por Mario Sales,FRC,SI,CRC
"A Vida Una está intimamente relacionada com a Lei Una que
governa o Mundo do Ser: o Carma. Em seu sentido exotérico e literal, esta
palavra quer dizer simplesmente "ação", ou melhor, "uma causa
que produz seu efeito". Esotericamente, o Carma é uma coisa inteiramente
diversa em seus efeitos morais de grande alcance. É a infalível LEI DE
RETRIBUIÇÃO. ... Não se pode tampouco dar-lhe o nome de Providência. Porque a
Providência para os teístas - ao menos para os cristãos protestantes - recai em
um criador pessoal masculino, enquanto para os católicos romanos é uma potência
feminina. "A Divina Providência tempera suas graças" diz Wogan.
"Ela" as tempera, coisa que o Carma - princípio sem sexo - não
faz."
Helena Petrovna Blavatsky, Doutrina Secreta, II° volume, página
346, 'Simbolismo Arcaico e Universal', Ed. Pensamento,1973
A Lei da Ação e Reação
foi o tema do capítulo XV (ou seção XV) da edição da Doutrina Secreta, de Helena
Petrovna Blavatsky (HPB), II° volume, Simbolismo Arcaico e Universal, Ed
Pensamento, da coleção que eu e Flavio enfrentamos, quartas feiras à noite, há
dois anos.
Lá, com um linguajar tortuoso e estilos de expressão diferentes,
ora didáticos, ora pouco claros, HPB discute as características funcionais da
Lei do Carma.
Nega por exemplo, como na citação acima, que o Carma por
alguma razão atenue as consequências de nossas atitudes, fato atribuído a
Providência, conceito católico cristão de intervenção direta divina em nossas
atribulações cotidianas.
Para HPB, para ser justo, o Carma não pode ter modulações,
nuances, mas, pelo que compreendi salvo engano meu, deve ser marcada por total
correspondência entre a qualidade e a quantidade da causa e as mesmas
características da consequência.
Isto me pareceu, no mínimo, simplista.
À primeira vista, pagar na mesma moeda é o mais justo. Só
que existem inúmeros exemplos em que a reação do Universo às ações de um
determinado indivíduo são diferenciadas de acordo com circunstâncias, não
atenuantes, mas moduladoras desta reação.
Modular é adaptar a força do golpe às necessidades do
impacto, de forma este seja o mais eficiente e não o mais áspero, forte, ou
intenso.
Pensar o Carma na ótica da equivalência meramente
quantitativa é imperfeito, incompleto, inadequado.
Como diz a própria HPB, "esotericamente,
o Carma é uma coisa inteiramente diversa em seus efeitos morais de grande
alcance".
Ao privilegiar o aspecto quantitativo nos efeitos cármicos,
deixamos de lado fatores moduladores da resposta de extrema importância, entre
êles, o mais importante, o grau de aperfeiçoamento da consciência espiritual
dos envolvidos, o grau de conexão deste indivíduo em particular com a mente de
Deus, ou em outras palavras, a vontade da Criação em nós.
Independentemente do nível espiritual em que nos
encontremos, sempre existe uma conexão entre nós e o Universo. O que diferencia
os seres é o grau de consciência dessa conexão que cada um atingiu.
A palavra consciência aqui, portanto, refere-se à
consciência da presença divina em nós, a intensidade com a qual somos
influenciados pela inspiração do Altíssimo em todos os afazeres diários e em
nossas meditações.
Existem assim vários tipos de seres humanos, independente de
raça, credo ou capacidade intelectual com graus diferentes de Consciência
Espiritual, chamemos assim. Existem da mesma maneira, níveis de consciência
espiritual diferentes entre animais de todas as espécies.Mas este é outro
assunto que deixaremos para uma hora mais oportuna.
Em suma, Consciências Espirituais diferentes, Carmas
diferentes, respostas cármicas diferenciadas e moduladas por esta consciência.
Da mesma maneira que o calor depende do Sol ou do fogo, o
Carma depende da Consciência Espiritual de cada um. Ela é a moduladora quantitativa
e qualitativa que falta a análise Blavatskyana.
Mais que isso: sem consciência, não há Carma.
Vejamos um exemplo antropológico.
