e a beleza das armaduras e das espadas, mas não o seu peso ou seu
desconforto. Queremos parecer heróicos, mas não queremos sentir a dor do metal a
nos cortar a carne. Mas porque somos ocidentais, como crianças, cremos em nossa
imaginação que esta nobreza é possível sem dor. Estas fantasias são apenas o
produto da paixão em nós, que produz o erro de interpretação, e nos leva a
fazer sacrifícios ao Bezerro de Ouro.
O interior, o espírito em nós, é muito distante, difícil de
visualizar. Armaduras e espadas, orgulho, discursos eloquentes, estes podemos
compreender e tocar, podemos escutar.
A Voz do Silêncio, por sua vez, é quase inaudível.
Precisamos de muita quietude e o barulho a nossa volta é ensurdecedor.
Isto tudo que vemos, na verdade, não está fora de nós. É
projetado para fora de nós, é criado por nossa vontade e por nossas convicções,
nossos pressupostos, nossas idéias de mundo. Até o ruído que ouvimos é, em
verdade, nosso próprio ruído.
Precisamos usar a técnica mística para, ocidentais ou
orientais, aqui isto não é importante, aquietar nosso interior. Precisamos
todos aquietar nossa mente. Precisamos todos fazer Yoga. Patanjali dizia que
Yoga Chitta Vritti Nirodah, ou seja, a União com o Todo só é possível com a
cessação do turbilhão mental.
A Mente é a causa do Caos, em nós e fora de nós.
A Mente gera o Ego. A Mente gera o intelecto. A Mente mente
para nós, todo o tempo, e nos ilude. Vivemos esta mentira de forma consciente
ou inconsciente e o grau de nossa perfeição espiritual será tão grande quanto o
grau de consciência que tenhamos deste estado ilusório.
Uma das Ilusões mais constantes em qualquer ser Humano é o Medo.
O Medo gera a Desconfiança, a Desconfiança gera a Violência, a Violência gera o
Ódio, e o Ódio leva ao lado escuro da Força.
Precisamos aumentar nossa paz interior e para isso,
precisamos parar de sentir Medo, o Medo que nos lança uns contra os outros,
como se fossemos inimigos, como se fossemos muçulmanos e cruzados em disputa
por uma Jerusalém Imaginada.
Estamos todos em busca da mesma Jerusalém, estamos todos
lutando contra o mesmo inimigo, o Medo, a Desconfiança, e para vencê-lo
precisamos olhar para dentro de nosso próprio coração. Lá encontraremos a
Verdadeira Jerusalém, que se chama Serenidade, e nos libertaremos do ataque do
Inimigo.
Em nenhum momento esta busca, este esforço, será percebido
por outra pessoa, senão por nós mesmos.
Todos lutamos uma luta íntima contra nossa própria besta
fera que quer sair e morder aqueles que achamos que nos ameaçam. Nada nos
ameaça, a não ser nosso próprio Medo.
Não são os debates intelectuais que nos levarão ao coração,
não são as discussões e as argumentações que nos revelarão a verdade.
A Verdade, a Serenidade, o Cálice Sagrado está dentro de nós
e só se materializa aos nossos olhos pelo silêncio da língua, da mente e
principalmente do coração.
Se infelizmente alguns rosacruzes acham que a Grande Loja os
ameaça e a combatem, por meios inclusive jurídicos, apenas lutam contra seus
próprios fantasmas, seus próprios moinhos de vento.
O inimigo não está fora de nós.
Nosso orgulho, nossa incapacidade de admitir nossos
equívocos com humildade prolonga nosso sofrimento e nossa dor, como um
ferimento de espada infeccionado numa época sem antibióticos.
Isto vale para todos, maçons, martinistas, rosacruzes, em
cargos administrativos ou fora deles.
Precisamos todos olhar para dentro, olhar para o coração,
resgatar nossa serenidade e transcender o Medo.
Estamos todos no mesmo barco. Estamos todos juntos.
O que importa não são os discursos, mas o que vai no coração
de quem fala, de quem argumenta.
Se somos realmente Iniciados, saberemos usar nossa
sensibilidade e responder a questão: "O que está por trás destas palavras?
O que diz a canção que soa neste silêncio?"
Em um relacionamento realmente proveitoso, místico e profundo, estas são as únicas questões que realmente importam.