Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sábado, 24 de agosto de 2013

AS TREVAS

por Mario Sales, FRC, SI, MM CRC

“Senhor, é quase meia-noite e estou Te esperando na escuridão e no grande silêncio. Lamento todos os meus pecados. Não me deixe pedir mais do que ficar sentado na escuridão, sem acender alguma luz por conta própria, nem me abarrotar com os próprios pensamentos para preencher o vazio da noite, na qual espero por Ti. Deixa-me virar um nada para a luz pálida e fraca dos sentidos, a fim de permanecer na doce escuridão da fé pura. Quanto ao mundo, deixa-me tornar-me para ele totalmente obscuro para sempre. Que eu possa, deste modo, por esta escuridão, chegar enfim à Tua claridade. Que eu possa, depois de ter me tornado insignificante para o mundo, estender-me em direção aos sentidos infinitos, contidos em Tua paz e Tua glória. Tua claridade é minha escuridão. Eu não conheço nada de Ti por mim mesmo nem posso imaginar como fazer para te conhecer. Se eu Te imaginar, estarei errado. Se Te compreender, estarei enganado. Se ficar consciente e certo que Te conheço, serei louco. A escuridão me basta.”

Thomas Merton: "A Escuridão Me Basta" Lembrado por Fernando Luiz.




Um dos muitos slides produzidos por Mestre Reginaldo Leite, acima , à direita.



Mais uma vez recorramos a nossa imagem preferida, a sala de projeção de cinema.
A condição "sine qua non" para a projeção é que a sala esteja às escuras, completamente, de forma que a luz possa se propagar e gerar o filme na tela a nossa frente.
Toda vez que penso nisso, lembro do ensinamento do Ain Sof do Cabala de Isac Luria.
Se Deus era e é Tudo, está em Toda Parte, como poderia ele criar algo? Luria conclui que Deus, ao criar, não se expande, mas se contrai, abrindo dentro de si uma esfera tridimensional, como um buraco em uma rosquinha donuts, para que dentro desta esfera de ausência possa manifestar a Sua Divina presença, sob a forma do Universo Criado. Nessa esfera de ausência não há Luz , somente a Luz que Deus projetará, como o raio de luz que sai do projetor de cinema, na sala de projeção, e que passa sobre nossas cabeças.



Este raio, no Cabala Judaico, chama-se Kav. É ele que, saindo de Deus, o Incognoscível, por ser o Sem Forma, Sem Contorno, vai projetar no espaço criado pela retração de Deus, o que chamamos de Criação.
Costuma-se dizer que Kav desce até o centro da Esfera aberta pela retração, o Tzim Tzum. Mas isto também é um preconceito, que lembra mais uma vez Aristóteles (o que está em cima é superior e o que está embaixo inferior).
Kav pode ter vindo de qualquer direção. Dos lados da esfera. entrando lateralmente, ou da região inferior, subindo até o centro. O que se sabe é que o raio caminhou até o centro onde explodiu em miríades de partículas de Luz, e projetou a Imagem da Criação, esta ilusão em que estamos mergulhados e onde realizamos nossos experimentos kármicos, misturando aqui termos indianos com o Cabala, bem ao estilo da Doutrina Secreta de Blavatsky.
O que indagamos é: de onde veio Kav, o Raio de Luz da Criação? De outra estrutura luminosa?
Se lembrarmos de nosso elemento de comparação didático, a sala de projeção, veremos que o projetor, em si, não brilha.
É uma estrutura de metal. Dentro dele, a Luz é produzida por uma energia que o percorre e causa a incandescência do filamento de uma lâmpada, esta sim, a parte do projetor que provoca, atravessando uma lente, a emanação e expansão do raio de luz da máquina em questão para a Tela da sala de projeção.
Do mesmo modo, não há necessidade de que Deus fosse Luz para que produzisse um raio de Luz, que é o que se considera habitualmente como lógico.
Como ele não tem forma, e a forma é um atributo da Luz, é provável que Deus também, em Si, não seja Luz, embora seja perfeitamente capaz de produzi-la.
Tal como o projetor de cinema.
Ele tem a capacidade de produzir, por mecanismos próprios, a Luz que projeta, mas não é, ele mesmo, a Luz, Kav, que projeta.
Deus, relembremos, não tem forma.
Não pode ser visto, pois não é um ser manifesto.
Só seu pálido reflexo, a criação, pode ser percebido. Conhecemos o Criador por sua Obra, e mesmo assim, sua imagem, em tudo refletida, é parcial e imperfeita. Ele é o Transcendente, o Incognoscível, ou como gostava de dizer Pasqually, a Imensidade; mas Deus não é Luz.
"A Luz, (utilizada na Criação), é um atributo do Ser", ou melhor, a Luz é uma ação desencadeada pela capacidade operacional do Ser, como o projetor, objeto metálico e não Luminoso, que é capaz de produzir um raio de luz poderoso.
Nós surgimos da Luz de Deus, como o filme surge da Luz do Projetor; mas assim como o projetor em si não é Luz , embora produza Luz, Deus, provavelmente, também não é Luz em Si, embora seja capaz de produzi-la.
Imanifesto, Deus, o Ain Sof, é Invisível.
É O Obscuro, O Oculto, aquele que se Oculta nas Trevas do Desconhecido.
É na Escuridão que podemos ver a imagem do filme projetado à nossa frente.
É da escuridão que surge a Luz do projetor.
Na Criação, do mesmo modo, somente nas trevas do Tzim Tzum pode manifestar-se a Luz, Kav, e gerar a Imagem do Universo Material conhecido e desconhecido .
E da mesma maneira, das Trevas aonde reside O Oculto, O Invisível, surge a Luz que cria o Visível. Viemos, como o filme do cinema, de uma luz que é projetada do interior de algo não luminoso.
E se levarmos a frente esta especulação, da mesma maneira que o projetor não é um ser vivo em si, mas produto da Inteligência de um ser humano e controlado por outro ser humano, o projecionista, também a Luz de Deus em Si pode ser entendida, não como o próprio Deus, mas, como lembra o catecismo rosacruz, "um atributo do Ser", não o próprio Ser.
Somos Luz , mas viemos do interior das Trevas.
Todos somos filhos das Trevas, embora sejamos feitos de Luz, sem que isto tenha  nenhuma implicação de valor ou significado simbólico.
Trata-se somente de uma dedução comparativa e baseada em tudo que a Tradição nos diz.
Filhos da Luz, Luz esta produzida dentro das Trevas.

