por Mario Sales, FRC,SI,CRC
Minha esposa trabalha
na área de Psiquiatria. Nas conversas do café da manhã eventualmente vem a tona
um de seus casos no ambulatório e a grande intensidade do sofrimento da família
de pacientes com distúrbios mentais graves, que implicam em agitação
psicomotora, desorientação e medo. Sim , medo das possíveis atitudes impensadas
e impulsivas de seres humanos devastados por este flagelo ainda sem um
tratamento realmente eficaz, chamado doença mental, em todas as suas
manifestações.
Foi ouvindo seus
relatos sobre um caso que comecei a fazer intimamente considerações sobre o
papel kármico do sofrimento inconsciente.
Recorrendo de novo,
com a permissão de todos , a mesma imagem que tanto me fascina pelo didatismo
com que explica o fenômeno da encarnação, a sala de projeção de cinema,
imaginemos que a encarnação enquanto oportunidade de evolução particular do
indivíduo pressupõe a consciência de suas opções e experiências.
Comparando com a sala
de cinema, é como sentar na cadeira da sala de projeção e assistir o filme,
contemplar, testemunhar os eventos que passam na nossa frente, na tela de
projeção, que é a nossa própria vida material. Enquanto eu posso contemplar e
compreender ou desfrutar das imagens e dramas que se desenrolam no enredo da
história, as emoções que estes acontecimentos desencadeiam em meu espírito, em
minha mente, vão mudando minha compreensão de tudo que me cerca, da mesma forma que os filmes
fazem com que choremos, ou gargalhemos, ou simplesmente reflitamos sobre
aspectos da vida. O teatro cinematográfico, representado pela projeção de um
raio de luz, nos permite estudar a vida e a nós mesmos, oferecendo-nos uma
experiência segura e produtiva já que como lembra Krishna a Arjuna no diálogo
do Bhagavah Gita: "11.Enquanto falas
palavras sábias, estás lamentando aquilo com que não precisas te afligir. Os
sábios não lamentam nem os vivos nem os mortos. 12. Nunca houve um tempo que Eu
não existisse, nem tu, nem todos esses reis; e no futuro nenhum de nós deixará
de existir. 13. Assim como, neste corpo, a alma corporificada seguidamente
passa da infância à juventude e à velhice, do mesmo modo, chegando a morte, a
alma passa para outro corpo."(capítulo II, vers.11 a 13)
Mas e se eu não
pudesse assistir o filme a minha frente? Se por um absurdo inexplicável eu
entrasse no cinema com uma venda nos olhos e um tampão nos ouvidos? Qual a
utilidade para uma testemunha de um evento que lhe diz respeito de modo direto, (ou seja, sua própria existência) que não pode ser testemunhado? É o que ocorre em
pacientes psiquiátricos sem o devido controle medicamentoso, ou, às vêzes, com
este controle, mas sedados pelos medicamentos a tal ponto que seus reflexos ficam diminuídos e sua percepção embotada, como era comum nos anos 50 e 60 do século
passado.
Aquilo que dá
significado à existência enquanto experiência educacional e de lazer, como
define a imagem didática da sala de cinema, é a consciência e a percepção clara
do que ocorre a nossa frente.
É preciso que
tenhamos consciência de nossas experiências até para realmente poder
aproveitá-las de alguma forma. Como eu sempre repito, sem consciência não há
Karma. Só existe aprendizado e possibilidade de escolhas pontuais, aqui e ali, que resultarão em novos entendimentos da vida se o indivíduo tiver condições
mentais de participar lucidamente dessas escolhas.
Lucidez é uma palavra
que deriva do mesmo radical latino de Luz. Sem a Luz do Entendimento, a sefira
Binah, da árvore da Vida, Chokmah, a Sabedoria, será inatingível.
Qual portanto pode
ser o papel de um indivíduo que vem a essa existência com o destino de
apresentar uma doença que compromete sua capacidade mental, já que é a mente
nosso mais importante instrumento de percepção?
Já ouvi várias
argumentações sobre isso. Alguns místicos advogam a tese de que a experiência
do indivíduo em questão visa menos a ele mesmo que aqueles com quem ele
convive. Seria uma tese interessante se a Vida como experiência em si não fosse
um evento tão precioso, tão rico e fundamental.
Para mim é difícil
aceitar que toda uma existência, mesmo se olharmos o tempo de uma encarnação
pela ótica do tempo de Bhrama, o que faz de cem anos apenas um segundo, seja
jogada ao fogo, como um sacrifício pessoal de um em benefício de outros, exatamente aqueles que
testemunham nossa incapacidade de testemunhar.
Nenhuma vida ou
existência é inútil, mas considerá-la útil de modo indireto, como uma
experiência totalmente doada a terceiros, não me parece um modo justo de
desempenhar este magnífico papel da encarnação.
O indivíduo que passa
pela experiência da doença mental grave deveria ter a capacidade de
contemplar-se nesse estado para poder usufruir dele de modo kármico. Passar
pela vida sem saber-se vivo, na minha humilde opinião, é puro desperdício,
mesmo que seja um simples segundo de Bhrama.
Porque na verdade, o
Tempo que importa é o tempo psicológico. E a vida é busca de consciência
permanente. Não existe outra função para a existência na Terra ou fora dela do
que a busca de mais e mais consciência, já que é através de nós que Deus
contempla a si mesmo, e se percebe no reflexo.
Este tema está longe
de poder ser esgotado por reflexões como esta. Falta-nos informações mais
precisas, mais profundas sobre a atividade cerebral e mental. Sabemos que
pacientes esquizofrênicos vivem experiências delirantes, contemplando
realidades absolutamente distintas da experiência hodierna, aonde se debatem
com imagens ora assustadoras, ora acalentadoras, mas em tudo e contudo
descoladas da percepção dos cinco sentidos comuns.
Serão estas
experiências delirantes, como as classificamos, capazes de gerar algum tipo de
evolução cármica? Ao que sabemos, o curso de um delírio é caótico, como os sonhos,
repletos de simbolismos inexplicáveis e esotéricos até para o próprio sonhador.
Poderia tal tipo de experiência caótica trazer aquele que dela participa algum
tipo de percepção nova sobre a vida e principalmente, sobre a sua própria vida?
Não sei. São questões
em aberto que não fazem sentido em um Universo, que como místico, eu considero
justo, equilibrado, mantido em tal equilíbrio não pela justiça dos homens, mas
pela justiça divina, a quinta sefira de cima para baixo.
Ou seja , a Justiça (Geburah)
vem antes, bem antes do entendimento, Binah. Antes de ser um Universo
compreensível, ele deve ser Justo. A justiça é fundamental para que o Cosmos, a
Ordem Universal, se manifeste.
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