Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

domingo, 8 de setembro de 2013

TEATRO, ENCARNAÇÕES E KARMA

por Mario Sales, FRC, SI, CRC





De  1964 até 1985, para falarmos apenas de uma parte de seu vasto trabalho, um ator brasileiro consagrado, Tarcísio Meira, viveu 23 personagens. Em uma sequência de trabalhos na TV e no cinema, ele foi conhecido pelos nomes de Betinho, Miguel, Edmundo Amarante, Eduardo, Juan Gallardo, Celso, Bob Ferguson, Sandro e Fernando de Aragón, João Coragem, Ciro Valdez, Rodrigo Soares, Hugo Leonardo Filho e Raul de Paula, Antonio Dias, D. Pedro I, Diogo Maia, Fernando Lucas, Juca Pitanga, Paulo Cesar, Theo Faron, Felipe de Alcantara Pereira Barreto, Paulo de Oliveira, Hermógenes e Capitão Rodrigo Cambará.
Nenhum deles é Tarcísio; nenhum, entretanto, deixou de ser.
Os erros e trapaças de cada personagem, suas pequenas ou grandes maldades, suas malícias, pertencem a história de cada papel, à qual o autor ofereceu seu suporte e talento para fazer parecer real.
Gengis Khan, Hitler, Jim Jones. Henrique VIII, da mesma maneira, são papéis de vilões, semelhantes a quaisquer folhetins fantasiosos que costumamos acompanhar.
A partir desta linha de raciocínio, coloquemos uma questão: deveremos responsabilizar o ator pelas atitudes de seus personagens, considerando que não somos nossas encarnações, mas vivenciamos personalidades ilusórias que nos ajudam a compreender certas noções emocionais e espirituais?
Somos, todos nós, emanações do Criador, puras, límpidas e imortais como ele. Não somos o Mario, o Alfredo, ou o Carlos, como Tarcísio Meira, o ator real, de carne e osso, não é Edmundo Amarante, João Coragem ou D.Pedro I, mas fingiu ser estas pessoas por motivos exclusivamente teatrais e dramáticos. Papéis que, vilão ou herói, o enriqueceram como profissional do Teatro e como ser humano.
A pergunta que me vem a mente, quando vejo alguns irmãos discutindo qual seria a situação kármica de Judas ou de Hitler a esta altura da eternidade é: será que personagens passados devem ser considerados como existindo mesmo depois do final de suas existências? Será que João Coragem tem ou teve existência para além do final da novela específica aonde apareceu? Cessando a novela, cessa o personagem. Cessando a ilusão (Maya), tudo que fazia parte dela se desvanece, e só continua nas gravações de época que, dependendo da qualidade, denunciam, ao serem vistas, sua própria antiguidade.
Se terminando uma novela, o personagem, não o ator que o interpretou, desaparece, é de se supor que terminando a encarnação, aquela personalidade vivenciada, não a essência imutável e divina dentro dela, desapareça também.
É como se Tarcísio Meira fosse aprisionado por João Coragem e não pudesse mais representar nenhum papel, coisa que aconteceu com Leonard Nimoy ao representar o Sr. Spock, marcante personagem de ficção científica, mas que, ao mesmo tempo, destruiu todas as suas possibilidades como ator dramático, tão marcado ficou por este papel em particular.
Nenhum ator vive eternamente o mesmo personagem, mesmo Nimoy, como nenhuma alma fica eternamente na pele de uma de suas encarnações dentre muitas.
Hoje vilões, amanhã heróis, somos todos atores no drama kármico e não somos eternamente julgados, como supõem alguns, pelos desempenhos de uma única vida.
A única razão para pensarmos assim é a confusão entre vida espiritual e vida material, que nos faz projetar valores ligados a este plano, naquele, cometendo dessa forma toda sorte de equívocos.
Pensamos em bem e mal como se fossem reais e não aspectos de uma mesma realidade, como a luz e a sombra que o objeto iluminado pela luz, projeta no solo.
É difícil para alguns entender que para o diretor da peça, não importa o papel que o ator desempenha, mas sim a competência com que o faz. Todo drama necessita, para ser encenado de personagens em oposição, que manifestem o aspecto polar e alternado da existência. Dramas tem que ter algozes e vítimas, maldades e bondades. Mas a rigor, como lembra Krishna no diálogo de Kuruksetra, ninguém mata ninguém, ninguém morre. A encenação de sofrimento e dor deve ser convincente e devemos entrar no personagem senão a atuação 
(playing, em inglês, a mesma palavra para brincando e  divertindo-se) não será satisfatória e enriquecedora e o diretor nos pedirá para ensaiar mais e melhor.
Karma é uma noção mais complexa do que supõem algumas vãs filosofias. 

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