Esta é, segundo a Tradição, nossa verdadeira Origem.

5 comentários:

  1. Excelente texto meu nobre irmão.

    Me lembrei de um texto de Jacob Boehme:

    "O Sem-fundo (Ungrund) é um eterno Nada, mas cria um eterno início como uma atração [ou desejo]. Pois no Nada há uma atração por algo, mas como nada há com que possa criar algo, a própria atração o cria. No entanto, a atração também é um Nada ou apenas uma desejosa busca.
    Essa é a eterna origem da magia [divina], que cria em si, onde nada há. Cria algo de Nada, e apenas de si mesma, embora essa atração nada mais seja do que um simples desejo. Ela nada tem e nada há a partir do qual possa criar algo, tampouco um lugar onde possa encontrá-la ou repousar."

    Escrito em 08/05/1620

    Paz Profunda

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    1. Obrigado por seu comentário Julio. O tema merece outros desdobramentos como por exemplo a partir desse viés interrogar o significado do trecho da fala do capelão que diz "Tudo era Trevas antes de surgir a Luz(no espaço vazio da Criação Material); a Luz , porém, não veio das Trevas, pois as Trevas são a ausência da Luz". Fiquei pensando depois de escrever o texto que sim, a Luz não veio das Trevas, mas veio de um local dentro delas,como a Luz do projetor,e além disso desloca-se nas Trevas. São percepções curiosas.
      Paz profunda Julio.

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  2. ..."e a luz resplandece nas trevas".
    Belo texto prezado Mário.
    Há anos escrevi em vosso Blog questionando o Panteísmo, talvez sem muito sucesso. Meu objetivo era unicamente ressaltar a Transcendentalidade do Divino (que no conceito de panteísmo clássico me parecia excluída) e sua manifestação, a qual ainda é Ele, mas que, como seu próprio nome induz, não o é exclusivamente pois há o imanifestado/ungrund/ain, que, logicamente, é transcendente.
    Eu imaginava que tínhamos uma concepção próxima, mas queria esclarecer a utilização do termo de forma precisa. De qualquer forma aprendi que nada é pior que discutir sobre palavras.
    Belo texto, grande abraço.

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    1. Querido amigo
      Agradeço seu comentário. Mas pelo tom de seu email "Eu imaginava que tínhamos uma concepção próxima, mas queria esclarecer a utilização do termo de forma precisa. De qualquer forma aprendi que nada é pior que discutir sobre palavras", talvez eu lhe deva desculpas ou pelo menos, precise esclarecer algum equívoco. Lembro-me bem do seu comentário, que achei profundamente interessante. Discutir sobre palavras, como voce diz, é tudo que é possível, o que não impede a discussão sobre afinidades, aquelas conversas em que pouco se fala e muito se troca. Mas tais conversas só são possíveis pessoalmente e não através da tela de um computador. Estou pronto a dividir um bom vinho com vc se me prometer vir aqui em casa ( vc me deve uma visita, embora tenha me dito que não frequenta). Se quiser podemos papear pelo skipe. Meu nome lá é igual aqui mario_sergio_sales. Conversar sobre quaisquer assuntos será um prazer e uma alegria que só o convívio fraterno garante.
      Grande abraço

      PP

      M

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  3. Salve prezado amigo,
    Agradeço de coração o convite, o qual apenas demonstra, mais uma vez, o espírito fraterno que tens, virtude essa que eu, pessoalmente, mais admiro.
    Sou de POA, então, por hora fica difícil a visita física, mas, oxalá, a providência nos coloque em contato, oportunidade em que terei o privilégio de compartilhar de forma mais precisa as angústias que minh'alma enfrenta nesse desvendar de mistérios.
    Saibas que sempre leio vosso blog, a maioria das vezes de forma silenciosa -como a maioria dos leitores- mas sempre atento. Leio desde muito antes das 10.000 visualizações, a qual foi esperada. Foram poucas as postagens que passaram em branco.
    Adicionarei-o ao Skype.
    Agradeço novamente as gentis palavras, e sei que tens razão quanto a importância das palavras, mas é que por vezes elas distanciam o que é próximo, apesar disso, sempre, em toda discussão, servem de combustível para aprofundar estudos.
    Desejo também PP para você e seus familiares e um fraternal abraço.

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