Imaginem um membro da antiga tribo dos Tamoios, orgulhosa e
poderosa tribo que habitava o que hoje é o Estado do Rio de Janeiro, e cujas
terras e domínios estendiam-se de Niterói até a divisa com o atual Espírito
Santo.
Os tamoios eram canibais. E assim sendo, sempre que
conseguiam capturar um inimigo que se destacava pela coragem e bravura em
batalha, levavam-no para sua tribo, passavam dias mimando-o e engordando-o para
depois, em uma cerimônia onde toda a tribo estava presente, amarrá-lo a um
tronco no centro da Taba, abatê-lo com um único e certeiro golpe de borduna na
cabeça, entregando então seu corpo às mulheres que o cozinhavam à frente de
todos e eram responsáveis por distribuir suas partes aos comensais. Ali reunidos ,
em clima de solidariedade e comunidade, todos degustariam a carne do infeliz
enquanto elogiavam seus dotes como guerreiro e agradeciam aos deuses a
possibilidade de comê-lo, absorvendo assim, literalmente, em suas crenças, as
suas virtudes de combatente.
Borduna Kaiapó
Em nenhum momento, tenho a mais absoluta certeza, passou pela
mente de qualquer um dos guerreiros tamoios que suas práticas canibais
pudessem, de alguma forma estar ofendendo ou transgredindo algum preceito
moral. Ao contrário, comer alguém assim era a mais alta forma de homenagem a um
inimigo, uma demonstração de respeito e admiração e nunca uma prática bárbara
ou desumana. O canibalismo, para um canibal, não implicava portanto em qualquer
aspecto ligado ao Mal, ou ao que é errado. Não havia nele nenhuma consciência
de mal. Era o seu modo normal de viver e viver de outra forma, isto sim, seria
um mal.
E quem argumentar que mesmo inconsciente disso, esse
guerreiro tamoio seria objeto de qualquer retaliação cármica, lembro que tais
práticas foram comuns por séculos antes da intervenção dos sacerdotes europeus
que conseguiram evitar tornarem-se almoço ritualístico.
Foram estes representantes da cultura e da religião típica
da península ibérica que inseriram conceitos como culpa e remorso no coração
desses nativos.
Portanto, sem consciência de que estivessem fazendo qualquer
coisa de mal, eles não foram provavelmente objeto de nenhuma punição
transcendental, reação universal essa mediada pela consciência interior de cada
um. Mais: se problemas o atingissem, se ele perdesse sua saúde ou sua força
física, este guerreiro atribuiria essa desdita a outras causas metafísicas
misteriosas e nunca ao fato de ter o hábito secular de comer pessoas. Ele diria
para si mesmo que algo desagradou aos deuses mas não saberia o que. A função
didática do Carma estaria assim, irremediavelmente perdida, pelo menos no
quesito "não se deve matar e comer pessoas, mesmo que seja para "homenageá-las".
Carma é antes de tudo balanceamento de conduta, modulação do
fluxo das energias vivas, as almas imortais.
Não se trata de uma "retribuição" pura e simples, como
supõe madame HPB, mas uma reação inteligente e diferenciada caso a caso. E
provavelmente de uma tal complexidade que nós somos incapazes de acompanhar
todas as interconexões das consequências de nossos atos, sejam pensamentos,
palavras ou ações no meio social.
Muitas vêzes aquilo que consideramos erro e pelo qual
julgamos teremos que pagar um preço cármico fará parte de um plano cósmico mais
amplo que repercutirá na vida de muitos sem que tenhamos consciência disso,
anos e anos após nossa morte física.
Como Deus, o Carma é para nós, impossível de ser
compreendido e acompanhado em seus desdobramentos.
É a mesma coisa que tentar calcular o número de
deslocamentos causados pelo mergulho de uma única criança nas bolinhas plásticas de uma piscina de bolinhas infantil.
O deslocamento de dezenas de bolas é
simultâneo e múltiplo, ainda mais por que o corpo que mergulha é tridimensional
e provoca o deslocamento em todas as direções. Da mesma maneira habitualmente
tentamos entender os desdobramentos cármicos em linha reta (A fere B que
magoado fere C e assim por diante) mas, de fato, as repercussões de nossos atos
afetam todos ao nosso redor, estejamos ou não conscientes disso, estejam ou não
conscientes disso aqueles que foram afetados.
