Por Mario Sales, FRC, SI
Domingo
frio e eu aqui me distraindo com o resumo da Doutrina Secreta de Michael Gomes,
(ed. Pensamento), relendo conceitos teosóficos, de modo mais claro do que nas
páginas infernais da edição brasileira da Doutrina Secreta, de 1977, da mesma editora.
Lá pelas
tantas, releio os comentários de Blavatsky sobre a 4ª sloka do Livro de Dzyan,
discutindo a noção de Maya.
Diz ela: “Maya
ou Ilusão é um elemento que participa de todas as coisas, pois tudo que existe
tem apenas uma realidade relativa e
não absoluta. (...) À medida que nos vamos elevando na escala do
desenvolvimento percebemos que, nos estágios já percorridos, havíamos tomado
sombras por realidade e que o progresso ascendente do Ego é um contínuo e
sucessivo despertar, cada passo à frente levando consigo a ideia de que, então,
alcançamos a “realidade”. Mas só quando tivermos atingido a consciência
absoluta e com ela operarmos a fusão da nossa, é que iremos libertar-nos das
ilusões produzidas por Mâyâ.[1]
Minha filha
mais nova definiria este trecho como “prestar tanta atenção ao gol que esquecemos
de admirar o drible, a jogada”.
Existe um
grave equívoco nesta avaliação de Mâyâ, que, sejamos justos, Blavatsky não
criou, mas apenas repetiu.
O problema
não está em Mâyâ ser real ou ilusória, mas sim, e este deveria ser o
questionamento central, a confusão que o Ego faz, por ignorância, entre o que é
real e ilusório.
E
considerando a afirmação de que “ tudo que existe tem uma realidade relativa”,
usada pela própria Blavatsky, é preciso estabelecer por que existe esta realidade ilusória e relativa.
Pensem no
seguinte exemplo comparativo: imaginem um laboratório de biologia. Nele,
cientistas simulam condições artificiais para estudar fenômenos da natureza. O
laboratório ajuda o trabalho de investigação e compreensão dos fenômenos, em
condições controladas. O laboratório não é o “mundo real”, mas serve de maneira
satisfatória ao propósito para o qual foi construído. Ele, laboratório, tem,
pois, um papel importante a desempenhar, o qual transcende a mera questão de
ser ele a Natureza mesma ou um simulacro artificial desta Natureza, já que “toda
realidade é relativa”.
Toda
crítica a Mâyâ parte de um falso pressuposto, de um falso problema, de uma
falsa questão, qual seja se ela é real ou ilusória.
Que ela não
é real todos sabemos, mas sua artificialidade em nada diminui sua importância
funcional como ambiente de experimentação e estudo, da mesma forma que o cinema
e o teatro são constituídos de ilusões, ou são uma ilusão em si, mas mesmo
assim, nos divertem e provocam em nosso espírito real, reflexões emocionais
reais, muitas vezes profundas, sobre a natureza da vida e da existência.
Ninguém diz,
em sã consciência, depois de pagar para entrar em uma sessão de cinema, para
ver um filme, a seguinte frase:
“Quero me
libertar deste filme, desta ilusão cinematográfica, quero sair desta sala aonde
entrei voluntariamente pagando a minha entrada”
Ou então:
“Quero
parar de me divertir com este espetáculo de luzes e cores, e voltar para a “realidade”
sem graça lá fora. ”
Tal coisa
não faria o mínimo sentido.
Mesmo
assim, ouvimos a frase: “Quero me libertar de Mâyâ ”, como se Mâyâ fosse o
problema, e não o equívoco de confundir real com ilusão.
Não é a
ilusão em si que nos prejudica, desde que saibamos que é uma ilusão, e a usemos
para nosso prazer e educação. O que nos afeta negativamente é a falta de
consciência de que este é um importante ambiente experimental, extremamente
rico e complexo, do qual devemos usufruir, e com o qual podemos até nos
confundir desde que, como experiência estética, na qual imergimos para melhor desfrutá-la,
a ponto de pularmos da cadeira no cinema, com o susto de cenas fantasiosas de
terror ou vibrarmos com o heroísmo de personagens inexistentes no mundo dito
real.
No período de
duração daquele filme ou da peça que estamos assistindo, é normal que
concedamos aos mesmos status de realidade, de forma a experimentarmos as
emoções que eles nos provocam.
Estas
emoções, estas experiências emocionais, são o que verdadeiramente importa.
Maya tem,
pois, enquanto ilusão, um papel a desempenhar em nossa, assim chamada, vida
real.
Julgá-la
boa ou má apenas por sua conhecida artificialidade é ser no mínimo, simplista
intelectualmente na compreensão de sua verdadeira função.
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