Como aquela senhora que será empurrada em uma rua por alguém
sem muito cuidado, transtornado por problemas pessoais domésticos, e que irá
parar em um hospital com uma fratura não percebida antes da qual resultará uma
complicação circulatória que gerará um embolia que virá a matá-la dias depois.
A pessoa que esbarrou transformou-se em uma força cármica,
sem saber. Esta cadeia de eventos que, pode-se dizer, semelhante aos canibais,
ela não acompanhou e da qual não tem consciência, não pesará na sua consciência
da mesma maneira que repercutirá na vida daquela senhora vítima da queda e na
vida de seus familiares que sofrerão com sua perda; entretanto, nada nos leva a
crer que tais acontecimentos já não fizessem parte de uma cadeia de eventos
ligada a vida daquela senhora vítima das consequências de um simples esbarrão.(1)
E aqui precisamos falar de outro aspecto, outra decorrência do
carma, entendido por alguns erroneamente como "predestinação".
Para isso devo recorrer à balística.
Quando uma bala de um antigo canhão é disparada ela descreve
no espaço uma trajetória chamada curva parabólica até atingir seu alvo. A forma
desta curva dependerá de vários fatores como o tamanho do cano deste canhão, a
quantidade de pólvora usada na sua ignição e disparo do projétil bem como do
peso e forma do próprio projétil, que ao longo dos anos teve alterações de
formato de uma simples esfera de ferro para um cilindro pontiagudo, entendido
como muito mais aerodinâmico.
Assim, dependendo da ação que desencadeemos com nossas
escolhas, ela disparará uma cadeia de eventos que redundará em uma
consequência, a semelhança do projétil lançado do canhão que eventualmente
explodirá em seu alvo. Nossos atos terão uma consequência imediata que
dependerá de sua importância, de nossos objetivos ao fazer tais escolhas e
intensidade das emoções envolvidas naquele ato. Algo parecido com a importância
da serenidade, tanto para disparar um projétil quanto para realizar escolhas.
Quanto mais sereno o armeiro, mais preciso é o tiro; quanto mais serena uma
escolha, mais benéficas são suas consequências. De qualquer forma, até que
determinada consequência ocorra, os eventos encadeados também descreverão uma
parabólica no espaço cármico, primeiro ascendendo até a elevação máxima e
depois numa descendente até tocar o alvo e o solo. É só pouco antes deste
momento que podemos supor que dificilmente os fatos deixarão de ser como a
trajetória do projétil indica. Isto pode ser chamado de um trecho determinista,
mas vejam, apenas este pequeno trecho, o trecho final da precipitação dos
eventos, onde as consequências podem ser chamadas, sim, predestinadas.
Se o
Universo recrutar alguém neste ponto da cadeia de acontecimentos, muitas vezes
esta pessoa participará de um drama cósmico de forma inconsciente que redundará
em um desfecho antecipável e inevitável. Ela será atraída para este desfecho por várias
razões indescritíveis, mas a razão mais importante estará sempre relacionada
aquele que representará o papel mais destacado deste drama, no nosso exemplo, a
senhora que vem a falecer vítima das consequências de um simples esbarrão em
uma rua movimentada.
Os seres humanos gostam de se sentir senhores de suas vidas,
mas na verdade, o Senhor de nossas vidas
é outro e só na harmonia com sua vontade podemos compartilhar alguma coisa
deste poder. Nossa vida nunca foi, nem nunca será nossa, mas alguns de nós são
mais conscientes disso do que outros, como salmões que nadam rio acima contra a
corrente para atender os desígnios de seu instinto reprodutivo e o surfista que cavalga uma onda que não
criou e que não controla, mas com a qual se harmoniza para divertir-se e dar a
impressão que a controla.
Gera bom carma ceder ao fluxo da onda; gera bom carma guiar-se
pela vontade do Altíssimo, vontade esta marcada a ferro e fogo em nossos
corações e que Platão chamou em uma imagem memorável, Physys. Cada um de nós
tem um propósito nesta e em todas as nossas existências e é nossa missão
descobrir esta natureza em nós e segui-la, cavalgando-a e usando-a o melhor que
pudermos, como o surfista faz.
Como eu disse antes, Carma é uma reação inteligente e quantitativa
e qualitativamente diferenciada caso a caso, à ações determinadas por nossas escolhas.
E as escolhas são moduladas pelo grau de consciência
espiritual, como comentei.
Isto nos leva a outras considerações sobre o Carma, sua
potencialidade de causar dor ou prazer. Prazer, sim, já que a retribuição
impessoal de que fala HPB não é especializada apenas em dissabores ou eventos
desagradáveis.
Tanto as vicissitudes quanto as recompensas, portanto,
modificam-se ao longo dos diferentes níveis espirituais que a alma atravessa em
direção à plenitude.
Em um primeiro momento, a alma em evolução se vê envolta em
uma dicotomia dor/prazer, quase um condicionamento pavloviano, que o empurra em
direção a um comportamento mais seguro, social e capaz de garantir
descendência. No segundo momento, a alma se vê em um ambiente social mais
complexo, numérica e qualitativamente, de tal forma que o grupo se vê obrigado
a estabelecer convenções de relacionamento como a Lei e a Religião. Já em um
terceiro nível de complexidade a alma atingiu um tal grau de refinamento que
passa a ser guiada apenas pela sua conexão com o Altíssimo, aquela consciência
espiritual de que falei antes, mas agora desperta, e as dificuldades da
existência, se elas ocorrerem, nesse estágio são recebidas com serenidades e
compreendidas como orientações diretas do Alto, na direção do aperfeiçoamento,
um pacto entre nós e a força que nos sustenta, como o surfista e a onda aonde
ele surfa.
Para essas pessoas, graças a interação harmônica com a
Vontade de Deus, Carma é garantia de prazer e proteção. Existem muitos exemplos
públicos de pessoas que têm uma vida produtiva e enriquecedora, e que graças a
justiça universal, desfrutam de uma encarnação de luz e que a muitos ilumina.
Existem sim, sem fantasias, vidas que são exemplos deste argumento e, feita a
ressalva de que, no corpo, somos todos frágeis e sujeitos às intempéries
físicas e emocionais comuns a nossa condição humana, tais vidas são mesmo abençoadas e abençoam a todos que com elas convivem.
Pensar o Carma como uma simples Lei de Retribuição não é
incorreto, mas incompleto e imperfeito. Carma é um mecanismo de equalização e
modulação complexa, diferenciada e não apenas uma sucessão de extremos
maniqueístas.
O Universo é muito, muito mais elaborado do que isso.(1) Considerações de ótica esotérica
Como complementação ao aprofundamento da noção de Carma e
interação multidirecional, imaginemos o seguinte experimento:
Em um quarto de lados absolutamente iguais, colocamos em seu
centro uma cadeira. A parede em frente a cadeira, para onde a cadeira está
virada, é toda ela espelhada. Acima da cabeça do indivíduo, sentado, existe uma
luz apagada ligada a um potenciômetro, que possibilita a intensificação gradual
da luminosidade até um ponto máximo.
O indivíduo, paulatinamente, vira o botão do potenciômetro,
de forma que a imagem do indivíduo vai surgindo aos poucos à sua frente.
Uma imagem, um espelho, um reflexo.
Agora, mantidas as condições acima, façamos em nossa
imaginação que a parede imediatamente atrás do nosso observador sentado também
se torne espelhada.
Agora, quando aos poucos ele aumentar a luminosidade, verá
surgir a sua frente um numero infinito de imagens produto da reflexão contínua
entre o espelho da frente e o de trás.
Para aumentar a complexidade, transformemos em espelhos as
paredes laterais do quarto. A sensação de profundidade será incrementada e a
enormidade de reflexos dará ao observador uma pequena idéia do conceito de
infinito.
Poderíamos ainda criar paredes adicionais espelhadas,
transformando o quarto de um quadrado perfeito em um hexágono ou um octógono,
ou para fugir aos números pares, um eneágono, todo feito de paredes espelhadas
que se refletem, umas as outras de modo ininterrupto.
Esta é a imagem que me vem a mente quando considero as
complexas interelações cármicas desencadeadas por um único evento.
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